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Quarta, 02 Março 2016 11:08

MCK: “Vivemos numa atmosfera de medo”

A morte de um apreciador da sua música fê-lo deixar o mero exercício de músico para assumir o papel de activista cívico e defensor dos direitos humanos. Esta decisão não deixou de ter os seus custos, como afirma na conversa que MCK manteve com o Novo Jornal, exactamente no dia em que os Serviços de Migração e Estrangeiros decidiram ressarci-lo pelos danos provocados pela proibição de deixar o País em direcção ao Brasil, em Novembro do ano passado.

MCK é ainda uma das principais figuras do movimento hip hop angolano com algum engajamento político, não partidário, nas suas intervenções. Terá sido esse o motivo pelo qual foi retido o seu passaporte numa das últimas vezes que estava a sair do país em direcção ao Brasil?

Penso que a arte deve ser exercida de forma livre, independente e inclusiva, sem olhar para rótulos divisórios como raça, cores políticas, convicções religiosas e outras... Somente assim conseguimos explorar plenamente a nossa imaginação criativa. O artista é antes de tudo uma pessoa, que nasce num lugar geográfico concreto, e é moldado no seio de uma família que vive em comunidade, o que leva a estabelecer laços afectivos, cívicos e patrióticos de cumplicidade e responsabilidades com o espaço onde nasce...O rap engajado politicamente é a continuação da música revolucionária dos anos 60 e 70, anteriormente feita por músicos com vínculos político-partidários, como David Zé, Urbano de Castro e outros. Hoje retomados pela geração 80, com novas exigências e desafios actuais, num contexto de restrição de liberdades não muito diferente do anterior, onde a maior mudança é a troca do opressor. O impedimento da minha deslocação ao Brasil no dia previsto é um bom exemplo da perseguição política de que os activistas são alvos... Lutar em busca de justiça, paz e liberdade em Angola ainda custa caro, chegando a custar a vida em alguns casos.

Acabou por viajar um dia depois do incidente. Foi depois informado sobre as reais causas que levaram à retenção do passaporte ou não? O que foi que se passou efectivamente?

Acabei por viajar dois dias depois, muito por força da denúncia e  consequente pressão nas redes sociais e institucionais em Angola e no Brasil. Diferente de Portugal, o Brasil é um Estado neutro a nível das relações com Angola e não sofre acusações de ingerência e outras feitas regularmente pelos órgãos oficiais a Portugal... Brasil foi o primeiro país a reconhecer a independência e soberania de Angola, de igual modo, terá a obrigação moral de ser sempre o primeiro a condenar a violação dos direitos humanos e exigir a liberdade das pessoas... Por norma, a vítima da violação teme denunciá-la receando represálias. Acontece assim no seio da família, no mercado do emprego e nas instituições públicas. Agimos invertendo essa lógica, e não ficámos pela mera denúncia. Constituímos advogado e demos entrada a uma Reclamação Administrativa à Direcção dos Serviços de Migração e Estrangeiros (SME) com cópia para o sub-procurador junto dos SME, a exigir o levantamento imediato da interdição, uma vez que não existiam quaisquer medidas cautelares ou impedimento judicial. Exigimos a explicação do acto arbitrário de carácter administrativo e exigimos a reparação dos danos causados... Igualmente exigimos que se condenasse publicamente o acto em defesa do bom nome do Estado, sendo esse último um ente de Bem, garante da legalidade e com a obrigação de agir de boa fé... até porque o acto praticado contraria a liberdade de circulação e emigração prevista no n.º 2 do Artº 46 da Constituição da República de Angola... Fomos prontamente recebidos pelo director-geral dos SME, o Sr. José Paulino Cunha da Silva, e o seu assessor jurídico, e obtivemos o reembolso dos valores hoje, dia 18 de Fevereiro.

Pensa que alguns políticos não vêem com bons olhos esse engajamento político de um artista como o MCK, por exemplo?

