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Segunda, 18 Novembro 2019 10:12

Governo angolano tem de fiscalizar atividade ilegal dos fazendeiros no sul do país, diz Amnistia

A situação de carência alimentar e dificuldades no acesso à agua no sul de Angola já dura há duas décadas, muito por causa da ocupação ilegal dos terrenos comunitários dos fazendeiros. Em conversa com o JE, o diretor da Amnistia Internacional em Portugal pede maior fiscalização da situação e afirma que as justificações do Governo podem ter “perna curta”.

A fome e a privação de alimentos são o problema mais grave de direitos humanos que a Amnistia Internacional (AI) encontrou entre os pastores Vanyaneke e Ovaherero no município dos Gambos, província da Huíla, Sul de Angola.

No mês passado, a representação em Portugal da Organização Não Governamental divulgou um relatório sobre uma vaga de forte escassez de alimento proveniente da agricultura e pastorícia provocadas pela seca e a pecuária comercial. Segundo o governo, existem actualmente 46 criadores de gado comerciais, que ocupam 2.629 km2 das terras mais férteis, deixando apenas 1.299 km2 de pastagens para os criadores de gado tradicionais. Isto significa que 67% das terras estão ocupadas por criadores de gado comerciais, deixando as comunidades pastoralistas com apenas 33% das terras.

Em conversa com o Jornal Económico, o diretor-executivo da Amnistia Internacional em Portugal, Pedro A. Neto garante que são várias as famílias pastoralistas que enfrentam grandes dificuldades para produzir comida para si e para o seu gado, sendo obrigadas a comer folhas selvagem como alternativa ao combate à fome. A falta de resposta por parte do Governo só piora a situação.

Quais foram as principais motivações para visitar o Sul de Angola?

Angola é um país muito importante para Portugal por todas as razões históricas e porque todas as razões demográficas. Trabalhar em todos os países da CPLP e PALOP é muito importante para nós e portanto fomos lá participar no lançamento de um relatório que foi feito no sul de Angola.

Estivemos na província de Huila e no Vale dos Gambos, uma região onde vivem muitas comunidades rurais que vivem muito da terra, da pastorícia, da criação de gado e, com base no que percebemos, muitas destas terras que foram terras comunitárias durante centenas de anos estão agora a ser assoberbadas e ocupadas por fazendas.

Que conflitos surgiram entre os fazendeiros e as comunidades locais?

Os fazendeiros que se estão a apropriar e a usurpar das terras não estão a fazer com o enquadramento legal.

Em alguns casos, isso até pode ser legal por causa da lei da terra em Angola, mas em termos éticos e direitos humanos há aqui coisas que não se estão a cumprir. As terras são comunitárias, formalmente são do Estado, são para usufruto das comunidades e esse usufruto não está a ser permitido.

Mais grave, muitas das fontes de água – o vale dos gamos é uma zona rica em água – são negadas a essas comunidades por isso começa-se a haver um problema de acesso à agua.

Os fazendeiros facilitam ou colaboram de alguma maneira?

Não. Os fazendeiros não colaboram. Muitos deles chegam a ter atitudes de completa afronta.

No terreno tivemos pastores que nos contaram que haviam fazendeiros – quase nunca eles próprios pessoalmente mas sim os gerentes das fazendas – que para o gado destes pastores poder pastar dentro do território das fazendas tinham que pagar mil kwanzas (1,97 euros) por cabeça por mês. Isto foi há dois anos.

Em 2018, pediam 1,500 kwanzas (2,96 euros) por mês por cabeça e este ano já pediam dois mil kwanzas (3,94 euros). Para nós, em euros, parece muito pouco, mas para as famílias que não tem meios de subsistência é muito. Uma mulher que vai buscar água a um cântaro e entregar numa casa recebe 50 kwanzas (cerca de um cêntimo), para tratar de limpezas, um dia inteiro, ganha 100 kwanzas (20 cêntimos). É muito pouco. Isto para percebemos o income destas pessoas porque vivem numa cultura de subsistência.

Assistimos a crianças e mulheres em subnutrição grave. Mulheres e crianças que não têm os maridos para apoiar porque estão com o gado noutras regiões à procura de pasto e água para os animais. A situação é dramática. Estamos a apoiar com ajuda humanitária de urgência, mas isso não resolve o problema. O que resolve são as terras que foram usurpadas serem devolvidas às comunidades porque é daí que elas sobreviverão.

E como responde o Governo angolano? Tinham noção da dimensão deste problema?

Eles tinham a noção desta realidade antes de irmos lá porque no sul de angola, durante este verão, foi grave em quatro ou cinco províncias no sul de angola. Portanto, isto era uma situação que estava documentada e não era novidade.

Aquilo que na reunião com a secretaria de Estado da Cidadania e Igualdade foi-nos comunicado foi que por vezes tinham dificuldade em monitorizar e fiscalizar os corredores de passagem dentro das fazendas para acesso à agua, dificuldades em fiscalizar o que foi decretado como cedência temporária da terra ou cedência definitiva da terra e quantos hectares. Por vezes os fazendeiros tinham licença para x área mas depois vedavam uma área menor. Nada é fiscalizado.

Esta justificação pode ter “perna curta” porque temos indícios de que os fazendeiros são pessoas próximas do poder, quer local, provincial ou nacional. E digo pode porque isto fomos de testemunhos que ouvimos.

É uma situação que tem que ser revista e o governo angolano tem que ser capaz de fiscalizar isto. Se o governo é capaz de fiscalizar tantas outras coisas, como liberdade de expressão, reunião, manifestação, associação, também consegue fiscalizar estes aspetos.

Saíram satisfeitos da reunião? Acham que vão ser tomadas medidas em relação a esta situação?

Vamos ver. A secretária de Estado pareceu-me uma pessoa conhecedora dos assuntos. Não está em causa a pessoa, até porque ela tem historia de participação cívica e ativa mesmo antes de estar no governo. Está em causa um governo no seu global. Tem que ser garantida que as leis são formuladas de forma justa.

Foi feito um decreto-presidencial para delimitação das terras comunitárias para que sejam tipo reservas para as terras comunitárias para as comunidades. Essa resolução foi de 2018, termina agora, em fevereiro de 2020. Pouco trabalho foi feito até agora. O que vamos pedir é que esta resolução seja prolongada no tempo e que inclua também a sociedade civil – os pastores, as comunidades – para que participem nesta delimitação.

Estas pessoas que vivem lá há centenas de anos é que sabem quais são as terras comunitárias e portanto não podem ficar fora desse processo. Creio que isso pode ser uma solução para este problema que está a acontecer no vale dos Gambos e no município dos Gambos mas também noutros. JE

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