Em Angola, muito parece ter mudado com a passagem de poder de José Eduardo dos Santos para João Lourenço — incluindo a vida do ativista e jornalista Rafael Marques. Se, com o antigo Presidente, era alvo de vários processos judiciais pelas suas investigações incómodas para os mais poderosos do país, o caso muda de figura com o atual chefe de Estado. Agora, Rafael Marques garante que a Justiça vai atrás dos casos que ele próprio denuncia — e, quando se senta num tribunal, é na qualidade de testemunha e não de arguido.
Em entrevista ao programa Sob Escuta (que pode ouvir aqui), horas depois de ter participado na conferência “Justiça e Democracia” organizada pelo Observador com o patrocínio da Câmara do Comércio e Indústria Portuguesa, Rafael Marques diz que João Lourenço é um Presidente que está disposto a mudar “este estado de coisas” e fazer frente à corrupção em Angola. O problema é que o Presidente “não tem como ter mão no MPLA”. “João Lourenço é uma pessoa”, sublinha. Mais que isso, diz, é como se estivessem em lados diferentes da barricada: “Neste momento a maior oposição ao MPLA é João Lourenço. Do mesmo modo que a maior oposição ao João Lourenço é o MPLA”.
Nesse caso, porque é que o presidente do partido não assume uma posição mais dura — obrigando, por exemplo, os deputados que são arguidos em processos a abandonarem a Assembleia Nacional? Porque “precisa do MPLA para a próximas eleições”.
É tudo isto que, na perspetiva do jornalista, justifica que o poder em Angola continue a tomar decisões semelhantes às que eram tomadas sob a governação de José Eduardo dos Santos — como a repressão de manifestações, a detenção de ativistas ou a celebração de contratos suspeitos. A diferença, garante, é que agora a sociedade tem um espaço mais aberto para questionar e esse debate público leva o Presidente a revogar algumas decisões. E, por isso, defende Rafael Marques, João Lourenço precisa de apoio: “Se lhe puxarmos o tapete, o que será de Angola?”. “É meu dever apoiar esse esforço porque sou pela democracia e sou pela mudança”, assume.
E isso significa que Lourenço está a fazer tudo bem, como quase transparece do discurso optimista do ativista? Rafael Marques admite que não. Diz, por exemplo, que não basta que Isabel dos Santos tenha sido exonerada da Sonangol — é preciso obrigar a empresária, filha de José Eduardo dos Santos, a devolver as ações da Galp que, garante, foram compradas com dinheiro do Estado angolano. E como compreender que o homem como o próprio jornalista já descreveu como um “padrinho anti-corrupção” permita que o caso de Manuel Vicente, o ex-vice-Presidente angolano acusado de corromper um magistrado português, continue parado na justiça de Luanda? “Se estiver a protegê-lo, em função do debate que se estabelecer na sociedade, veremos até que ponto irá protegê-lo ou não, se for esse o caso”.
Há pouco mais de um mês, foi condecorado pelo Presidente da República de Angola, João Lourenço. Já fez as pazes com o poder angolano?
Eu não fiz as pazes porque não tinha nenhuma atitude de inimizade em relação ao regime. Eu tinha uma atitude visceral contra a pilhagem do meu país e como cidadão angolano não podia admitir e ver o país a ser saqueado, as pessoas a morrerem à fome por falta de medicamentos básicos, as crianças que não iam à escola por falta de salas de aulas, de professores, de material básico, simplesmente porque um pequeno grupo de indivíduos capturou o Estado e fez do Estado o seu cofre privado. Isso, para mim, enquanto cidadão, era intolerável. Agora, era uma questão pessoal contra os indivíduos que faziam isso? Enquanto cidadão sim, mas enquanto Rafael nunca tive qualquer razão para odeia quem quer que fosse.
Mas ainda como jornalista e ativista, não acha que é, pelo menos surpreendente, que tenha aceitado uma condecoração de um Presidente que, embora tenha marcado uma rutura com o anterior, ainda assim é o mesmo partido, era até do Governo de José Eduardo dos Santos. Não é uma coisa difícil de compreender? Surpreendeu-se a si próprio, se calhar…
Surpreendeu a própria nomeação, mas também aceitei com toda a honra porque é um gesto de aproximação e de aproximação de agendas. José Eduardo dos Santos tinha institucionalizado a corrupção. E João Lourenço não só fez um discurso anti-corrupção como iniciou medidas para institucionalizar a luta contra a corrupção e contra a impunidade.