Tanto como artista e como activista cívico, a minha participação social é feita em observância e respeito pela Constituição e pela lei. A minha actuação é estimulada com a viva convicção da construção de um país inclusivo e diferente. A arte deve ser exercida de forma natural e descomprometida. Sou norteado por um desejo de justiça que transcende o excesso ou a falta de simpatia de políticos ou fãs. Não sinto qualquer necessidade de agradar a promotores, patrocinadores ou políticos. Estou preocupado em informar com verdade e de forma imparcial, usando o Rap como instrumento de denúncia e partilha de educação, e estou psicologicamente preparado para arcar com as consequências dessa escolha...

Tal facto deve-se à postura dos próprios artistas ou porque não tem havido ou não há este espaço para que os artistas possam intervir politicamente?

É uma mistura de factores. Vivemos mergulhados numa atmosfera de medo que nos é imposta há anos; num ambiente de restrições das liberdades fundamentais, perseguição de activistas, tortura de manifestantes e as recentes mortes de Cherokee, Cassule, Kamulingue e Alberto Ganga, assim como caso “15+2”. Todos esses casos são sementes de medo e terror. Além disso, a falta de dignidade salarial, habitacional, e o universo de dificuldades que a maioria dos angolanos vive, de que os artistas são parte, contribuem activamente na compra do silêncio de talentosos artistas que antes de cantar precisam comer. Concomitantemente, não existem espaços públicos para quem tece críticas ou apresenta um posicionamento artístico “politicamente incorrecto”... Depois da conquista da independência, assistimos à morte da música e dos músicos revolucionários. O regime não permitiu a passagem de testemunho de uma geração para outra, não há espaço de diálogo. Penso que esse interregno durou até surgir a geração do rap político e interventivo, de que somos parte. Contudo, sem espaço público para exposição. Quem condena a corrupção em Angola hoje tem menos espaço nas rádios, jornais e televisão públicos do que quem enaltece o alcoolismo, a prostituição ou o fanatismo partidário.

O MCK é provavelmente dos poucos que é ainda alvo de situações como aquela que viveu no aeroporto internacional. Isso começa por ser um factor inibidor para que outros artistas comecem a ter uma participação mais activa na política nacional como tem sido o seu caso?

Depende da perspectiva. Existem casos de violação dos direitos humanos e outros fundamentais, que fomentam o desejo de combate e edificam as raízes das nossas convicções da construção de uma Angola justa e transparente. No meu caso particular, deixei de ser mero músico e passei a activista e defensor dos direitos humanos depois da morte de Cherokee pela UGP… As várias proibições das vendas e shows de que tenho sido alvo inflamam a expectativa de consumo e agregam valor comercial aos álbuns que lanço. O recente caso da interdição do Brasil acabou por promover o evento e colocou em espaços da grande mídia brasileira a que não tinha acesso anteriormente, e, honestamente falando, não tenho qualquer prazer em colocar Angola nas páginas de notícias internacionais pelas piores razões, como essa que ocorreu agora. Existem atitudes e comportamentos arbitrários e abusivos que nos mancham a todos e que deviam ser publicamente condenados pelo mais alto magistrado da nação. Abraçar uma carreira como artista independente e revolucionário é uma decisão solitária e de coragem. A mesma deve ser tomada ciente dos riscos que custam a conquista da liberdade, que nunca é dada pelo opressor. Por norma, conquista-se com enormes sacrifícios e glória.

Que custos tem tido esta intervenção na sua vida pessoal ou mesmo na sua vida artística?

