As reações negativas vistas nas redes sociais angolanas reduzem-se a lugares-comuns que ignoram os méritos concretos da lei e os problemas estruturais que ela visa resolver, nomeadamente: a proliferação de pseudoigrejas (bizambi-zambi), a comercialização da fé e o extremismo religioso.
1. Controlo da proliferação de pseudoigrejas
No jornal DW África, de agosto de 2024, materia conta mais de 2.000 igrejas informais no país, 80 % localizadas em Luanda. Muitos líderes jovens, sem formação, exploram crentes vulneráveis. Sendo que um relatório da Assembleia nacional conta mais de 1.100 Igrejas reconhecidas e 827 aguardando reconhecimento, com média de cinco igrejas por quarteirão em Luanda.
A proposta ataca o problema da multiplicação desordenada de igrejas por dois caminhos fundamentais:
Primeiro, ao estabelecer critérios mínimos para o funcionamento de cultos religiosos (proibição de cultos em quintais, exigência de templos adequados) e para o exercício do pastorado (exigência de formação superior). Essa medida corrige o vácuo atual, onde bastam dois versículos e carisma para se proclamar líder espiritual. A crítica feita por alguns protestantes de que tais medidas violam a liberdade religiosa ignora a própria tradição protestante, que sempre pressupôs a leitura bíblica letrada e informada, não um exercício anárquico da fé.
Segundo, a lei propõe a extinção de denominações religiosas que se dividam por conflitos de liderança. Hoje, disputas internas entre líderes geralmente terminam na fundação de novas igrejas, com justificações teológicas superficiais para disfarçar brigas por poder e recursos. Isso tem contribuído para o caos espiritual e organizacional — como se verifica, por exemplo, no caso da Igreja universal e da existência das diversas igrejas surgidas de divisões.
Ao prever a dissolução automática das denominações em conflito, a nova lei cria um incentivo para que os impasses sejam resolvidos por mediação — pois, neste novo quadro, ambas as alas perdem o estatuto legal se não encontrarem consenso.
2. Combate à comercialização da fé
Ao exigir que as igrejas operem exclusivamente como entidades sem fins lucrativos, a nova lei permitirá auditorias das suas contas — um passo vital para coibir abusos financeiros que hoje correm impunes.
Exemplo flagrante é o da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) em Angola, cuja direção acumulou quase 1 bilhão de dólares em donativos, parte dos quais tentou repatriar para o Brasil. A denúncia foi amplamente divulgada por antigos membros e líderes, com cobertura da imprensa. Relatos também mencionam imposição de vasectomias a pastores e controle rígido das finanças pelos dirigentes estrangeiros, em claro abuso da confiança dos fiéis. ===
Com a nova lei, casos como este poderão ser alvo de sanções, auditorias ou até perda do reconhecimento jurídico.
3. Prevenção ao extremismo e seitas perigosas
Outro mérito da lei é a exigência de que uma denominação religiosa só seja reconhecida se possuir presença física (templo) em todas as 21 províncias. Essa medida visa prevenir a formação de seitas isoladas com comportamentos perigosos — como foi o caso do autoproclamado “profeta” José Julino Kalupeteka, cujo culto isolacionista terminou na morte de agentes da polícia em 2015 e na sua condenação por homicídio e associação criminosa.
A lógica é clara: é mais difícil manipular e isolar 21 comunidades provinciais ao mesmo tempo, o que cria barreiras naturais à lavagem cerebral colectiva.
4. Ponto fraco: o reconhecimento da “religião africana”
O ponto mais problemático da proposta é o reconhecimento da categoria ambígua de “Religião Africana”, que pode abrir portas para a legalização indiscriminada de práticas feiticistas e místicas, muitas vezes ligadas a rituais sem estrutura religiosa propriamente dita. A distinção entre práticas culturais espirituais e religiões organizadas é essencial. A TPA, corretamente, reporta crimes motivados por feitiçaria como crimes comuns, e não religiosos. Essa fronteira precisa ser mantida.
5. Responsabilização de igrejas por crimes dos seus pastores
Outro acerto importante da lei é a revogação do reconhecimento legal de igrejas cujos líderes forem condenados por crimes contra os fiéis. Esses atos, embora cometidos por indivíduos, nascem de um contexto coletivo de manipulação psicológica e abuso de autoridade religiosa, que é sustentado pela comunidade eclesiástica. Logo, a responsabilidade também deve ser coletiva.
Casos reais demonstram que o silêncio dos membros permite a perpetuação dos abusos:
Em 2023, o Jornal de Angola noticiou a condenação do pastor Ernesto Francisco Torres a 6 anos de prisão por violação de uma jovem durante uma suposta “sessão de cura espiritual”.
Em 2024, segundo o O País, o pastor Francisco Tchombembwa, da igreja “Jesus Cristo das Nações”, foi condenado a 4 anos e meio de prisão por abuso sexual de uma adolescente durante um retiro religioso em Lubango.
Também em 2024, denúncias ao INAC revelaram um caso em Cacuaco, onde um pastor se fazia passar por “padrinho espiritual” para abusar de crianças sob a proteção da igreja.
Em 2025, o Primeiro Impacto reportou que o autointitulado reverendo Fernando K. Kamalandua mantinha jovens em cárcere privado sob a alegação de “purificação espiritual” — um caso de abuso de confiança agravado por manipulação ideológica.
Em todos estes exemplos, o padrão é o mesmo: o silêncio institucional da igreja protege o agressor e perpetua o ciclo de vitimização. Fiéis evitam denunciar porque veem a igreja como uma obra coletiva e temem que o escândalo “prejudique a fé” — mesmo que isso custe justiça às vítimas e a integridade da comunidade.
Requisitos para ser pastor.
A exigência de requisitos para ser pastor é aspecto positivo da lei, pois a actividade do pastorado coloca alguém em uma posição de autoridade que tem uma influência psicológica muito forte sobre as pessoas, tanto por conta de prática que possam causar programação neuro-linguística, como oração e canto em grupo. Está autoridade tem sido abusada por pessoas que cometem crimes, ou que procuram apenas usar o pastorado como forma de ascensão social e financeira.
Este poder não deveria, como acontece hoje, estar disponível a qualquer pessoa que se auto-proclama pastor, sem qualquer requisito, sendo que exigir uma formação superior em teologia permite aumentar o custo de participação e filtrar pessoas que que sejam apenas aventureiras.
Historicamente, a maioria das religiões tinham uma forma treinamento para seus pastores ou equivalentes, alguns desde a tenra idade como no caso das Igrejas congregacionista presentes no Planalto de Angola no tempo colonial, sendo que a norma do governo constitui um retorno ao bom senso, pois como pode fazer sentido que qualquer pessoa, incluindo casos de crianças no Brasil, podem se auto-intitular pastes e montar uma igreja ?
Conclusão
A nova proposta de lei é, ao mesmo tempo, necessária e tardia. Ao enfrentar o caos gerado pela desregulamentação da fé em Angola, ela propõe mecanismos eficazes de ordem, responsabilidade e justiça. Ainda que alguns ajustes sejam necessários — sobretudo quanto à categorização das religiões africanas —, o essencial está no caminho certo: religião não pode continuar a ser sinónimo de impunidade, exploração e desordem institucional.
A lei nem se preocupa com o mérito da pratica religiosa individual do cidadão, tem apenas organizar a sua pratica colectiva de modo a reduzir os danos causados pela desordem, os crentes deveriam se encarregar da luta contra os charlatães e não deveriam se preocupar com limites administrativos se representam sentimento religioso legitimo. Roboredo Garcia