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Terça, 07 Março 2023 17:18

O comportamento dos juízes, denúncias e investigação

“República dos Juízes” é uma série de ficção brasileira composta por cinco episódios que abordam o Poder Judiciário. “Poder” é o primeiro episódio, “Controle” o segundo, “Vaidade” o terceiro, “Abuso” o quarto e “Corrosão” o quinto. Com a actual crise na Justiça angolana, estamos aparentemente a viver, na vida real, a série “República dos Juízes”.

Por Ismael Mateus

Alguma imprensa angolana (infelizmente não é toda) tem feito o seu papel de denúncia dos casos de abusos de poder e corrupção dos juízes no nosso país. Tanto no Estado democrático, como na estratégia de combate à corrupção, a imprensa exerce um papel fiscalizador e de denúncias públicas sobre crimes, ilegalidades e excessos cometidos pelos diferentes poderes da República, onde se incluem os Tribunais.

A reforma do Poder Judicial e dos Tribunais representa a pedra de base para construir a democracia e o Estado de Direito, mas o papel da imprensa não é menos importante. Quase como um outro poder do Estado, a imprensa tem um poder moderador, através da fiscalização e escrutínio do funcionamento dos três poderes formais (Legislativo, Executivo e Judicial).

E aqui estão os cernes da questão: há no espaço público acusações ao comportamento dos juízes e tais acusações deveriam ser objecto de investigação e inquérito para disciplinar quem tenha prevaricado ou responsabilizar quem ousa acusar sem provas. Tão simples como isso: as acusações são verdadeiras ou falsas? Quem as investiga de modo imparcial? Quanto tais acusações prejudicam a imagem dos Tribunais e a credibilidade dos juízes e do país?

Ao contrário do que o juiz jubilado Raul Araújo pretendeu convencer à opinião pública, o que está em causa nesta crise da justiça em Angola não é a qualidade do trabalho dos jornalistas, nem a suposta interferência do Presidente da República. A questão de base é a veracidade ou não dos factos que têm sido relatados pela Midia, faz mais de um ano. Seguindo o interesse público, a imprensa tem cumprido o seu papel, denunciando para investigação crimes e ilegalidades praticados por juízes. Há um rol de acusações que, a serem confirmadas, envergonham todos os juízes e deitam por terra a luta contra a corrupção. Vão desde eventuais práticas de peculato e nepotismo, venda de sentenças nos casos de Augusto Tomás e Manuel Rebelais e de interferências políticas no caso do "despronunciamento” de Higino Carneiro. Incluem-se também nessas acusações relatos muito detalhados de bens confiscados a acusados no âmbito da luta contra a corrupção que, segundo se diz, passaram para a posse de juízes, que são nominalmente referidos nesses artigos tal como os bens.

O plenário e a inspecção geral do Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ) sempre tiveram a oportunidade de usar essas denúncias públicas para desencadear medidas disciplinares internas (como fizeram, por exemplo, no caso do juiz Agostinho Santos), o que não aconteceu até ao momento, apesar dos pedidos nesse sentido feitos pelos próprios jornalistas que assinaram as denúncias, Associação dos Juízes, Ordem de Advogados e pelos deputados da UNITA.

Ao contrário do que foi dito por Raul Araújo, o perigo para a nossa democracia não vem das denúncias dos jornalistas, nem existe nenhum plano dos jornalistas para derrubarem os juízes. O perigo real também não vem dos conselhos do Presidente da República para que os juízes que não tenham uma actuação ética se demitam, se a sua imagem colocar em causa as instituições do Estado. O perigo real advém, isso sim, da possibilidade de termos uma justiça e juízes sob suspeita, por tráfico de sentenças e extorsão no Tribunal Supremo, ou por suspeitas de desvio de dinheiro e mau uso de fundos públicos no Tribunal de Contas. O perigo real para a nossa sociedade é a possibilidade de estarmos a criar um sistema de Justiça nas mãos de um punhado de gente que não cumpre a sua função, que é a de julgar com imparcialidade, celeridade e equilíbrio. Mais grave ainda, deve ser uma enorme preocupação para a nossa sociedade, a possibilidade das pessoas que detêm o poder no topo do sistema judicial não terem a coragem, autoridade moral e autonomia política exigidas para a função de juízes e membros do CSMJ.

Quando os Conselhos Superiores da Magistratura Judicial e do Ministério Público nada dizem perante acusações tão graves; quando perante elas a Procuradoria-Geral da República também nada diz, a opinião pública vira-se, obviamente, para o Presidente da República que, sim, é o Titular do Poder Executivo, mas também é o Chefe de Estado. O Presidente da República, enquanto Chefe de Estado, "é o garante do regular funcionamento das instituições democráticas” e nessa medida tem de usar os poderes formais e informais que a Constituição reconhece, explícita ou implicitamente, a quem tem a autoridade moral de nomear e conferir posse.

Se alguma crítica deve ser feita ao Presidente da República é o facto de não estar a ter, para o Tribunal Supremo, a mesma atitude que teve para com o caso do Tribunal de Contas. Ao vir expor-se publicamente em defesa do presidente do Tribunal Supremo, o Presidente João Lourenço corre o risco de acabar, aqui sim, envolvido na polémica. Sem os esclarecimentos que são devidos à opinião pública, já que ninguém está acima da lei, os jornais vão continuar a apresentar denúncias de envolvimento de juízes em ilegalidades.

O mais provável é que se juntem a isso os partidos políticos e todos os juízes de boa índole que querem ver tudo bem esclarecido. A declaração política do Presidente a ilibar o juiz presidente do Tribunal Supremo vai virar-se contra o próprio Presidente da República como exemplo de fracasso da luta contra os intocáveis e a impunidade, que era, provavelmente, a mais bem-sucedida campanha do mandato de João Lourenço. JA

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