Mas esse anúncio significa que o grupo de que falava, que saqueou o seu país e contra o qual falava, desapareceu totalmente e não faz parte do Governo de João Lourenço?
Não desapareceu, faz parte do Governo de João Lourenço.
"Eu não fiz as pazes com o poder angolano porque não tinha nenhuma atitude de inimizade em relação ao regime. Eu tinha uma atitude visceral contra a pilhagem do meu país e como cidadão angolano não podia admitir e ver o país a ser saqueado."
Então aceitar esta condecoração não é também fechar os olhos a isto só porque tem um Presidente que acha que é um bocadinho mais aberto?
Não porque ele precisa de apoio para que a sociedade finalmente tenha capacidade para dialogar com o seu próprio Governo e para que tenhamos mudanças pacíficas e para que este Presidente tenha ânimo. Porque neste momento, deixem-me dizer, a maior oposição a João Lourenço provém do próprio MPLA, dos que não querem mudar, dos que querem continuar com a situação de saque. Por outro lado, nós temos uma sociedade totalmente fraturada, dividida. Temos uma oposição incipiente. E como reconstruimos o tecido social se não criamos um espaço de desafogo?
Nós já vamos olhar para esta questão social, que é bastante difícil neste momento em Angola, mas ainda a propósito desta questão: em outubro, alguns ativistas foram detidos numa marcha contra o desemprego. Em agosto, manifestações em várias cidades do país terão sido reprimidas com alguma violência a propósito do mesmo tema. Este é o mesmo Governo que recebeu ativistas e os condecorou. João Lourenço olha para ativistas de forma diferente? Isso também não pesou para si, o facto de isto estar a acontecer e ser a pessoa que quer dar apoio a este Governo e a João Lourenço?
Eu quando digo ‘apoio’, temos de ver qual é a agenda comum aqui. A corrupção é o pior mal da sociedade angolana, que nos tem estado a destruir.
E a repressão de manifestação como esta?
A repressão é uma consequência também da corrupção. O fator fundamental de impedimento da realização da democracia em angola é a corrupção, não é uma questão ideológica. E a repressão serve para quê? Quando falamos, por exemplo, em desemprego, estamos a falar de uma economia política dominada por pessoas politicamente expostas, por pessoas detentoras de cargos ou que foram detentoras de cargos públicos e que não só fizeram grandes fortunas como acabam por dominar a própria economia. E é a essas pessoas que a própria sociedade vai pedir que criem mais empregos. Então, toda a economia de Angola está agarrada a um grupo de indivíduos ligados ao poder e neste momento quem se manifesta — e para não andarmos numa situação… Angola viveu períodos longos de guerra. Neste momento temos um Presidente que diz “eu vou desafiar os meus próprios camaradas para que se mude este estado de coisas”. Eu parto do princípio que ninguém é obrigado, não há nenhum dever moral ou político ou outro para que os corruptos continuem a sê-lo. Para que as pessoas que fizeram parte de uma sociedade, de um grupo, de um partido que destruiu o seu próprio país têm de continuar a sê-lo. Então se nós podemos contribuir para que haja uma mudança de mentalidade de modo a que possamos ter este espaço em que os cidadãos possam falar, possam ter impacto nas decisões políticas que se tomam sobre a vida do país, então é meu dever apoiar esse esforço porque sou pela democracia e sou pela mudança.
É por isso que lhe pergunto sobre estas detenções. Como é que perante uma narrativa que nos apresenta João Lourenço — e ele se apresenta a ele próprio — como um presidente que quer que os angolanos falem e que critiquem e que o espaço público seja muito mais aberto, como é que se compreendem estas detenções numa manifestação?
É um ato de repressão condenável.
Que é responsabilidade de João Lourenço ou não lhe atribui essa responsabilidade?
Nós temos o mesmo aparelho policial. E vou-lhe dar um exemplo: eu denunciei a repressão na altura em que ele visitou a província de Moxico — acho que também foi setembro ou outubro, já não me lembro —, em que a polícia pegou numa série de manifestantes e levou-os para fora da cidade de Luena durante o dia todo e espancou-os. Eu denunciei. O que nós temos agora é maior liberdade, um espaço que nós devemos alargar para denunciar esse tipo de atos que são contrários aos princípios democráticos.
