Por quê esperou tanto tempo para lançar uma obra sobre as memórias da guerra, que, subitamente, se transformou num “best-seller” e já esgotado?
Não acho que esperei por tempo nenhum. Apenas acho que encontrei agora as condições objectivas e subjectivas para a publicação desse livro. E vale dizer que esse livro não faz parte de qualquer outra agenda que não tivesse que ver com factos por mim vividos. Não o publiquei em função do fim da guerra, das datas, calendários, não tem nada a ver.
É mera coincidência que o livro saia numa altura em que, por um lado, existem esforços para enaltecer a figura de Jonas Savimbi e, por outro, a publicação da senhora?
Se as pessoas tiverem uma ideia do tempo que leva a escrever um livro, talvez seja mais fácil a questão começar a ser colocada dessa forma. Um livro não se escreve numa semana.
O facto de o livro intitular-se “Heroínas da Dignidade I” pressupõe a publicação do segundo?
Sim! A vinda do segundo, do terceiro, do quarto... As minhas vivências, as minhas experiências e as situações por mim testemunhadas são matérias que não se esgotam num livro. No entanto, eu disse para mim mesma que era preciso reflectir tudo isso em livros, sendo esse o primeiro.
O dia 8 de fevereiro de 1976 foi previsível no que a adesão à UNITA diz respeito ou acabou apenas por ser arrebatada pela “onda de então”, ao ponto de deixar a cidade a favor das matas?
Foi a “onda de então”, mas isso não tem nada a ver com a adesão à UNITA. Não é uma data que integra as duas situações. Eu já era da UNITA. A minha família, o meu pai a minha mãe foram os fundadores da primeira célula da UNITA, no Moxico, e, por causa disso, o meu pai foi parar à cadeia de São Nicolau, em 1966, como nacionalista, chamado terrorista na altura. Um ano depois, a minha mãe tinha sido presa pela PIDE-DGS e lá estávamos nós, as crianças, a partir para a cadeia de São Nicolau com os pais. Quando ocorre a eclosão da guerra, nós estávamos no Huambo, como uma família da UNITA, mas nada indicava que havia um projectos para as pessoas seguirem para as matas. São coisas completamente diferentes.
A forma como tudo começou, a formação das colunas e a fuga desordenada, no que caracterizou no livro como o "Okwenda nõ” (Andar à toa, na língua Umbundu), não era o prenúncio de excessos que viriam a seguir?
Não era possível prever, porque, naquela altura, tudo quanto as pessoas estavam a fazer era fugir. Fugir sem um plano, sem um destino à vista. Era muita gente dispersa, colunas atrás de colunas, das zonas urbanas para as matas, numa tentativa para escapar das bombas e balas. Nestas circunstâncias, havia pessoas que tinham ficado nas aldeias, pessoas que, depois da fuga, conseguiram regressar e outras que acabaram integradas na coluna de Jonas Savimbi. Ele tinha, nesta altura, uma sede ou escritório no Bié e, como acabamos fugindo do Huambo para o Bié, lá ficámos integrados.
Falando sobre a Jamba ... o que Bela Malaquias descreve contrasta com o que outros o fizeram. Por exemplo, Jardo Muekália, no seu livro “Angola a Segunda Revolução – Memórias da Luta pela Democracia, escreve, na página 129, que, por volta de Outubro de 1980, "a Jamba era uma base que tinha um ar de vitória, com gente que irradiava confiança, pululando de um lado para o outro ….”
Eu não quero polemizar com aquilo que os outros disseram. Quero apenas dizer o que eu vi e vivi. Creio que, em 1980, estava-se mais no Delta, território da República da Namíbia. A Jamba não tinha ainda a configuração que passou a ter mais tarde, não estava ainda povoada com gente. A Jamba passou a ter uma pujança própria a determinada altura, depois desse ano. Portanto, não pode dizer que tinha já atingido o apogeu em 1980. Mas o que descrevo no livro, o estado de medo e outras descrições, não são da mesma natureza que os aspectos referidos, para se poder fazer uma comparação.
A Jamba era, naquela altura, uma espécie de embrião da futura República Negro-Africana e Socialista de Angola, baseada em paradigmas como o patriarcado, o tradicionalismo e, em certa medida, o obscurantismo? Pessoas como Bela Malaquias e outras, já bastante esclarecidas, conseguiam rever-se naqueles pressupostos?
