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Quarta, 30 Outubro 2024 14:19

O problema da recuperação dos activos de Isabel dos Santos em Portugal

No recente discurso perante a Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas, o Presidente da República de Angola, João Lourenço, foi incisivo a propósito da recuperação de activos angolanos no estrangeiro.

Por Rui Verde*

"No que diz respeito à recuperação de activos, tivemos dois casos de sucesso, em que contámos com a atitude bastante responsável e de respeito à nossa soberania por parte das Autoridades do Reino Unido (...) Lamentavelmente, nem todos os países que aceitaram receber esses activos da corrupção, sem questionar na altura as origens dos mesmos, respeitam hoje as sentenças dos nossos tribunais que são de cumprimento obrigatório. Alguns desses países se arrogam mesmo ao direito de questionar a credibilidade dos nossos tribunais, quase que querendo rever as sentenças emitidas pelos mesmos, como se de órgãos de apelação extra-territoriais se tratassem.[1]"

É óbvio que esta questão se coloca, e se coloca no caso dos activos de Isabel dos Santos em Portugal, não pela existência de decisões de tribunais portugueses que coloquem em causa os tribunais angolanos - o que não aconteceu até ao momento - mas pelo funcionamento ou não funcionamento de várias regras processuais penais. Convém analisar com o detalhe possível o que se tem passado com os activos principais de Isabel dos Santos em Portugal, para se tentar chegar a algumas conclusões.

A VENDA DO EUROBIC

Recentemente, um facto chamou a atenção da opinião pública. A venda da participação de Isabel dos Santos no banco português EuroBic à ABANCA, banco espanhol.

Na venda da participação de Isabel dos Santos ao banco espanhol foram identificadas algumas entidades como tendo Isabel dos Santos como beneficiária última, tratava-se da Santoro Financial Holding, SGPS, S.A. com 25% do capital social do banco e da Finisantoro Holding Limited com 17,5% do capital do banco, totalizando 42,5%[2]. Estas participações estavam sujeitas a um arresto preventivo decretado em vários processos criminais portugueses, designadamente os n.º 210/20.4TELSB, nº 26310/21.5T8LSB e nº 10314/22.3T8LSB.

Aparentemente, segundo a informação pública disponível, o montante recebido por Isabel dos Santos pela venda à ABANCA, cerca de 127,5 milhões de euros, terá ficado arrestado nos termos anteriores de participação,[3]embora os termos exactos não sejam totalmente claros.

Em relação a este activo e à sua eventual recuperação, colocam-se duas questões. A primeira é a natureza do arresto preventivo realizado à ordem de processos criminais.

O arresto preventivo é uma medida de processo penal, prevista no artigo 228.º do Código de Processo Penal português que procura garantir pagamentos em que o arguido advenha no futuro, quer sejam referentes a qualquer pena pecuniária, custas do processo ou de qualquer outra dívida para com o Estado relacionada com o crime, quer relativos à perda dos instrumentos, produtos e vantagens de facto ilícito típico ou do pagamento do valor a estes correspondente.

Assim, é uma medida provisória que pode ser revogada por um juiz ou declarada extinta. Não entrando em demasiadas considerações legais, o certo é que este arresto não garante factualmente que, no final, o Estado angolano receba qualquer destes montantes, quer por os processos criminais em Portugal não se concluírem, prescreverem ou mesmo por Isabel dos Santos ser absolvida.

Como a situação se apresenta neste momento, o montante só será retirado definitivamente de esfera de Isabel dos Santos em caso de condenação com trânsito em julgado dos processos referidos, o que provavelmente demorará dez anos ou mais.

Outras situações como a prescrição, absolvição ou arquivamento, implicam a entrega dos montantes a Isabel dos Santos.

Além do mais, mesmo em caso de condenação, a verdade é que estes processos correm em Portugal, e os custos a eles associados serão primeiro ressarcidos pelo Estado português.

Efectivamente, há uma fragilidade legal nas medidas tomadas pelas autoridades de ambos os países em relação a Isabel dos Santos, que poderá ter como consequência que com o decorrer do tempo não existam benefícios de toda esta actuação judicial, pelo menos, para Angola.

Outro aspecto, ainda ligado a esta venda, é que ela não se reduziu a Isabel dos Santos, mas sim a 100% do capital do banco.[4] Quer isto dizer que os outros accionistas também venderam as suas posições e receberam os seus montantes. A sua lista é pública, como é público que não são alvo de qualquer processo criminal no âmbito do Luanda Leaks ou aparentados.[5] Não recai qualquer suspeita sobre estes outros accionistas.

O ponto relevante é que são antigos associados de Isabel dos Santos, que com ela fundaram o BIC em 2005 em Angola e, que depois avançaram com ela para o então Banco Português de Negócios (BPN) que compraram e rebatizaram como EuroBic. Por exemplo, a propósito, o Luanda Leaks escrevia: "The bank"s[Eurobic] then-chairman, Fernando Teles, was a dos Santos business partner.[6]"

A questão que fica em aberto, face à informação publicada, é a do relacionamento financeiro entre esses acionistas e Isabel dos Santos, uma vez que são considerados "Business partners" e sobretudo se as autoridades judiciárias se debruçaram sobre o tema. Não havendo resposta pública, presume-se que não exista qualquer relação, mas teria sido bom que essa vertente tivesse sido clarificada.

A conclusão essencial a que se chega é que a recuperação dos activos de Isabel dos Santos em relação ao Eurobic pode acontecer a longo prazo, mas é muito frágil.