"Neste momento, temos um Presidente que diz 'eu vou desafiar os meus próprios camaradas para que se mude este estado de coisas'"
Mas onde é que o Rafael define essa linha? Como é nós olhamos para qualquer coisa que achemos que é condenável, como por exemplo estas detenções, e onde é que se define a linha do que é a responsabilidade do Presidente ou é porque o poder instituído continua a fazer aquilo que fazia? Senão nunca serão atribuídas responsabilidades a João Lourenço, por esse princípio. Porque podem sempre atribuir à herança que está instalada.
Está enganada e deixe-me explicar porquê. O MPLA está no poder há 44 anos e durante muitos anos uma das condições até à vezes para aceder a um cargo departamental no ministério da educação o indivíduo era obrigado a ter o cartão de militante do MPLA. Então estamos a fazer de toda a função pública, que quase não se distingue do MPLA. E isso não vai mudar em dois anos, temos essa consciência, mas é preciso aproveitar o espaço que existe para, com maior acutilância, pressionar para que essas mudanças ocorram
Mas isso significa que João Lourenço não tem mão no MPLA?
Mas não tem como! João Lourenço é uma pessoa.
José Eduardo dos Santos tinha?
O próprio José Eduardo dos Santos, a dada altura, também já não tinha mão. Porque foram hábitos que se foram calcinando ao longo dos anos. Agora, o que eu sigo sempre aos meus concidadãos: a menos que não tenhamos um papel interventivo, mais proativo, mais dinâmicos, não é um homem que vai mudar a nossa vida.
"Antes, quando eu denunciava casos de corrupção, era logo chamado para ir depor como arguido. Hoje, muitos dos casos que estou a denunciar na época de João Lourenço estão a ser levados a tribunal e já não vou como arguido. E a própria PGR reconhece que as minhas investigações têm ajudado sobremaneira o trabalho que estão a fazer."
O problema é que nos caso daqueles ativistas foi precisamente esse papel proativo que acabou por resultar na sua detenção…
Mas também José Eduardo dos Santos foi obrigado a largar o poder porque muitos sacrificaram-se e foram reprimidos. A liberdade tem um preço muito alto.
Continua a não haver liberdade em Angola?
Continuamos a lutar pela liberdade. Obviamente que não é a liberdade que desejamos. Em dois anos ainda não teremos. Só teremos liberdade em Angola quando os angolanos puderem usufruir de todos os seus direitos de forma plena em cidadania, das suas riquezas, e ser um povo verdadeiramente soberano. E vou-lhe dar um exemplo de porque é que digo que não temos liberdade: Angola gasta mais a pagar os salários de expatriados anualmente do que gasta com todo o setor da Educação. Que liberdade é que nós temos? Liberdade não é só deixar as costas folgadas e não levar com o chicote. Liberdade é podermos, com toda a nossa capacidade, a nossa inteligência, usufruirmos dos recursos que nos são colocados à disposição e construirmos uma sociedade onde vivemos de acordo com um sonho comum e isto não vai acontecer em pouco tempo. Agora, podemos trabalhar, e é isso que é preciso explicar. Não é só uma questão de dizer “pronto, agora já não se reprime, já não se bate”. Porque há muitas formas muito mais violentas de se atacar as pessoas e isso temos de denunciar. Ontem eu participei das Jornadas Contra a Corrupção organizadas pelo Ministério da Justiça de Angola e eu aproveitei para denunciar dois casos. De um cidadão que está detido por menos de 20 cêntimos de euros. Aliás, foi condenado a 4 anos de prisão, foi uma altercação de rua em que ele foi injustiçado, foi espancado por uma turba de ignorantes como ladrão, quando não roubou nada. O juiz condenou-o porque todo o processo estava viciado e eu fui denunciar isso num encontro do Ministério da Justiça. Da mesma forma que aproveitei este encontro para denunciar também a situação de como no município do Cuango, na província da Lunda Norte, um dos municípios mais ricos de Angola em termos de recursos naturais porque é onde há as maiores explorações aluviais de diamantes. Neste município, os mortos pagam pelo funcionamento do hospital. Para serem armazenados na morgue, os familiares têm de pagar em tambores de combustível e dinheiro para o hospital funcionar e ter as morgues.