Pessoalmente não. Houve quem se revisse, mas eu não.
No seu primeiro encontro com Jonas Savimbi, Bela Malaquias, tal como descreve na página 27, diz que “naquela altura, não tinha medo de falar. Dizia o que pensava e sentia”. Passou a ter medo depois daquele encontro?
Não passei a ter medo e aquele foi apenas um dos encontros. Não passei a ter medo, porque eu não sou medrosa. Eu aprendi a não ter medo em casa dos meus pais. A educação que os meus pais me deram é para não ter medo. Se vir bem a minha trajectória, eu acompanhei os meus pais a enfrentar o regime colonial, a enfrentar a PIDE; eu vi como eles lidavam com a situação prevalecente. Eu fui a São Nicolau, vezes sem conta, acompanhei as intervenções do pai sobre situações de injustiça já naquela altura. Agora, isso não significa que eu não tenha cuidado. É preciso distinguir o medo do cuidado. Quando sinto que a correlação de forças não me é favorável, eu prefiro afastar-me. E às vezes evoco sempre o paralelismo que ocorre com aqueles animais que se fingem mortos para não serem mortos. E assim fui passando. E vale dizer também que não me coibi previamente na abordagem com Savimbi, porque eu não supunha que ele tinha as características perversas que passou a revelar depois. Eu não o conhecia e, a dada altura, ele não tinha ainda demonstrado as características como todo o psicopata, que primeira mostra o seu lado angelical, para atrair as pessoas, mas logo que sinta domínio sobre as pessoas, mostra a sua verdadeira face. E como naquela altura não tinha o contexto que passou a existir depois, eu estava completamente à vontade para falar. Mas quando notei que não era bem assim, passei a retrair-me mais.
Como é que eram encaradas as mulheres como Bela Malaquias, que possuíam, já naquela altura, o 5º ano do Liceu, da era colonial?
Muito mal-encaradas e até eram o alvo preferencial de Jonas Savimbi. Porque, se for a ver, a maior parte, se não todas as mulheres que foram queimadas vivas, eram todas formadas. Eles, os dirigentes da UNITA em geral, diziam de boca cheia que “agora é a nossa vez de usar as mulheres do quinto ano”.
Isso é sério, assim nestes termos?
Jonas Savimbi dizia isso em comício e com palavrões que nem vale a pena aqui reproduzi-los.
O poder de Jonas Savimbi passou a ser absoluto? Essa pergunta deve-se ao facto, alegado por Jardo Muekália, de que o poder na UNITA, a certa altura, era colegial, entre o Presidente Savimbi, o secretário-geral Puna e o comandante das FALA, Chiwale. Era esse o triunvirato que mandava?
Como disse, não vou pelas apreciações que os outros fazem ou fizeram, mas por aquilo que eu vi, ouvi e sobre o qual tenho provas. O poder de Jonas Savimbi não passou a ser absoluto, sempre foi. É aquilo que eu disse que a dada altura, quando Savimbi não tinha o domínio completo, da mesma forma que se mostrava amável com todos nós, geria uma situação de alguma permissividade para com os dois que citou. Mas estes não tinham qualquer poder, nem ousavam e digo isso porque vivi com eles; acompanhei de muito perto a teia de relações tecida entre os três, que não era de igual para igual. Era Savimbi quem determinava tudo.
Ainda assim, não será excessivo descrever Jonas Savimbi como um “psicopata narcisista” e "um predador sexual”, como Bela Malaquias o faz no livro?
Não, absolutamente. Não, absolutamente. Não e, na verdade, sobre essa figura, eu podia trazer aspectos com muito mais episódios, evocando nomes de pessoas que ainda estão vivas e que assistiram os vários episódios. A descrição feita por mim, de psicopata narcisista, não tem nada de novo, porque há muitos especialistas que já o fizeram. Eu não sou a primeira e quem quiser ter uma percepção sobre essa realidade basta acessar aos vídeos, às fotos, para ver a expressão facial, ler os seus movimentos e dará facilmente conta. Mas ele não é o primeiro e como ele surgiram vários ao longo da História. Porque o psicopata é caracterizado por um conjunto de padrões, já estudados, e quando uma pessoa cabe no conjunto das descrições, naquelas condutas psicopáticas, a definição é fácil de atribuir.
No livro, Bela Malaquias escreve que Jonas Savimbi queixava-se do tamanho do seu nariz, que não suportava pessoas de boa aparência ou de uma determinada ascendência… Isso era factual?