Para quem acha que a liberdade não tem preço, os custos são de natureza  da própria realização do sonho da independência. Vivemos hoje os mesmos episódios com o SINSE que os nacionalistas angolanos viveram com a PIDE-DGS no passado, com o agravante de estarmos em paz há mais de 13 anos e independentes há 40 anos. Hoje por hoje, posso dar-me ao luxo de apresentar uma cronologia de violações de direitos que vão desde a morte do Cherokee, porta arrombada, intimidação da esposa, enfim... Pagamos com o preço da exclusão da agenda cultural e shows, pagamos com as proibições e perseguição política, pagamos com ameaças e intimidações de pessoas ligadas à família. Entretanto, também recebemos enorme amor e carinho de pessoas destemidas ávidas pela mudança; que sentem as suas vidas traduzidas nas nossas mensagens, que acham que é possível oferecer um contributo social ao País sem ser pela tradicional via política, pessoas que percebem que Angola precisa de todos os seus filhos, e que antes das cores partidárias existe o País e não pode ser gerido como uma coisa privada de alguns…Quem sonha com uma Angola inclusiva apoia-nos incondicionalmente e estimula em nós uma coragem que supera o medo...

Uma participação mais activa na política implicava necessariamente que esta fosse partidária no cenário em que vivemos? Imaginando que hoje quisesse fazer política esta teria de ser necessariamente partidária?

Sempre defendi a ideia de que podemos criar novos espaços de intervenção e participação social. Não precisamos de viver presos à forma  tradicional e arcaica de participação social. Enquanto cidadãos todos podemos colocar a nossa pedrinha na edificação de um País melhor, sem passar pela via político-partidária. Hoje a nível da sociedade civil temos actores sociais com maior notoriedade e qualidade nas abordagens que figuras políticas com responsabilidades públicas ou assento parlamentar... Personalidades como João Paulo Ganga, Alexandra Simeão, Rafael Marques, Reginaldo Silva, Carlos Rosado e outras, gozam hoje de maior respeito, prestígio e credibilidade do que certos rostos no poder há mais de 30 anos. Acredito mais nessa via interactiva que agrega e alberga forças das mais variadas esferas da sociedade civil do que na falida e cada vez menos representativa política partidária. Hoje existem cada vez menos pessoas que se identificam com esses rostos, por exemplo. Hoje pouca gente conseguiria dizer quem são os líderes juvenis dos nossos partidos, ao passo que teria uma resposta imediata se perguntassem quem é o MCK. As ofertas político-partidárias, as propostas, projectos, e os debates ainda são de baixa qualidade e atraem cada vez menos os jovens. Existem tipos extraordinários na política partidária, mas na generalidade há uma falência...O histórico de guerra dos partidos tradicionais e os escândalos de corrupção das instituições públicas concorrem para essa falta de credibilidade da política partidária como único meio de contribuição social, e somente a faria caso tivesse pretensão de poder, que não é o caso. Hoje acredito cada vez mais numa nova geração de actores sociais jovens que pensam o País e não em partidos, pois, será mais fácil mudar a mentalidade da população do que a do regime...

O paradigma da política nacional teria de ser rompido? Ou seja, romper com este tipo de participação política que leva por arrasto a militâncias e a partidos seria solução para esta situação da política nacional?

Este modelo está em falência e queda livre. Hoje os poucos que se perfilam e se inscrevem nesses partidos não o fazem por paixão partidária ou desejo de servir a Nação. Na sua grande maioria hospedam-se nos bolsos desses partidos. Não conhecem os próprios estatutos, nem as ideologias que defendem, não realizam eleições internas, daí a grande guerra e o carnaval eleitoral. Hoje quase nenhum jovem tem interesse em ir a um comício, as abordagens são falaciosas, acusatórias e pouco atraentes...

Já foi mais comum, ao nível do movimento Hip Hop constatar-se um maior engajamento político, até porque uma das principais características da cultura hip hop é não estar alheio a estes fenómenos político-sociais. Faz falta na política nacional artistas que questionem, que agitem, no bom sentido, a métrica política?

Faz falta em qualquer sociedade a presença de artistas que estimulam o debate, que criticam e questionam as instituições e a sociedade, que condenam violações e que apontam sugestões orientadoras pra juventude, infelizmente, essa atitude de engajamento artístico é cada vez mais reduzida nos nossos dias. Hoje teria dificuldades em apontar dez artistas de hip hop super-engajados em qualquer País. E Angola não foge à regra, com o adicional das perseguições e proibições que vivemos. Mesmo nos Estados Unidos da América hoje existe apenas um na grande media com uma mensagem forte e notoriedade, que é o Kendrick Lamar. Os outros estilos musicais vivem a mesma realidade, artistas engajados representam um nicho cada vez menor. O consumismo abraça o ‘fast food’.