O facto de poder fazer essas denúncias significa que alguma coisa mudou…
Não é que tenha mudado. Estamos longe de ter as mudanças que desejamos. O que eu refiro e continuo a insistir é que as pessoas façam mais este exercício e se multipliquem as vozes críticas. Antes, quando eu denunciava casos de corrupção, era logo chamado para ir depor como arguido. Hoje, muitos dos casos que estou a denunciar na época de João Lourenço estão a ser levados a tribunal e já não vou como arguido. E a própria PGR reconhece que as minhas investigações têm ajudado sobremaneira o trabalho que estão a fazer.
Há pouco mais de um ano dizia numa entrevista que João Lourenço “prometeu demais” e que não estava a reformar o Estado para garantir a real independência dos poderes judicial e governamental, nem para reduzir os seus próprios poderes como Presidente. Isso mudou?
Não, isso não mudou, continua na mesma.
E não o assusta que o Presidente não esteja a fazer nada para reduzir os próprios poderes ou, por exemplo, para devolver ao parlamento o poder de fiscalização que perdeu?
Muito bem, tocou na questão do Parlamento.
Parlamento esse que tem a maioria do MPLA…
Correto. E eu acabei de denunciar também neste mesmo encontro, e foi amplamente publicitado, o facto de muitos parlamentares do MPLA serem arguidos em processos de corrupção. Eu levantei uma questão: como é que o MPLA pode representar a sociedade com um número crescente de representantes do povo, como se autodenominam os deputados, que são arguidos e acabam por esconder-se na Assembleia Nacional por causa da imunidades? E o apelo que eu fazia era porque é que esses deputados não ajudam o seu partido e o seu presidente, que também é Presidente da República, suspendendo os seus mandatos enquanto respondem pelos processos? Agora, tem é de haver uma dinâmica na sociedade para fazer uma lista desses deputados.
Não bastaria que João Lourenço o fizesse? Ou que o MPLA quisesse fazê-lo?
Mas o João Lourenço também precisa do partido para as próximas eleições. Tem de submeter-se também às reuniões do bureau político e do comité central. O João Lourenço não pode chegar lá e tirá-los do parlamento.
Então não é o João Lourenço que manda no MPLA, é o MPLA que manda no João Lourenço?
Sabe, até há um ano ainda discutíamos a questão da bicefalia…
Agora, supostamente, institucionalmente já não existe.
José Eduardo dos Santos já não é presidente do partido…
Não é apenas isso. Isabel dos Santos foi exonerada da Sonangol, Tchizé foi afastada do partido, Zenu começou a ser julgado esta semana.
Mas não eram os únicos beneficiários da pilhagem em Angola.´
"Eu levantei uma questão: como é que o MPLA pode representar a sociedade com um número crescente de representantes do povo, como se autodenominam os deputados, que são arguidos e acabam por esconder-se na Assembleia Nacional por causa da imunidades?"
João Lourenço não conseguiu, de facto, afastar a presença da família dos Santos?
Conseguiu afastar a família presidencial do pote de mel, mas, por exemplo, na questão de Isabel dos Santos: Isabel dos Santos continua como acionista da Galp. Não há nenhum processo por parte do Estado angolano para cativar a sua participação, proceder ao arresto da sua participação na Galp porque ela nunca pagou o empréstimo que a Sonangol lhe concedeu para entrar na Galp. Então, as ações de Isabel dos Santos na Galp são do estado angolano. Aqui é onde deve haver maior pressão: dizer “bom, não basta ela ter sido afastada da Sonangol”. E os bens do Estado que continuam em posse dela, como a participação na Galp? E está provado que ela não pagou.
Mas o Rafael falava também no pote de mel, “foram afastados do pote de mel”. Ficou lá alguém no lugar deles?
O Governo é o mesmo. Nós temos 35 ministros ou mais.
Então quase voltamos ao início desta entrevista: que diferença faz o Presidente?
A diferença é que neste momento podemos apelar e dizer-lhe diretamente “Sr. Presidente, tem um Governo com muitos ministros a mais, é preciso cortar no Governo”. Neste momento, há um espaço que é possível usar para levantar todas estas questões.