Várias vezes, nos comícios, fazia referências sobre essa situação, falando, por exemplo, “olha, vocês falam do meu nariz”, numa alusão à suposta zombaria de que era alvo por parte das pessoas. Daí em diante, ninguém podia falar sobre Savimbi, quer positiva, quer negativamente. Era tanta BRINDE por tudo quanto fosse canto, que, se o nome Savimbi fosse ouvido, independentemente do contexto, as pessoas envolvidas acabariam por ter problemas. Para não se correr esse risco, as pessoas inventavam expressões, gestos ou sinais quando estivessem a referir-se a ele.
Todo esse relato, sobre o que se passou no dia 7 de setembro de 1983 e outras situações, são de recolha de informações, de testemunhos, do seu diário pessoal?
Eu estive lá, não precisava de diário.
Mas há passagens do livro sobre as quais diz que lhe foram contadas pela sua irmã Tita...
Sim! Porque ela tinha sido uma sobrevivente daquele sítio para aonde tinham sido degredadas. Ela fez parte do segundo grupo. De tudo o que ocorreu com este grupo, ela fez-me chegar dados escritos pelo próprio punho. Ela tinha sido enviada para o degredo, lugar para aonde foram parar aquelas que tinham escapado da fogueira.
Falando da fogueira ... No livro há uma descrição sobre uma tentativa de Ernesto Mulato em defesa de uma senhora, tendo sido contrariado por Jonas Savimbi. As pessoas eram encaminhadas para a fogueira sem que houvesse quem interviesse, no mínimo para dissuadir Jonas Savimbi? Podia haver engano, não?
Essa pergunta, para quem esteve fora do palco dos acontecimentos, pode ser cabível, mas para quem esteve lá, como eu, é exactamente o contrário. Não se pode falar da possibilidade de engano. Engano há quando se trata de um julgamento, de uma queixa. Mas não quando alguém acorda com uma lista de pessoas, que acha que se trata de “personae non gratae” e que merecem morrer. Antes de ir queimar as pessoas, houve uma reunião prévia, no Jango, por parte dos dirigentes do partido, e saíram da reunião para a parada, para irem queimar as pessoas vivas. É verdade que não sei qual tinha sido o conteúdo da conversa no Jango, muito menos se Savimbi tinha dado a conhecer aos colaboradores mais próximos os nomes das pessoas que, em princípio, seriam queimadas, disso não sei, porque eu não estava lá.
Nem faz a mínima ideia do processo de elaboração da lista das pessoas que seriam queimadas?
Essa lista não era elaborada. Partia da cabeça de Jonas Savimbi. Ele próprio é que determinava que fulano, sicrano e beltrano devem morrer.
O ódio de Jonas Savimbi pelas mulheres devia-se apenas ao seu lado "psicopata", como descreve, ou havia outras causas?
O lado psicopático explica tudo isso. Se alguém se der ao trabalho de se informar como é que um psicopata age e reage vai encontrar respostas. Porque o psicopata tem o ego inflado e quer que toda a gente lhe faça vénia, lhe renda homenagem e quer ser o proprietário de tudo o que entender que deva ter. E quando encontra alguma resistência nessas pessoas, mas que do alto da sua psicopatia entende que, sendo chefe, ninguém lhe pode dizer não, ele mata, porque acha que terá perdido o domínio sobre aquelas pessoas que ousam dizer não. Portanto, aqui não tem nada a ver com o que deve ser, devia ser, com considerações políticas, não. Tem a ver com anomalia mental da pessoa.
Atendendo a laços de parentesco e afinidades na UNITA, como tudo isso acontecia, à luz do dia, na presença de todos, sem que a liderança de Jonas Savimbi tivesse sido “beliscada”?
Isso é mais difícil de explicar. Na minha apreciação, as pessoas viviam debaixo do medo; tinham tanto medo e sabiam que se mexessem uma palha seriam fuziladas. Como ninguém quis ser fuzilado em defesa da sua mãe, esposa, irmão ou filho consentiam e temiam. Há pessoas que andam por Luanda e que viram filhos de tenra idade serem fuzilados, mas o pai continua fanático da UNITA. Quer dizer que se trata de uma situação que, para aquelas pessoas que têm sensibilidade, não tem explicação. Mas para um psicopata não precisa de explicação.
