ASUBIDA ABRUPTA do preço dos combustíveis motivou uma greve de três dias dos candongueiros (veículo popular de transporte de passageiros) e dos táxis e mototáxis que paralisou as ruas de Luanda na semana passada.
A partir daí, vários protestos e tumultos irromperam em Angola, com relatos de pilhagens, vandalismo e extrema violência policial. Até ao momento em que escrevo, 29 pessoas foram mortas – incluindo mulheres e crianças – centenas ficaram feridas e mais de 1.200 foram detidas arbitrariamente em Luanda, Huambo, Benguela e Huíla.
Hitler Samussuku, ativista e politólogo angolano, assinou recentemente um belíssimo texto de opinião no jornal Público com o título: “Quem convocou essa manifestação?” Nele, o autor recentra a explicação do que se tem passado nos últimos dias como um grito coletivo contra a pobreza e a fome crónicas do povo angolano, que ultrapassa qualquer ideologia ou fator económico circunstancial. Não é difícil concluir que tem razão: em 2024, Angola produziu 1,14 milhões de barris de petróleo por dia, gerando cerca de 31,4 mil milhões de dólares em exportações. Porém, há décadas que a riqueza é canalizada para enriquecer uma pequena elite que vive com grandes luxos à custa da miséria do povo.
Atualmente cerca de 53% da população vive em situação de pobreza extrema. A mortalidade infantil é altíssima e a subnutrição infantil é das mais críticas do mundo, com cerca de 40% das crianças com menos de 5 anos a sofrer de malnutrição crónica. Simultaneamente, os dirigentes super-ricos vivem em magníficos condomínios na península de Luanda e entretêm-se em restaurantes em que um hambúrguer custa €50 e garrafas de champanhe Cristal chegam a mais de €1.000 cada.
São estes os cleptocratas com que Portugal tem fomentado cumplicidades político-financeiras. A conivência com a corrupção e o autoritarismo é total, cinicamente mascarada de respeito pela soberania nacional de Angola.
“Num Estado autoritário, a repressão é como água num rio”, escreveu recentemente Olívio Nkilumbo, deputado angolano da UNITA. A elite que comanda o Estado angolano reprime o seu povo em todos os sentidos: negando-lhe um regime democrático, impondo décadas de pobreza extrema e castigando com forte violência policial cada manifestação de revolta.
Nas fotorreportagens das manifestações desta semana, é possível ver crianças e jovens nas ruas elevando cartazes com palavras de ordem: “LIBERDADE JÁ”, “AVISEM AO MPLA QUE A REVOLUÇÃO CHEGOU! VOTO OU BALA”, “JLO [João Lourenço] TIRA NOSSO DINHEIRO DO TEU BOLSO”. Nas redes sociais circulam vídeos da polícia a atirar a matar contra cidadãos desarmados e pessoas visivelmente subnutridas a serem humilhadas por roubarem bens de primeira necessidade.
Não é possível continuar a ignorar este grito do povo angolano, que quer ser livre da pobreza, da desigualdade e da ditadura. É evidente que Portugal deve respeito pela soberania das nações que se tornaram independentes após o 25 de Abril. Porém, esse pudor (até certa medida compreensível) tem permitido silêncios que se tornam cada vez mais insuportáveis.
Cinquenta anos após o 25 de Abril, os portugueses conheceram a liberdade, mas os angolanos ainda não. Angola fará o seu caminho, mas o mínimo que Portugal deve ao povo angolano é esfriar as relações diplomáticas com o regime cleptocrata que tanto o oprime. É prioritário o incentivo à transição democrática de forma pacífica, com a realização de eleições verdadeiramente livres, para além da séria condenação das violações de direitos humanos cabalmente documentadas.
Leonor Caldeira