Depois será uma espécie de fé, de acreditar que isso vai fazer alguma diferença…
Não é. Neste encontro do Ministério da Justiça, levantei uma questão importante também, sobre a reforma do poder judicial: como podemos esperar que os juízes que, durante todos estes anos de desvario do corrupção, protegeram os corruptos, de repente tenham uma conversão damascena e sejam eles agora a combater a corrupção? Então, urge que se crie, por exemplo, através dos mecanismos legais e constitucionais existentes, uma secção de juízes, o que seja, dedicada exclusivamente à tarefa de combater a corrupção. Mas que sejam juízes novos porque, como se costuma dizer: vinho novo em odres velhos…
Mas o que é que João Lourenço está a fazer em concreto para travar a corrupção?
Há muitos casos. A Procuradoria Geral, neste momento, está inundada de processos contra funcionários públicos. O que se exige é celeridade. Mas tem havido muitos processos. Há dias houve uma denúncia sobre a ex-ministra das Pescas, [que estaria] envolvida num esquema de corrupção que envolvia a Namíbia. Do lado namibiano já foram detidos indivíduos, do lado angolano só agora é que se iniciou o processo e ainda não há detenções.
"Como podemos esperar que os juízes que, durante todos estes anos de desvario do corrupção, protegeram os corruptos, de repente tenham uma conversão damascena e sejam eles agora a combater a corrupção?"
E isso explica que o processo de Manuel Vicente esteja parado em Angola desde que foi para lá?
É outra grande questão… Porque, seguindo a Constituição, só pode ser julgado passados cinco anos. E aqui a grande questão é porque é que Portugal sabendo disso enviou o processo para Angola.
Portugal acusou-o aqui e tentou julgá-lo. Se o mantivesse cá isso originava…
Portugal é um país soberano. Angola não invadiria Portugal. Portugal enviou porque, do ponto de vista diplomático e das relações comerciais, era conveniente assim fazê-lo.
E também porque, em termos práticos, era praticamente inútil. Manuel Vicente foi acusado em Portugal e Angola recusou sempre levantar-lhe a imunidade ou fazê-lo responder por esse crime cá.
Portugal poderia tê-lo julgado à revelia.
E o facto de Portugal não ter julgado à revelia justifica que Angola não tenha de fazer aquilo que pediu para fazer [julgar o caso em Luanda]?
Em Angola, agora, o argumento é que tem de se esperar pelos cinco anos para depois se poder julgá-lo, porque é assim que a Constituição determina para o ex-Presidente e o ex-vice-Presidente. Mas há outro argumentos que podem ser alegados sobre se…
… se faz sentido se essa imunidade se aplica ou não. João Lourenço e a justiça angolana não têm querido levantar esses argumentos. É da sua convicção que João Lourenço não está a proteger Manuel Vicente?
Mas a sociedade pode fazê-lo. E, se estiver a protegê-lo, em função do debate que se estabelecer na sociedade, veremos até que ponto irá protegê-lo ou não, se for esse o caso.
Mas o Rafael já falou de João Lourenço como o “padrinho anti-corrupção”. Porque é que o “padrinho anti-corrupção” precisa de que se faça um debate intenso na sociedade para fazer aquilo que seria normal num Estado de direito, que é julgar uma pessoa suspeita de corrupção?
É preciso termos cuidado quando falamos, porque é como se as pessoas tivessem o domínio de tudo. Eu conheço bem Angola, são casos com os quais tenho lidado há muitos anos e às vezes eu próprio sinto-me chocado quando são revelados dados e às vezes as pessoas nem têm conhecimento. Por exemplo, a denúncia que fiz há dias do caso do cidadão português que levou 75 milhões de dólares de Angola sem ter prestado nenhum serviço…
A Aenergy…
… e as pessoas imediatamente disseram: “Então, como é que o ministro não sabia?”. Os contratos tinham sido feitos de tal modo que o ministério não tinha de saber o que essa empresa fazia com a multinacional americana.
A General Electric.
Quem determinou isso? Foi, na altura, por autorização de José Eduardo dos Santos até que, um dia, houve um encontro entre todos e se disse: “Não, vocês estão a pagar em duplicado pelo material que nós já fornecemos”. E mais outras questões que se podem levantar… Há uma questão de como a transição foi feita. O MPLA é a mesma estrutura. Mudou o Presidente num contexto em que temos uma oposição extremamente fraca, em que temos uma sociedade civil incipiente, temos uma comunicação social que em grande parte é controlada por pessoas politicamente expostas. Então, o que é que nós fazemos? Aparece um indivíduo que diz: “Eu desafio os meus próprios camaradas”. Se lhe puxarmos o tapete — e eu muitas vezes perguntei isso aos ativistas: “Bom, vamos tirar o João Lourenço de cena e colocamos lá o Bornito de Sousa ou o Manuel Vicente regressa em grande porque o partido diz que preferem os anteriores” — o que será de Angola?