A tentativa de golpe atribuída a Sangumba, Chindondo era apenas uma invenção de Savimbi? Savimbi nunca tinha sofrido uma tentativa de derrube?
Se fosse possível, talvez fosse derrubado lá na Jamba, porque grande parte das pessoas estavam fartas e descontentes com as atitudes de Savimbi e com o rumo que a UNITA levava. Mas as pessoas fuziladas, por exemplo, Sangumba, que até era meu primo, não era da área militar. Era um diplomata, um intelectual, que se encontrava a trabalhar pelo partido nos Estados Unidos e que acabou convocado para a Jamba por qualquer razão que eu desconheço, mas terminou acusado de participar de um golpe contra Savimbi. Sangumba foi morto, porque era benquisto pelas pessoas, tinha proeminência, era um intelectual de fina fibra e essas qualidades faziam confusão a Savimbi. Se virmos bem, todas as pessoas fuziladas por Savimbi tinham sempre algum estatuto social, intelectual ou militar de alto gabarito. É com essas pessoas que Savimbi se preocupava para dizimar. Na Jamba, nunca houve tentativa para o derrubar. E houve uma cena caricata envolvendo três senhoras, entre elas a minha irmã, na altura em que Savimbi a assediava. Foram alvo de uma parada com militares, na qual Tita Malaquias, Eunice Sapassa e uma outra foram apresentadas por Jonas Savimbi como pessoas que estavam a tentar fazer um golpe. Tudo isso para instigar a tropa contra as senhoras. Era impossível fazer golpe, porque ninguém tinha tropas do seu lado.
Falemos um bocado do paradoxo ligado ao facto de, muitas vezes, a UNITA ser apresentada como tendo formado muitos quadros, mas, ao mesmo tempo, uma excessiva promoção do obscurantismo no seio do partido, a julgar pela descrição no livro de Bela Malaquias...
É mesmo um paradoxo. Mas falando sobre essa coisa de formação de quadros, as pessoas devem fazer uma cronologia dos factos. Quando fui para as matas, já tinha feito o 5º ano do ensino colonial e muitas pessoas com idade superior à minha estavam já formadas. Todos esses dirigentes das forças armadas faziam parte daquela nata que vinha do Huambo, alguns já eram furriéis. Muitos pastores vindos das igrejas tinham como ofício ensinar. Esse grupo de gente já formada não tinha sido pela UNITA. Tal como os professores, os pastores das igrejas, numa altura em que não havia um horizonte temporal para o fim da guerra e preocupados com o futuro das crianças, dos seus filhos, passaram a dedicar-se ao ensino. Foram essas pessoas que começaram a dar aulas informalmente, debaixo das árvores, um processo que começou e ganhar corpo até à formalização, que permitiu a formação a vários níveis, do base ao secundário. Depois de um certo nível, eram seleccionados alguns e enviados para o exterior. Mas não sei se passava de 200 o número de beneficiários. Por isso, quando se fala em formação de quadros na UNITA, não se pode perder de vista que grande parte já vinha formada desde a época colonial.
Como se processava o acesso de pessoas para a Jamba, como é que as populações chegavam e que tipo de acolhimento recebiam?
Isso é matéria do meu próximo livro. Assim estarei a esgotar o que ainda está na forja.
Que papel é que as igrejas tinham na Jamba? Dedicavam-se ao ensino do evangelho à luz da cartilha da UNITA?
Isso era muito complexo. Numa primeira medida, as igrejas eram proibidas, porque alegadamente iriam enfraquecer o ímpeto dos soldados. E há um caso paradigmático, que é o do fuzilamento do senhor Sicato, a quem chamávamos Sicatão, simplesmente por ser Testemunha de Jeová. As igrejas eram proibidas, mas depois, com o crescimento da Jamba e com as visitas que as várias delegações estrangeiras faziam, havia toda a necessidade de propagandear a liberdade religiosa. Assim, construíram-se duas igrejas, uma católica e outra protestante, frequentada na sua maioria por mulheres e idosos. Lembro-me que mandava os meus filhos à igreja com o meu pai, já idoso naquela altura. Mas se eu fosse à igreja, podia ser encarada como reaccionária. Apenas a população de uma certa idade, as crianças podiam frequentar as igrejas. Há muita manipulação em relação às igrejas, tendo havido cenas de espancamento de pastores.
Havia casos de fuga bem-sucedida ou tentativa de fuga na Jamba?
