Só no último sábado, negro como são agora todos os dias para milhares de angolanos, foram a enterrar em dois cemitérios de Luanda, Mulemba e Camama, mais de 100 pessoas. A semana passada foram registados mais de 1000 óbitos e os coveiros já deixaram de ter direito a folga. Os medicamentos começam a escassear nas farmácias, por falta de recursos para os importar, e os proprietários das casas mortuárias não têm mãos a medir.
O número de cadáveres que chegam diariamente às morgues, superlotadas e sem um mínimo de condições de higiene, pode não refletir as estatísticas fornecidas pelos serviços dos cemitérios oficiais. “Falta apurar os enterros nos cemitérios clandestinos”, reconhece uma fonte do governo provincial de Luanda, que pede para não ser identificada.
Nos corredores dos hospitais da capital angolana estendem-se, estiradas no chão, centenas de mulheres, desesperadas com o estado de saúde dos filhos. São oriundas, sobretudo, da periferia de Luanda, e os seus gritos refletem o ambiente fúnebre que se instalou nos subúrbios da capital.
“Estão a morrer em média mais de 80 crianças por dia e, nalguns casos, nos braços das mães”, revelou ao Expresso uma fonte do Ministério da Saúde, que não quis ser identificada.
“Como é que o Ruanda, um país com um PIB de 16,37 mil milhões de dólares ( dez vezes menos que Angola) reduziu a taxa de mortalidade infantil, e com parcos recursos financeiros consegue obter indicadores satisfatórios, quando há uma década possuía indicadores piores que Angola?”, pergunta a mesma fonte do governo provincial.
O dramatismo do número de óbitos coloca logo em foco a febre amarela. Mas pior do que esta é a malária e a cólera, que, perante um despertar tardio das autoridades, está a matar muitas crianças e adultos.
O Governo, que recusa declarar o estado de emergência, disponibilizou 30 milhões de dólares (26 milhões de euros) para a compra de meios e viu-se obrigado a recrutar de urgência cerca de 2 mil profissionais da saúde - entre médicos, paramédicos e enfermeiros, formados no país e no estrangeiro - para fazer face à falta de recursos humanos. “O mais difícil é aumentar o número de camas nos hospitais”, reconhece o Ministro da Saúde, Luís Sambo.
No Hospital Pediátrico de Luanda, a falta de camas é gritante, como se vode verificar pelas que estão deitadas no chão. Se a médica Ana Paula Pereira, muitas chegam àquele estabelecimento em estado crítico, tendo que ser submetidas a transfusões de sangue.
“Agora, por causa deste surto de malária, atendemos perto de 400 crianças por dia, quando, há um mês, atendíamos cerca de 100 pacientes”, disse ao Expresso Lina Antunes, diretora clínica do único hospital em Angola que possui um certificado internacional de qualidade em termos de assistência médica.
Sem meios para acudir à avalancha de doentes, os médicos do Hospital Pediátrico fizeram um apelo pedindo luvas, seringas, compressas e soro, nomeadamente, para tentar estancar a morte de crianças, dezenas por dia. Muitos cidadãos associaram-se ao pedido, fazendo apelos semelhantes nas redes sociais.
Perante a falta de quase tudo nos hospitais, causou surpresa nalguns sectores da sociedade civil, nomeadamentre entre profissionais de saúde, a pronta resposta, em medicamentos e outros meios, dada pela Ajapraz, uma organização não governamental, que é considerado um organismo de propaganda do regime. Como há também profissionais que não entendem como é possível a faculdade de medicina da Universidade Agostinho Neto, que forma anualmente cerca de 80 médicos, dispor de um orçamento mensal para despesas correntes que não ultrapassa o equivalente a 400 dólares (350 euros).
COLAPSO DO SISTEMA DE SANEAMENTO BÁSICO AGRAVA O PROBLEMA
“Há determinantes sociais, como a intensidade das chuvas e a acumulação de lixo, que estão a propiciar o crescimento exponencial de mosquitos responsáveis pelo surgimento de várias epidemias”, refere a médica Lina Antunes.
E, entre estas epidemias, a febre amarela, que provocou mais de 160 óbitos desde o surto que eclodiu em dezembro e atingiu já as 18 províncias do país, passou também a fazer parte das prioridades das autoridades. Tanto mais que o sistema sanitário de Luanda está muito degradado, com lixo acumulado nas ruas há mais de um ano, esgotos a céu aberto e valas de drenagem entupidas.
Apesar de se registar um decréscimo do número de casos de febre amarela, a população continua a acorrer aos postos de vacinação, formando, ao relento e à chuva, filas que chegam a ter três quilómetros de extensão. Mas há acusações de que a distribuição de vacinas está agora transformada num negócio, no qual entraram algumas clínicas privadas, que nalguns casos chegam a vender a vacina por 8 mil kwanzas – 50 dólares (44 euros) no mercado oficial. “Não se importam que outros morram para fazer dinheiro. Têm de ser julgados e punidos!”, disse, indignado, o padre Albino Paquice.
O médico Zacarias Samuel não tem dúvidas: “A persistência dos atuais indicadores de saúde em Angola é reveladora da falência do Sistema Nacional de Saúde, que exigirá a sua refundação, provavelmente tendo como base outros atores, assim como a assunção plena do primado da ética na gestão dos bens públicos”.
O balanço feito por um médico do hospital militar, que pediu o anonimato, vai no mesmo sentido. “Os números proibitivos sobre a mortalidade infantil e materna, das mais altas do mundo (164 mortes em menores de 5 anos por 1000 nascidos vivos e 320 mortes maternas por 100.000 partos, antes da atual crise), para um país com um PIB de 133,7 mil milhões de dólares em 2014, vieram demonstrar o fracasso da implementação do Plano Nacional de Desenvolvimento Sanitário”.
Expresso