Mas isso significa que João Lourenço é uma espécie de mal menor, que, neste quadro, mais vale mantê-lo a ele lá, apoiando-o, do que tirá-lo e correr o risco de o MPLA escolher outra pessoa?
É um indivíduo que está a tentar com muito boa vontade. Neste momento, a maior oposição ao MPLA é João Lourenço. Do mesmo modo que a maior oposição ao João Lourenço é o MPLA. E, hoje, grande parte da sociedade coloca-se na situação de espectadora e nós temos de ser mais proativos, é isso que tenho estado a dizer. Porquê? Porque o poder foi estruturado do ponto de vista constitucional de tal modo que temos um presidencialismo imperial.
"Qualquer angolano já prevê que as eleições autárquicas ou serão feitas às três pancadas ou não se realizarão em 2020."
Em relação à questão do presidencialismo e da centralização do poder em Angola, vale a pena falar sobre as eleições autárquicas, que são uma promessa que João Lourenço fez em 2018 e que, por agora, estão projetadas para 2020. Ainda assim, este é um processo que ainda está no ar. Não se sabe se vai haver eleições em todos os sítios e se vão ser todos os sítios ao mesmo tempo, por exemplo. Seja como for, acha que esta é uma maneira de promover uma política de proximidade, mais ligada à cidadania, ou existe aqui o risco de também este processo político vir a ser monopolizado pelo MPLA?
Qualquer processo político em Angola tende a ser monopolizado pelo MPLA, que detém todos os mecanismos de controlo da sociedade até à data. Mas é fundamental que se realizem as eleições autárquicas num ambiente de verdadeira aposta na democracia. Digo “verdadeira aposta na democracia” porque estamos já no fim do ano e, se tivermos de realizar eleições autárquicas, como haviam sido inicialmente programadas, já vamos muito tarde. Porquê? Porque as eleições só se podem realizar no tempo seco, aquilo a que nós chamamos o cacimbo, que é de junho a setembro.
Então isso significa que já duvida de que isto vá mesmo acontecer?
Bom, qualquer angolano já prevê que ou serão feitas às três pancadas ou não se realizarão em 2020.
Mas essa questão das “três pancadas” é interessante, porque, já nas eleições gerais de 2017, houve várias acusações, incluindo da sua parte, de que as eleições foram fraudulentas.
Não houve apuramento em 15 das 18 províncias.
Daí a questão: não existe ainda este perigo de, numas hipotéticas eleições autárquicas, isto vir a acontecer mais uma vez? É que, quando falo no risco de monopolização, não me refiro apenas no ponto de vista de os meios de campanha serem mais fortes para o MPLA. Isto tem também a ver com o simples facto de ser preciso contar os votos, não é?
Com certeza. E qual é a solução? E, aqui, mais uma vez, onde está a oposição e onde está a sociedade civil? A oposição, que é a maior interessada nas autárquicas, até para ganhar para espaço político e para começar a dividir o poder controlando autarquias, onde está a oposição? Onde está o grito da oposição?
Ainda recentemente, Adalberto Costa Júnior foi eleito presidente da UNITA. Acredita que é com ele que a UNITA poderá fazer sombra de alguma maneira ao MPLA ou isso não depende de todo da UNITA?
Mais uma vez: enquanto nós estruturarmos a sociedade civil e ficarmos dependentes do João ou do António ou do Adalberto, a sociedade angolana pouco andará. Porque a sociedade efetivamente só crescerá quando for o somatório das inteligências de todos os seus cidadãos e houver canais para que essa inteligência sirva o bem comum. E é isso que é preciso fazer em Angola e não ficarmos reféns da vontade do João, do António ou do Adalberto.
Mas, depois de tantos anos de Isaías Samakuva [líder da UNITA entre 2003 e novembro de 2019], haveria sempre alguma alteração no rumo do partido, não acha? E da maneira como se faz oposição.
O Adalberto está no parlamento há muitos anos. Conhecemos os pronunciamentos do Aldaberto, é um político destacado publicamente. O Adalberto não surgirá com ideias novas porque agora é presidente da UNITA. É o Adalberto que conhecemos.