Houve, numa altura, entre 1991 e 1992, em que o antigo Quartel-General da UNITA já estava mais ou menos sob abandono, porque a direcção do partido já tinha saído de lá. Tenho o caso de uma sobrinha, o marido e o filho, que tentaram fugir, mas que, depois de perseguidos, o esposo acabou morto. Ela escapou com o filho.
Citou o nome de Eunice Sapassa, fundadora da LIMA, dizendo que se tratava de uma mulher com uma verticalidade sem precedentes no seio da ala feminina da UNITA. Essa forma de a descrever é um ataque às demais que a sucederam e tentaram ou tentam minimizar o papel que ela teve na fundação e condução da LIMA?
Ainda bem que fala em ataque para poder dizer que eu não pretendo atacar ninguém. Essa pergunta é óptima, numa altura em que alguns se sentem atacados. Quando alguém narra factos, tal como eles se passaram, não se trata de um ataque, mas apenas um relato sobre o que testemunhou. Se eu disser que Savimbi matou Eunice é tão verdade que não estou a atacar Savimbi, estás a perceber? Não é ataque, é apenas dizer que A matou B. Quanto a Eunice Sapassa, foi presidente da LIMA, trabalhou e deu o seu melhor em nome da organização. A minha indignação radica no facto de ver hoje pessoas que falam de direitos humanos, da valorização das mulheres, etc. Toda esta narrativa sem que sejam capazes de abertamente dizer que ali foi assassinada uma mulher da estirpe de Eunice Sapassa.
Por que razão acha que há essa omissão por parte das mulheres da UNITA, que não são capazes de denunciar os excessos contra as suas companheiras?
Não gosto de especular, mas o que lhe posso dizer é que optaram por esse comportamento.
Todas as mulheres passaram pelo crivo e porquê?
Todas, eu também. Isto do Crivo não foi uma coisa de um dia apenas. Criou-se mesmo uma máquina ou estrutura para transportar as mulheres de camiões por tudo quanto fossem aldeias e bases mais distantes para a Jamba para o crivo, espaço em que as mulheres eram submetidas a procedimentos que visavam alegadamente despojá-las de mixórdias ou feitiços. Fingia-se que as mulheres possuíam feitiço, havendo mesmo casos em que se dizia que existiam pessoas com feitiço sem que disso tivessem conhecimento, razão pela qual precisavam de passar pelo Crivo. Dizia-se que o feitiço de algumas mulheres estava atrasar o andamento da revolução.
No dia 7 de setembro de 1983, Bela Malaquias ficou mesmo em casa, sem ir à parada, quando havia ordens expressas de Savimbi para que a “polícia” não deixasse ninguém ficar em casa?
Fiquei mesmo em casa. Havia as tais ordens, é verdade, mas fiquei. E estava a supor que os agentes não entrariam de casa em casa, mas acabaram por encontrar-me. Tive de inventar que estava incomodada e, sabe, é como em tudo, num grupo de algozes, há sempre os que se compadecem. E alguém disse “eh pá, deixem lá a senhora”.
No dia seguinte, escreve no seu livro, os agentes da BRINDE tinham afinado a audição, a visão, o tacto e até o olfacto, para denunciar toda e qualquer reacção contrária às matanças do dia anterior. A BRINDE era assim tão omnipresente e omnipotente?
Sim, era. A BRINDE tinha escalões. Uns instruíam outros, havia outros que não eram propriamente membros da referida brigada e havia, por exemplo, a URIAL (um destacamento da JURA, no seio da BRINDE), uma coisa medonha, formada por elementos que chegavam a denunciar inclusive os pais. Todos vigiavam todos e depois havia aquela situação em que quem queixasse mais, mais isento da perseguição estaria, mais nas graças de Savimbi ficaria e mais privilégios podia ter.
Havia essas “guerrinhas” e as pessoas mais avisadas, como eu, procuravam manter equidistância ou auto-isolamento, privando apenas com pessoas da máxima confiança. A minha situação era pior, porque tinha a minha irmã, Tita, entre as próximas que iriam para a fogueira, razão pela qual estava na mira dos agentes da BRINDE, para se certificarem das minhas reacções, positivas ou negativas.
As cinzas das pessoas queimadas eram usadas para untar as prisioneiras?
