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Segunda, 18 Julho 2022 12:47

A insubordinação dos filhos à hierarquia familiar africana - Ismael Mateus

Os exemplos vêm de cima, diz o ditado. Quando as “primeiras “famílias do país dão mostras de desestruturação, podemos imaginar o que se passa na base e quão profunda é a crise dos valores familiares.

A nossa sociedade é bantu, africana e tem uma cultura própria. Ao longo dos últimos anos, o processo de aculturação que invade o país atinge principalmente a família. Tudo começa na alteração do nosso (africano) conceito de família, que se pretende agora que signifique apenas "um conjunto de pessoas que residem num mesmo domicílio, ligadas por laços de parentesco, dependência doméstica ou normas de convivência”.

Essa visão restritiva da família choca grandemente com a ideia de família que resulta das nossas culturas, em que se valoriza quem participa da educação da criança. A noção de relação familiar ultrapassa a dimensão biológica e abarca todas as relações próximas que podem interferir na formação da personalidade das novas gerações, como são os casos dos amigos mais próximos dos pais; vizinhos, padrinhos e tios. Ao contrário do que acontece nos países retratados nas telenovelas, entre nós a família ampla, na qual se misturavam avôs, tios, primos e irmãos, não desapareceu. A família ampla existe, tal como as suas regras de convivência, de resolução de conflitos e de harmonização dos problemas familiares. É a acção humana, incluindo do Estado, que está a fragilizar ou a substituir essas regras seculares de convivência, acelerando o processo de desestruturação familiar.

Todos estes familiares, pertencentes a tal ampla acepção, assumem a responsabilidade de adequar o comportamento das novas gerações aos valores da sociedade, transmitindo-lhes hábitos, linguagem e cultura, o que mais tarde virá a contribuir para o seu equilíbrio, desenvolvimento afectivo e preparação para os diferentes momentos emocionais da vida.

Temos, na verdade, um sistema sólido e eficaz, herdado dos nossos ancestrais e, ao invés de o preservarmos e dele tirar o maior proveito, estamos a destruí-lo. Em vez de reforçar o papel do conselho da família na resolução dos conflitos conjugais, criamos estruturas na OMA e no Ministério da Família. Em vez dos tios, a autoridade passou para os endinheirados. Estamos a caminhar para um abismo do mundo ocidental, onde mais 60 por cento dos domicílios são monoparentais e nos restantes o conceito de família se resume a pais e mães cansados do trabalho, filhos (quando há) entregues aos programas de TV e um animal de estimação.

Chegados ao limite da exposição pública com audiência mundial, talvez agora a sociedade angolana se mobilize para encarar o problema com mais firmeza.

As relações familiares devem estabelecer-se na base da igualdade, entre pais e filhos e esposa e esposo, mas, ao mesmo tempo, devem ser regidas por leis, normas e costumes que definem direitos, os papéis de marido e mulher, de pai, mãe e filhos e deveres de cada um na sociedade.

É preciso recuperar o papel e o conceito tradicional, nos quais os tios (na acepção alargada) assumem responsabilidades fundamentais na educação e no complemento dos pais e encarregados de educação. Mas há igualmente que encarar a questão da fuga à paternidade e famílias monoparentais como um problema de ordem social e económica e não policial/criminal. Há uma relação directa, na maior parte das vezes conflituosa, entre o detentor do maior poder económico familiar e o papel de chefe de família, o que leva a que maridos desempregados ou que contribuam menos do que as suas esposas e filhos, vejam enfraquecido o papel de autoridade e educador principal. A questão do poder económico é fundamental na abordagem que deveremos fazer da problemática da desestruturação familiar pois, como acima referimos são as consequências do desemprego e da incapacidade de prover bens para a família que levam à fuga à paternidade, violência doméstica e ao divórcio.

Com as suas políticas, que subalternizam o papel do pai, o Estado acaba por ser também um agente fomentador de relacionamentos nada saudáveis entre esposos e esposas, de divórcios ou separações, ou ainda de casamentos mantidos na base da autoridade por violência doméstica. Um dos maiores erros que o Estado comete é o incentivo às ideias de que o exercício de funções paternais é algo opcional e facultativo e que cabe a um dos progenitores prescindir da presença do outro, ou no oposto da situação, a tornar tão difícil (a ponto de desistir de espera) alguém não biológico, perfilhar uma criança.

As consequências nefastas do poder económico (seja nos casos em que os pais e membros mais velhos das famílias não o têm ou no caso em que os filhos passam a deter esse poder) tem vindo a ser um dos factores que contribuem para a desestruturação das famílias. É por conta dos problemas económicos que se registam os conflitos conjugais, a ausência dos pais, a quebra acentuada de controlo e autoridade, inexistência de regras de convivência e o desaparecimento de figuras estáveis de liderança familiar, habitualmente exercida por um pai. Literalmente, hoje manda nas famílias quem tem dinheiro.

As mudanças na família angolana nos parecem muito bruscas, resultando daí relações familiares onde os papéis de pais e filhos estão confusos, em que há insubordinação dos filhos à hierarquia familiar africana e tentativa de imposição de modelos de outras realidades culturais.

Está mais do que na hora de devolver a autoridade às famílias. JA

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