Não me parece muito entusiasmado…
Eu não sou pelo entusiasmo, eu sou pelos factos e pela atuação.
"Enquanto nós estruturarmos a sociedade civil e ficarmos dependentes do João ou do António ou do Adalberto, a sociedade angolana pouco andará."
Eu digo “entusiasmado” pela esperança de que a UNITA possa dar um contributo nesse despertar da sociedade de que o Rafael fala.
Aqui há uns anos houve grande expectativa quando o Abel Chivukuvuku criou a CASA-CE.
Expectativa gorada…
E vemos hoje o Abel a criar um novo movimento, o PRA-JA, que está em registo. A questão aqui não são as pessoas, são as ideias. E como podemos fazer confluir as pessoas para a implementação de ideias que tirem o país da situação atual? Então, é melhor não seguirmos pessoas, é melhor seguirmos ideias. O que eu prezo — e repetindo mais uma vez para que não haja qualquer confusão — é essa coragem de João Lourenço de criar esse espaço de dizer: “Pronto, avancem com as vossas ideias”. Mesmo onde há repressão. Mas é possível começar a engajar vários setores da sociedade para abordar questões muito específicas e é isso que temos de fazer em Angola. Para que não continuemos a dançar a música tocada pelo Presidente, pelo substituto ou por quem quer que seja. Há um dito popular africano, e de certo modo angolano, que diz que “quando os batuques estão bem afinados, os lobos dançam com as cabras”.
E isso quer dizer exatamente o quê?
Que temos de afinar os batuques, porque, se estiverem desafinados, os lobos vão comer as cabras. Então, neste momento não podemos continuar a olhar para a sociedade angolana como uma sociedade sacrificial, de indivíduos que podem ser conduzidos a qualquer altura para o matadouro, mas antes uma sociedade participativa, na construção da sua vida e na construção da sua polis.
Ainda bem que fala da construção da polis, porque era precisamente de uma megalopolis que queríamos falar, que é Luanda. Luanda hoje é a cidade que mais cresce em população em toda a África, tendo 7,7 milhões de habitantes e com uma média de idades de 20,6 anos. Se Angola tivesse a economia da China, isto não seria um problema, já que teria mais mão de obra para uma economia poderosa. Mas a verdade é que Angola não tem a economia da China, o que significa que há muitos jovens em situação de pobreza, subemprego e desemprego nesta cidade. Isto não é uma bomba-relógio que João Lourenço tem nas mãos?
Estamos todos sentados nessa bomba. Não é uma bomba para João Lourenço, é uma bomba para todos os angolanos.
Mas a minha questão, quando falo numa bomba-relógio para João Lourenço, surge porque sabemos que a economia está de rastos, o desemprego está perto dos 30% e isto afeta inevitavelmente jovens. Noutras zonas do mundo, em África, por exemplo, há situações tumultuosas que surgem por causa de uma mera faísca. Uma revolta de uma população jovem desmotivada, descontente com os seus centros políticos e com fome pode levar a manifestações e a situações tumultuosas. Daí a minha a questão.
Já é assim há muitos anos e por isso é que eu olho para a sociedade não como um sujeito passivo. Tem-se agravado. Há muitos jovens a morrer por causa de falta de assistência básica, a frustração é cada vez maior com o desemprego e a falta de escolaridade de muitos. Então, é uma bomba-relógio. Os russos tinham um tipo de minas de fragmentação que explodem em vários locais, que se dispersa. Isto é o que está a acontecer em Angola.
Mas qual pode ser a consequência da explosão dessa bomba-relógio, se ela de facto explodir?
As consequências que os angolanos têm vivido estes anos todos: mais mortes, mais desgraças, adia-se cada vez mais o futuro do país, mais gerações perdidas. E é esse o quadro que é preciso reverter.
Não teme um tumulto social, de escala alargada?
Nós vivemos mais de 27 anos de guerra civil, das piores em África. E, quando falamos de tumultos sociais, estamos a esquecer que nós matámo-nos uns aos outros da forma mais selvática possível.
"O estado atual da economia também teve o patrocínio de Portugal e de empresas portuguesas que se envolveram na corrupção em Angola e que, em vez de ajudarem a construir, ajudaram a pilhar."
E isso pode voltar a acontecer?