Não posso dizer que as cinzas das vítimas eram usadas para untar as prisioneiras. Mas apenas retrato que as cinzas foram usadas para aquelas pessoas da segunda leva, quando vieram à parada para serem humilhadas, antes de partirem para o desterro.
No livro faz referência a uma encomenda do Presidente Mobutu a Jonas Savimbi. Como deram conta que se tratava de um garrafão de mixórdias?
Foi o próprio portador, Eugénio Manuvakola, que o disse.
Eram frequentes as correspondências entre o Presidente Mobutu e Jonas Savimbi, para as questões místicas?
Não sei, falo apenas desse episódio. Dos demais, se os houve, não sei dizer.
Tem ideia de quem inventava as intrigas em que estavam envolvidos Eugénio Manuvakola, umas vezes acusado de agente do MPLA, outras vezes visto como estando contra o Presidente Savimbi?
O próprio Savimbi dizia isso nos comícios.
Quais as razões que levaram Bela Malaquias a reagir energicamente ao convite de Lukamba Gato para participar das exéquias de Jonas Savimbi?
Não é possível que pessoas que acompanharam o tipo de vida a que fui submetida lá tivessem o desplante de me fazer um convite para enaltecer Savimbi. Essas pessoas sabem que eu lá andei de cadeia em cadeia, que nem sei como de lá saí viva.
Kamalata Numa, durante um debate televisivo, na fase de campanha para a liderança do partido, antes da realização do XIII Congresso Ordinário da UNITA, disse que “Jonas Savimbi foi muito mal compreendido pelos angolanos” ...
Não tenho nada que concordar ou discordar. Cada angolano faz a sua apreciação com base nos dados que tem. Há quem viu comícios muito sumptuosos, com palavras bonitinhas; há quem esteve lá a passar as passinhas do Algarve e viu o senhor todo nu, no sentido figurado do termo, emite o seu juízo de valor.
Que retrato pode fazer de Samuel Epalanga, o chefe da BRINDE?
Samuel Epalanga era meu primo, já falecido. Ele era o chefe da BRINDE. Sendo pessoa próxima, seria difícil caracterizá-lo, porque gosto de ser isenta. A BRINDE matava, fazia e desfazia e ele era o chefe daquela organização. Mas tudo quanto sei, enquanto chefe da BRINDE, Samuel Epalanga não tomava nenhuma medida sem a chancela de Savimbi; não tinha a autonomia para dizer “hoje, vou buscar fulano ou sicrano para o matar”, porque lhe pediriam conta no dia seguinte. Deixa-me contar um episódio: encontrei uma carta em minha casa, de alguém dizendo que eu era feiticeira, justificando que eu tinha ratos em casa que transportavam bolachas de noite. Peguei na carta e dirigi-me ao Samuel Epalanga. Ele disse-me “esteja calma, que não vai acontecer nada”.
Era carta forjada?
Não. Era uma carta de alguém que pretendia dissuadir… (longa pausa). Se calhar, é melhor ficar para o próximo livro. Permita-me parar por aqui…
Deixa-me perguntar sobre um dos heróis do seu livro, o Telmo, o menino que, aos treze meses, deixou de usar fraldas, para saber sobre a condição de todas as crianças na Jamba.
As crianças são fantásticas, desde que esteja aí a mãe. Cresceram felizes, inocentes com a apanha de Joaninhas, a construção de carrinhos de chapas, dentro daquele esforço para evitar que sofressem tanto quanto os pais. Curiosamente, as crianças, algumas hoje adultas, têm boas memórias da Jamba. Quanto ao meu filho, Telmo, cresceu como as outras crianças do seu tempo. Cresceu com muitas habilidades. Aqui fez Arquitectura, está a trabalhar e está bem. E quanto às influências, deixa-me dizer que muito do que se passou apenas estão a tomar conhecimento agora, nas várias conversas que vamos tendo.
O que é que se lhes ensinava nas escolas, o programa curricular era feito em função da ideologia do partido ou havia algum espaço de manobra para os professores para que o processo de ensino e aprendizagem fosse livre da política?
Nem por isso. Eu fui professora. Os programas eram elaborados pelos professores. Tinha o tio Chingufo, que era um dos directores, e outros professores que elaboravam os programas. Agora, a parte ideológica também havia, mas para o efeito havia a organização infantil, a Alvorada, onde as crianças eram doutrinadas.
Hoje, não tem mágoas, lida bem com todo o pessoal da UNITA ou, tal como fazia na Jamba, prefere resguardar-se?