Hoje fala-se numa classe artística amorfa, que quase não se posiciona, e olha-se para uma outra que é vezes sem conta conotada com os “revus”, regra geral uma geração com um tipo de música rap mais interventiva. É este tipo de intervenção que pensa ser útil para os artistas?

O “caso dos 15+2” estimulou um sentimento de solidariedade e posicionamento não visto anteriormente. Artistas de estilos e gerações diferentes uniram-se dando voz e rosto e exigindo a liberdade dos presos políticos. Alguns mesmo eram rostos estreantes no protesto e no assumir de uma posição. Há esse sentimento e desejo de maior participação no seio dos artistas. Entretanto, ainda existe o medo, a falta de espaços e a forte dependência no partido no poder, que tudo controla e coloca uma linha divisória a quem pensa diferente...Penso que as redes sociais devolveram alguma dignidade ao movimento do rap revolucionário, pois a Internet fica fora da alçada do controlo do regime e por lá nascem todos os dias novos nomes como Flagelo Urbano, Pai Grande, Fat Soldiers, Sanguinário, Sociedade Aberta e outros artistas que vão surgindo de  Cabinda ao Cunene.

Nina Simone defendia que a intervenção artística deve reflectir o tempo que vive um determinado artista. É possível hoje olhar para o resultado da produção artística e nele vermos reflectido o país dos dias de hoje? Angola reflecte-se na sua produção artística?

Concordo plenamente com a afirmação. O artista não deve marcar apenas uma época, deve ser criativo o suficiente e fotografar em panorâmica o contexto social e político em que está inserido e ficar na história. O rigor da nossa escrita, a profundidade da nossa abordagem, assim como a nossa coerência estética podem tornar o nosso trabalho intemporal, oferecendo a possibilidade de várias gerações se servirem da mesma obra.

O seu nome aparece arrolado no processo “15+2” como ministro da Cultura do alegado “Governo de Salvação Nacional”. Este processo tenderá a mudar um pouco daquilo que é a postura daquelas vozes mais contestatárias, particularmente do movimento hip hop?

Penso que não. Hoje a sociedade evolui a um ritmo mais acelerado do que o das instituições, e há muita gente atenta que facilmente percebe que não passa de uma mera manobra dilatória o tribunal usar como prova uma lista de sondagem de popularidade do Facebook. A forma abusiva e humilhante com que fomos notificados em editais mostra claramente o desejo de humilhação e intimidação do regime, que gasta dinheiro público dando importância a uma brincadeira da internet, pois nenhum dos nomes da suposta lista pediu para se alistar na mesma…E qualquer nome que goza de alguma popularidade poderia lá parar como foi o caso de Aníbal Rocha, Bornito de Sousa ou João Maria... Agora imagine que o nome do Presidente estivesse na lista, também seria notificado? Somos todos absolutamente irresponsáveis sobre a mesma e é uma brincadeira usar essa lista como prova material.

Esta é uma boa altura para se começar a pensar e a discutir a política sem sentimentalismos?

Sim... Sem sentimentalismos e despidos de paixões partidárias. Temos uma óptima oportunidade para construir um País inclusivo que agrega forças e ideias diferentes que concorrem para o bem comum...

Um MCK para a política equivaleria a que alterações de fundo? O que mudaria pessoalmente na política angolana?

Sou vezes sem conta associado à política, entretanto, aproveito para reafirmar que não é minha pretensão imediata. Contudo, se eventualmente exercer algum cargo político futuramente fá-lo-ei com base nos princípios que defendo de maior maior justiça, paz e liberdade. Ciente que o propósito da política é servir os outros e não tomar de assalto o que é de todos para uso exclusivo da minha família como acontece em Angola. Lutaria para juntos construirmos uma Angola que pudesse nos orgulhar a todos.

NJ

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