É isso que os angolanos não querem. Qualquer angolano consciente não quer, porque quem serão os principais prejudicados? José Eduardo dos Santos foi-se embora. As filhas foram-se embora. Não ficaram para partilhar os problemas connosco.
E não acha que há esse risco [de uma nova guerra civil]?
Esse risco sempre existiu e sempre houve risco de grandes conflitos em Angola. Angola é um país que sempre viveu em conflito.
Mas a situação também é diferente daquela que diz respeito à guerra civil angolana, em que os lados envolvidos contavam com patrocínios externos de diferentes potência. Não sei como se poderia plasmar uma situação dessas para 2019 ou 2020…
Quaisquer tumultos seriam sempre consequência do estado atual da economia. E o estado atual da economia também teve o patrocínio de Portugal e de empresas portuguesas que se envolveram na corrupção em Angola e que, em vez de ajudarem a construir, ajudaram a pilhar. Também teve o patrocínio da China, que nos endividou cada vez mais por estradas que já se esburacaram todas e por escolas que depois desabaram. Qual é a diferença? A questão não é criar uma situação de pânico, mas tentar encontrar soluções pela via do diálogo. E é isso que sempre faltou à sociedade angolana.
O Governo prepara-se para, nesta altura, para fazer um enorme plano de alienação e de privatização de empresas, algumas de referência em Angola. Num país em que a corrupção continua a ser um problema, isto não é um enorme risco? Quem é que vai controlar quem é que está, de facto, a comprar essas empresas, que são, algumas, dos setores da energia, das telecomunicações, dos transportes, da agricultura?
Qualquer angolano consciente levanta esta questão e, invariavelmente, chega à mesma conclusão: acabarão por ser, eventualmente, os mesmo indivíduos que nos levaram a essa situação, porque são os que têm dinheiro. Neste momento, os investidores não aceitarão.
E João Lourenço não sabe disso?
João Lourenço sabe disso, mas, se não colocar essas empresas em hasta pública, dizem que não quer reformar. Então, ele é preso por ter cão e preso por não ter. No ano passado houve um consórcio que foi criado para a compra de aviões, para criar uma nova companhia aérea, e houve denúncias fortes de que um irmão seu fazia parte desse consórcio. Ele anulou esse consórcio. Agora, a sociedade tem é de ter capacidade de continuar a discutir e investigar o que aconteceu ou acontecerá aos aviões que já foram encomendados. Vão para a companhia de bandeira nacional? E o que é que acontece na companhia de bandeira nacional? Temos agora uma polémica também: o Governo passou uma licença, ou tentou passar uma licença, de exploração de uma terceira operadora de telecomunicações e houve muitos protestos porque se dizia que aquela era uma empresa fantasma. Foi anulado. Então, a predisposição que havia antes de, abertamente, entregar-se a Sonangol à filha, o Fundo Soberano ao filho, os cidadãos já não aceitam. E o próprio Presidente já tem a consciência de que algumas das suas decisões, se toda a sociedade achar que estão erradas, não passarão.
Portanto, a esperança não é que o poder político deixe de tomar essas decisões, é que a sociedade, tendo mais espaço para as denunciar, faça com que elas sejam revertidas, é isso?
E que a sociedade tenha poder de influenciar as decisões que são tomadas sobre a sua própria vida.
Mas os angolanos não têm o direito de querer ter um Governo que já não tome essas decisões? Que não precise de esperar pela contestação para as revogar?
Têm direito e terão esse Governo, a seu tempo. Mas, para isso, terão de construir uma forma. Primeiro têm de lançar novos políticos. É preciso uma mudança estrutural. Não será com os políticos antigos que os angolanos terão um Governo ideal — terão um Governo possível.
Continua a não ter ambições políticas ou acha que está na altura de ser um desses novos políticos e, enquanto membro da sociedade civil, avançar para esses voos?
Eu tenho um compromisso com a Bárbara Bulhosa, com a Tinta da China. Há anos que eu não termino o livro que prometi escrever
O que não faltam são políticos que escrevem as suas memórias…
Não. O meu sonho, e digo sempre isso, é terminar estas lutas, que são de muitos anos, e reformar-me como escritor, e muito cedo, a escrever livros.
Afasta essa hipótese?
Não sou político, não tenho vocação, mas, como cidadão, tenho todo o dever de lutar por uma sociedade justa e isso continuarei a fazer sempre, mesmo como escritor.
OBSERVADOR