EFACEC

Outro activo conhecido era o da EFACEC. A história é conhecida e actualmente contestada por órgãos fiscalizadores do Estado português.[7]Não seguimos a posição do Tribunal de Contas português a este propósito. Na realidade, na altura, a nacionalização da companhia era a melhor forma de salvaguardar a permanência da empresa e os postos de trabalho. É preciso não esquecer o impacto mediático do Luanda Leaks e de toda a investigação à volta de Isabel dos Santos que funcionou como um vórtice que tudo fazia desaparecer. As questões que o Tribunal de Contas coloca poderão ter sentido a jusante da decisão, em problemas de gestão pública, em desatenção posterior, mas, no momento, foi a melhor decisão possível.

O certo é que a EFACEC foi nacionalizada pelo Decreto-Lei n.º 33-A/2020, de 2 de Julho. De acordo com este normativo, apenas haverá direito à indemnização de acordo com o valor dos respectivos direitos, avaliados à luz da situação patrimonial e financeira da pessoa colectiva à data da entrada em vigor do acto de nacionalização, sendo que no cálculo da indemnização a atribuir aos titulares das participações sociais nacionalizadas, o valor dos respectivos direitos é apurado, tendo em conta o efectivo património líquido (art.ºs 4.º e 5.º da Lei n.º 62-A/2008, de 11 de Novembro). Ora atendendo ao que o Tribunal de Contas diz no seu relatório agora apresentado, segundo o qual foi necessário um "financiamento público de 484 milhões de euros, havendo o risco de subir até aos 564 milhões de euros[8]", facilmente se conclui que o valor à data da nacionalização era negativo, não havendo nada a indemnizar aos proprietários da empresa (Isabel dos Santos) ou a quem esta deva por força de qualquer processo criminal (Estado angolano).

A situação da EFACEC é linear. Nada será devolvido ao Estado angolano, porque a empresa estava em situação líquida negativa quando foi nacionalizada.

NOS

Finalmente, com relevo na ordem jurídica portuguesa, temos a participação de Isabel dos Santos na NOS. A informação oficial da empresa dá conta que em Março de 2024, a posição de Isabel dos Santos correspondia a 26,7% através da ZOPT, SGPS, S.A. por conseguinte, às sociedades Kento Holding Limited e Unitel International Holdings, BV, bem como a Isabel dos Santos, sendo (i) a Kento Holding Limited e a Unitel International Holdings, BV, sociedades directa e indirectamente controladas por Isabel dos Santos, e (ii) a ZOPT, uma sociedade controlada pelas suas accionistas Kento Holding Limited e Unitel International Holdings, BV[9].

A situação da posição de Isabel dos Santos nesta empresa merece alguma atenção, porque sofreu uma evolução assinalável, que, provavelmente, terá passado despercebida a muitos.

Numa primeira fase, em "4 de Abril de 2020, a SONAECOM, SGPS, S.A. ("Sonaecom") detentora de 50% do capital da ZOPT, SGPS, S.A. (doravante "ZOPT"), foi informada por esta sua participada da comunicação recebida do Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa (doravante Tribunal) de proceder ao arresto preventivo de 26,075% do capital social da NOS, SGPS, SA, correspondente a metade da participação social na NOS detida pela ZOPT e, indirectamente, pelas empresas Unitel International Holdings, BV e Kento Holding Limited", controladas pela Eng.ª Isabel dos Santos.[10]"

Depois, "em Setembro de 2022, a Sonaecom informou que em reunião da Assembleia-Geral da ZOPT se deliberou proceder à amortização da participação da Sonaecom naquela sociedade e à restituição das prestações acessórias efectuadas pela Sonaecom, por uma contrapartida que inclui a entrega das acções representativas de 26,075% do capital da NOS. Em decorrência da referida amortização, que ficou dependente dos trâmites legais aplicáveis, a Sonaecom deixa de ser accionista da ZOPT, que passa a ser integralmente detida pela Unitel International Holdings, BV e pela Kento Holding Limited, sociedades controladas pela Eng.ª Isabel do Santos.

Já em Dezembro de 2022, a Sonaecom, no culminar do cumprimento dos trâmites legais, informou que passou a deter directamente 134.322.268 acções ordinárias da NOS, correspondentes a 26,07% do capital social."

O resultado desta evolução é que a participação de Isabel dos Santos deixou de estar integrada num bloco que controlava o capital e a gestão da NOS e a SONAE passou a deter sozinha o controlo efectivo da empresa (37,37%), uma vez que 31,56% do capital está distribuído por outros que não chegam individualmente aos 5%. Houve uma evolução qualitativa de posição de Isabel dos Santos, possivelmente, para pior.

Portanto, a posição de Isabel dos Santos deixou de ser estratégica e de controlo, passando a ser uma posição financeira (possivelmente) "adormecida", enquanto a posição SONAE saiu reforçada.

Sem dúvida que o grupo português SONAE agiu de forma inteligente numa situação complicada, enquanto, a posição de Isabel se degradou em termos de real valorização.

De notar que, no mesmo relatório que se vem citando (1S2024), o Conselho de Administração nota que "não tem conhecimento de eventuais desenvolvimentos no processo de arresto preventivo acima referido." Portanto, parece que o arresto se mantém, mas nos mesmos termos que o arresto do Eurobic, querendo isto significar que as mesmas considerações se aplicam.

CONCLUSÃO

A conclusão a que poderemos chegar é que para o Estado angolano, a probabilidade de obter a recuperação de activos de Isabel dos Santos em Portugal é longínqua em termos de prazo, e depende de várias vicissitudes jurídicas que se podem ou não verificar, havendo, por isso, justificado receio que as palavras do Presidente da República João Lourenço na ONU se concretizem.

Na verdade, só o accionamento do chamado "confisco sem condenação judicial" previsto nos artigos 109.º e 110.º do Código Penal português poderá inverter a situação e levar a um imediato confisco desses activos.

*CEDESA

NJ

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