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Sexta, 06 Fevereiro 2015 18:54

Uma bandeira a pedir reforma

A realidade política (de má memória) que Angola constituiu nos primeiros 15 anos da sua existência como nação, está patente na bandeira nacional. As suas cores e a disposição das mesmas reproduzem fielmente a bandeira do MPLA, aqui arvorado à condição de “parti-état”. A meia roda dentada e a catana que a cruza, seu elemento figurativo central, são uma representação inspirada na foice e no martelo, uma das hosanas da ordem comunista que a defunta União Soviética representou no mundo.

Nos tempos que se seguiram ao colapso da velha ordem internacional foram muitas as bandeiras nacionais que mudaram ou nasceram em correspondência com processos de alteração de regime (Cabo Verde, por exemplo), ou com o nascimento e recomposição de Estados. Foi por essa altura e também no quadro de pressões centradas no “De Profundis” do império soviético, que Angola se desembaraçou do “ancien régime”. O partido único mais a sua proclamada ditadura democrática revolucionária, deram lugar ao multipartidarismo; o estado revolucionário (a celebrada “trincheira firme da revolução em África”) cedeu o passo a um Estado dito de direito democrático.

A bandeira e, já agora, um hino nacional igualmente glorificador de coisas arqueológicas como o poder popular, esses ficaram e mantêm-se intocáveis. Dá que pensar a flagrante contradição entre uma bandeira que mantém intacto o velho espírito que ela consubstancia, incluindo o sectarismo político, e realidades novas a que Angola se foi abrindo (muitas decorativas, mas mesmo assim….), baseadas em sublimações como uma democracia política ou uma economia de mercado. Deviam tê-la convertido numa peça de museu, acompanhada de uma simples legenda: “primeira bandeira nacional”. Foi esse ou parecido o destino de outros anacronismos político-ideológicos do passado, incluindo o da República Popular.

Angola nasceu à pressa (e apetece dizer, à toa) como nação independente. Prodígios de uma descolonização leviana… Houve que inventar, improvisar, adaptar, talvez mesmo “desenrascar” – tantas vezes sem critério ou racionalidade. A bandeira é uma espécie de produto acabado desse frenesim de há 40 anos. Uma catana e meia roda dentada, na sua concepção e estética de inspiração soviética, é uma composição incaracterística, sem graça e plasticamente desprimorosa. Além de ideologicamente muito marcada e datada – com a agravante de a ideologia inspiradora, o comunismo, já ter ido parar ao caixote do lixo da história.

Uma catana e meia roda dentada são coisas universais, que há em todas as partes do mundo, com pequenas variações de forma. Têm que ver com meio mundo e com tudo. Tal como a foice e o martelo, que os soviéticos conceberam como símbolo do internacionalismo e mensagem do marxismo-leninismo. Associadas a Angola, a catana e a roda dentada são realidades banais; não têm extracção identitária, mesmo apesar do mito das catanas como instrumento empregue pelos nacionalistas que em 4 de Fevereiro de 1961 assaltaram uma prisão colonial. Valem apenas como vestígio de um passado encerrado: a catana representa os camponeses e a roda dentada os operários – exactamente como a foice e o martelo. Na sua representação cruzada, ainda que no centro geométrico da bandeira e não no canto esquerdo, “cheiram” simplesmente a missa da ideologia da defunta URSS.

Nos símbolos de todas as nações, em especial na bandeia e no emblema (também chamados armas nacionais), estão normalmente representados elementos endógenos, coisas próprias, só delas, que lhe transmitem identidade – e por essa via servem de factor de coesão. E Angola tem coisas únicas, só suas, de mais ninguém, como a palanca negra gigante, na fauna, ou a welvitschia mirabilis, na flora. Que “figurão” fariam numa nova bandeira. Pelo menos num novo emblema, despojado da desengraçada catana e da corriqueira roda dentada.

Por Xavier de Figueiredo

AM

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