Isolo-me de alguns círculos, de algumas pessoas, sobretudo daquelas que tiveram o desplante de me apontar uma arma.
Estão vivas, a viver aqui em Luanda?
Sim, estão vivas. O Kami, o Beja, um tal de Massanga (não confundir com filho de Savimbi, que era muito novo na altura). Fui também ameaçada por Vinama. Há pessoas com quem lido normalmente, até porque uma boa parte é parente. Não me sinto confortável a frequentar ambientes em que estejam aquelas pessoas, na medida em que há a tendência de reconstituição dos ambientes em que eu vivi.
Como vê a UNITA sob a liderança de Adalberto Costa Júnior. Acha que o partido devia fazer um pedido público de desculpas a todas as mulheres angolanas?
Sobre as duas perguntas, gostaria deixar ao critério da própria UNITA. E sobre a primeira, deixa-me dizer que não ando preocupada com isso.
Como encara as reacções ao seu livro, recebeu ameaças ...
Recebi ameaças de morte e já fiz participação aos órgãos competentes. Gostaria de deixar o assunto para os órgãos que estão a fazer o seu trabalho.
Bela Malaquias desvaloriza declarações do líder da UNITA
A ex-jornalista, da extinta Rádio Vorgan, afecta à UNITA, Florbela Malaquias, autora do livro “Heróinas da Dignidade”, desvalorizou, domingo, em Luanda, as declarações de Adalberto Costa Júnior, presidente da UNITA, que enquadrou a publicação como mero exercício da liberdade de opinião.
“Não se trata de mera opinião, baseei-me em factos e sobre os quais existem pessoas vivas que podem comprovar”, disse em entrevista ao Jornal de Angola a antiga militante da UNITA, também conhecida por Bela Malaquias.
Falando para o programa "Angola Fala Só", da emissora Voz da América, na semana passada, referindo-se às ameaças que a autora recebeu e ao exercício literário, o líder da UNITA tinha declarado que “essas ameaças não vieram da UNITA, que respeita a liberdade de expressão e de opinião de todos”. Bela Malaquias refutou as leituras que apontam para suposto ataque contra a figura de Jonas Savimbi, tendo defendido a necessidade da preservação da memória e da verdade sobre as vivências e experiências que tiveram lugar na Jamba (antiga base da UNITA enquanto guerrilha).
"Quando alguém narra factos, tal como eles se passaram, não se trata de um ataque, mas apenas um relato sobre o que testemunhou. Se eu disser que Savimbi matou Eunice Sapassa, é tão verdade que não estou a atacar Savimbi, nem estou a opinar porque se tratam de factos”, sublinhou.
Quanto às ameaças de morte, através de telefonema anónimo, a autora do mais recente best-seller revelou ao Jornal de Angola que o autor está identificado, apesar do anonimato, mas defendeu que, de momento, cabe aos órgãos competentes fazer o seu trabalho.
Sobre o livro, cujas 1500 exemplares da tiragem inicial esgotaram, pouco depois da publicação, Bela Malaquias afirmou que está já na forja uma segunda edição com vinte mil cópias para satisfazer a procura e interesse. Questionada sobre eventuais adendas ou inclusão de novos capítulos, Bela Malaquias disse que a segunda edição vai ser a mesma e que vai apenas incluir algumas correcções linguísticas pontuais.
Lançado no dia 26 de novembro, em Luanda, o livro “Heroínas da Dignidade” retrata, de forma clarividente, desnuda, em boa parte, a complexa personalidade de Jonas Savimbi, líder fundador da UNITA, que durante longos anos submeteu a tratamento desumano muitas pessoas, principalmente mulheres, na Jamba.
Nota biográfica
Nascida, a 26 de janeiro de 1959, na província do Moxico, Florbela Catarina Malaquias é licenciada em Direito, pela Universidade Agostinho Neto (UAN), Mestre em Ciências Jurídico-empresariais.
Também conhecida como Bela Malaquias, foi militar das antigas FALA, braço armado da UNITA, na época do conflito armado, tendo chegado à patente de capitã. Exerceu jornalismo na extinta Rádio Vorgan, durante o conflito armado, tendo continuado o mesmo exercício na Rádio Nacional de Angola, na qual, nos últimos anos, chegou a ocupar o cargo de administradora executiva.
Actualmente, dedica-se à advocacia e à escrita.
Jornal de Angola