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Domingo, 03 Julho 2016 11:13

Lixo: O negócio galvanizado pelo Estado aguçou o apetite dos mais poderosos

Luanda nunca foi uma cidade famosa em termos de saneamento. Muitos anos antes de termos atingido a maioridade, com uma concepção arquitectónica arcaica, Luanda já era uma cidade descuidada.

Por Gustavo Costa | NJ

Mas, mesmo sob esse deplorável descuido, ainda antes de 11 de Novembro e, logo a seguir ao advento da Independência, Luanda foi sendo sempre uma cidade respirável.

As zonas verdes estavam salvaguardas e eram asseguradas com esmero pelos serviços municipais.

Os espaços livres, que permitiam às crianças e jovens divertirem-se e praticar desporto, eram preservados no centro e na periferia da cidade.

Havia incomparavelmente menos sujidade porque não havia espaço para a anarquia e para abusos de poder na apropriação indevida de terrenos destinados às comunidades.

A privatização ou adjudicação de um parque público a uma entidade privada - como o ocupado pela Jembas na Vila Alice - era um absurdo intolerável.

Ocupar um local de estacionamento destinado a apoiar os utilizadores de um cinema - o Avis - para dar lugar a um prédio, era impensável.

E era impensável porque havia respeito. Não havia o Jardim Botânico que, agora, em boa hora, vai ser criado pela FESA, mas havia o Senado da Câmara, que não permitia que a nossa capital cedesse à actual trafulhice...

Havia disciplina. Havia ordem e sobretudo havia autoridade - o nosso actual calcanhar de Aquiles. Havia, a cargo da antiga Câmara Municipal de Luanda, carros de recolha de lixo a horas certas.

Como acontece agora e não deveria acontecer, não havia mulheres desprotegidas e com filhos às costas, a fingir que limpavam as ruas da cidade em pleno dia quando o trânsito está em efervescência.

Não, não havia nada disso.

Os serventes da época, eram mal pagos mas era de manhã cedinho e não durante o dia, na hora de ponta, que passaram a ser agora todas as horas do dia, que começavam a fazer a recolha do lixo.

Esse serviço, que era público, logo não era feito por entidades privadas, nem por isso deixava de funcionar a contendo dos munícipes.

Não havia empresas privadas, nem computadores, mas sabíamos a hora exacta em que se procedia à recolha do lixo, assim como a hora exacta em que passavam os machimbombos para irmos para o emprego ou para a escola.

Ao fim da jornada, Luanda era uma cidade respirável. Mas, de respirável, passou a ser derrotada pelo caos, que lentamente foi entranhando em todas as suas artérias, propagando, como uma peste, a sua imundície.

À imundície ambiental, juntar-se-ia a imundície financeira. E, em dois tempos, de imundo, o lixo passou a ser milionário.

A sua galopante transformação num negócio galvanizado pelo Estado, acabou, desta forma, por aguçar, ao mais alto nível, o apetite de alguns dos seus agentes mais poderosos.

Estava, assim, enterrado o período em que o conselho de ministros, não se entretinha com "contas de subtrair ou de somar" por causa do lixo.

É verdade que a estrutura dirigente do país não tinha o actual naipe de quadros superiores, mas incorporava na alma uma atitude diferente perante os cidadãos, que não se vê hoje:

Levava o país a sério.

Sem deixar de se debruçar sobre as contas públicas, que eram feitas sem a folha de Excel, não me lembro de ver o conselho de ministros dar nota propagandística do "plano de caixa mensal" do governo - um exercício corrente do "deve e haver", inerente ao dia-a-dia dos comerciantes do bairro ou do mato...

Havia o cuidado de não reduzir à banalização pública, esses afazeres domésticos.

Não me lembro de, naquele tempo, tempo de guerra, ver ou ouvir, como agora acontece em tempo de paz, o conselho de ministros perder tempo com reuniões por causa do lixo.

E não é que não houvesse lixo na cidade. Lixo existia, mas, ao tempo, ninguém ousava pensar na sua existência como um negócio.

Com a câmara municipal como instrumento de saneamento, gestão e controlo do meio ambiente da cidade, o conselho de ministros, nesta matéria, dormia descansado e, portanto, não tinha que reunir por causa do lixo. Sem fazer grande coisa, pelo menos deixava transparecer que tinha mais que fazer...

É evidente, que não éramos os milhões de habitantes, que hoje somos, mas não é por ter o triplo da população de Luanda, que grandes metrópoles europeias, asiáticas ou sul-americanas, deixam de ser o regalo de limpeza que são.

O que sucedeu foi que, aos poucos, fomos construindo um país dirigido com um comando à distância e, esse comando, de quando em vez, encrava por falta de pilhas.

O que sucedeu é que, aos poucos, o país foi crescendo de cima para baixo e a governação acabou por abraçar o autoritarismo, mas esqueceu-se de manter as rédeas da autoridade na mão.

E, foi essa perda de autoridade, com demagogia à mistura, que degenerou no festival de construção anárquicas, que transformam Luanda num grande musseque na vertical e na horizontal.

O que sucedeu foi que, aos poucos, o lixo deixou de ser um dos eixos da política social do sucessor da antiga câmara municipal - o governo provincial - para passar a ser, no plano financeiro, um dos seus principais focos.

O que sucedeu foi que, aos poucos, o lixo foi "engolido" por cima, numa operação que esteve longe, no entanto, de ter sido impulsionada pelo imperativo do saneamento básico, enquanto foco de proliferação de doenças.

O que sucedeu é que alguém concluiu que Luanda mais facilmente ascenderia à categoria das cidades mais limpas de África, se conseguisse convencer o poder político a converter o lixo naquilo que tem sido nos últimos anos:

Um problema de caixa.

E, convencido da justeza desse "milagre", a imundície foi parar ao plano de caixa do conselho de ministros e dele retirou-se argamassa monetária para aloirar os bolsos da maralha...

E, foi assim, que o plano de caixa do lixo, ao prosseguir a sua marcha triunfal rumo à Cidade Alta, passou a tomar conta da agenda das reuniões do conselho de ministros, como se este órgão, não tivesse mais nada para fazer. Falta-nos um Senado da Câmara.

 

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