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Sábado, 07 Novembro 2015 15:15

O cipaio Rafael Marques e os “miúdos” - Filomeno Manaças

A procura de fama a todo o custo nunca foi uma boa opção. Umas vezes damo-nos bem, outras nem tanto. Quando a cegueira na busca da fama é total a fronteira entre a realidade e o ridículo é nula.

Por Filomeno Manaças

Jornal de Angola

Vi por uma das estações televisivas portuguesas o nosso dito activista Rafael Marques num encontro com a cúpula do Bloco de Esquerda. E de repente veio-me à memória a figura do cipaio a prestar contas ao chefe de posto. E era um Rafael Marques todo subserviente, todo submisso. Todo ele empenhado em cair nas graças e pronto a receber novas orientações e conselhos para transmitir aos “miúdos”. Sim, “miúdos”. Foi assim que ele se referiu aos 15  indivíduos quando lhe puseram os microfones e os gravadores à frente. Disse ele: “Desta vez o Presidente José Eduardo dos Santos meteu-se com os miúdos errados…”

Rafael Marques não é o único a  referir-se aos 15 indivíduos como “miúdos”. Também o deputado Leonel Gomes, da CASA-CE, já o fez.

O uso da expressão remete-nos para duas interpretações. Uma primeira em que os apresenta como coitadinhos, inocentes, imberbes. E uma segunda em que, por força dessa condição, se pode pensar que são indivíduos instrumentalizáveis ou que foram instrumentalizados.

Não sabemos se eles próprios quererão ser tratados como “miúdos” e aceitar toda a carga semântica que a expressão em si carrega.

A verdade é que nenhum dos 15 indivíduos tem menos de 18 anos. Para efeitos da lei civil são todos maiores de idade.Não sendo entretanto o caso, importa ainda assim olhar para a lei penal e sublinhar que no ordenamento jurídico angolano a responsabilidade criminal começa aos 16 anos. Angola não é o único país em que tal acontece.

A redução da “idade penal” teve em vista precisamente combater situações em que menores de idade eram compelidos ou instrumentalizados a cometer crimes. É o caso de adolescentes que eram usados por adultos, em vários países, como “mulas” ou “passadores de droga”. Como eram menores e inimputáveis, quando apanhados não podiam ser levados à justiça. E assim a culpa ficava solteira e o verdadeiro criminoso continuava em liberdade.

À guisa de esclarecimento aos leitores é necessário dizer que, por causa dessas situações e tendo em conta a cada vez maior utilização de menores de idade no cometimento de crimes de particular gravidade, Angola segue com atenção a tendência que está a pautar a legislação penal de vários países. Por isso o projecto de Código Penal angolano, que vai substituir o que vigora desde 1886, propõe-se reduzir a idade de responsabilidade criminal de 16 para 14 anos. Os “miúdos” a que Rafael Marques e Leonel Gomes se referem, que não são miúdos, tinham e têm nas “primaveras árabes” a inspiração e o farol para as suas acções e procuraram apoio de vários partidos da oposição, entre eles a UNITA e a CASA-CE. Nada está a ser inventado. Circula nas redes sociais um vídeo que é esclarecedor.

Mais esclarecedor não podia ser o alinhamento de toda a oposição na defesa incondicional da libertação imediata dos 15 indivíduos, sem esconder mesmo o desejo de que não se realize qualquer julgamento e tudo fique em “águas de bacalhau”, esquecendo-se que há em Angola um Estado democrático e de Direito e onde a separação de poderes é um dado inequívoco, devendo pois deixar-se aos tribunais a responsabilidade de julgar se os indivíduos são ou não culpados da acusação que lhes é imputada.

É preciso valorizar a democracia e o Estado de Direito. Democracia não é apenas o direito à liberdade de opinião e de expressão. A democracia não é apenas realizar eleições, não é apenas ter representação política no Parlamento e fazer oposição obstrutiva, desvalorizando todos os actos do Executivo. Não é apenas ter uma comunicação social plural. É também respeitar as regras do Estado de Direito. É não exigir cegamente que a instituição Presidência da República se imiscua naquilo que é a esfera de competência dos poderes judicial e legislativo.

Em democracia o Executivo tem a soberania para governar, a Assembleia Nacional a soberania para legislar e os tribunais a soberania para administrar a justiça. Quem não souber destas questões básicas, não está preparado para viver em democracia e aceitar as regras do jogo que ela implica e que Montesquieu proclamou de forma sublime no longínquo ano de 1748, quando, inspirado no filósofo inglês John Locke, deu ao mundo uma das obras mais emblemáticas que os políticos não dispensam de estudar, “De l’Esprit des Lois”, em que defendeu que “a liberdade não existe se o mesmo homem ou o mesmo corpo de magistratura exercerem os três poderes: o de fazer leis, o de executar as relações públicas e o de julgar os crimes e os diferendos entre os indivíduos, incluindo aqui a figura do Estado”.

O julgamento dos 15 indivíduos  e de mais duas mulheres que se encontram em liberdade está marcado para o dia 16 de Novembro. O tribunal poderá condená-los, absolvê-los, ou fixar diferentes penas para cada um deles, depois de analisar as alegações da acusação e os argumentos da defesa. Da sentença que for ditada, e se, quer a acusação quer a defesa, não estiverem de acordo, pode haver recurso para a instância superior. É para efeitos de recurso que existe hierarquia entre tribunais. O Tribunal Supremo será, neste caso, onde deverá ser interposto recurso. Se da decisão que recair sobre o recurso ainda assim as duas partes, acusação e defesa, se manifestarem contra, caberá apelarem para o Tribunal Constitucional. É assim que as coisas funcionam em democracia e num Estado de Direito. É um absurdo pretender que a instituição Presidência da República se ocupe de assuntos que não são da sua seara. Quem assim pensa tem na sua génese instintos ditatoriais e é uma ameaça à construção da democracia em Angola.

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