É no Sul de Angola, nas províncias da Huíla, do Namibe e do Cunene, que vivem os Hereros, povos pastores semi-nómadas. A região atravessa uma das piores secas dos últimos anos e a situação é alarmante. Os Hereros não conseguem estimar com precisão quantos animais morreram por causa da seca, mas sabem que serão milhares.
O soba Bernardo Mussonde, que vive na comuna de Cainde do município do Virei, no Namibe; e Mutili Mbendula, com mais de 80 anos, líder do subgrupo Muhimba, acompanhados de Mucaa Riruaco (neta de Mutili) e do intérprete Martins Domingos Venotchipo (Herero do subgrupo Mukubal, que desde pequeno aprendeu a falar o português), saíram este mês das províncias do Cunene e Namibe, e vieram para Luanda, de onde seguiram para o Brasil.
Protagonistas do documentário Hereros Angola, realizado pelo fotógrafo Sérgio Guerra, Bernardo, Mutili e Mucaa foram convidados a participar no Festival Back2Black, no Rio de Janeiro, onde o filme foi exibido a 17 de Novembro. De regresso a Angola, a Caju esteve com a pequena comitiva e ficou a conhecer melhor o modo de vida e as necessidades deste povo resistente e lutador, que enfrenta uma fase difícil da sua história.
De que forma a seca está a afectar o povo Herero?
Soba Bernardo Mussonde (BM) - A situação é dramática. A seca é muito grave, atingiu o município do Virei e fez com que os animais se deslocassem para outros lugares, tendo alguns acabado por morrer à fome. Nós vivemos da criação de gado e, se os animais morrem, ficamos sem forma de sobrevivência. É um momento crítico aquele que vivemos, porque há três anos que não chove. Os dois maiores problemas são a fome e as doenças como diarreia e cólera. Em todas as regiões que os Hereros habitam, no Sul do país, os seus animais estão a morrer dia após dia, inclusive os animais que eram utilizados para percorrer longos quilómetros e carregar a água. Por causa disso, os Hereros precisam agora de caminhar dezenas de quilómetros a pé, sem certeza de que irão encontrar uma sonda a funcionar na região.
O que é necessário e urgente para mudar a situação?
BM: Precisamos de uma intervenção rápida e forte do Governo: alimentação para as comunidades e técnicos de saúde capazes para combater as doenças. Temos falta de uma cultura de criação de gado avançada e de técnicos e engenheiros para ajudar as comunidades a criarem alimentação para os animais.
Soba Mutili Mbendula (MM) - Estou em lágrimas pelo meu povo por causa da sede, da doença e da fome. Precisamos com urgência que nos ajudem e salvem desses três males.
De tudo aquilo que já viveu, por que diz que a situação está tão complicada neste momento?
MM: No território onde vivo, desde há muito tempo que vivemos com o problema da seca. Mas comparando as secas antigas e as de hoje, acho que as anteriores eram mais normais. Actualmente, vemos os bois, cabritos ou carneiros morrerem todos. Os animais são a nossa riqueza, o nosso consumo. A seca de hoje é muito ruim. Onde nós estamos, só há uma única sonda e já não capta água suficiente para a população. A malária ainda existe, mas nunca foi tão grave como a cólera hoje, da forma como a estou a ver, a matar em horas. As pessoas começam por ter uma dor de barriga e passadas algumas horas já morreram. Registam-se também casos de mulheres grávidas que morrem depois do parto e os filhos também.
O que está a ser feito pelas entidades competentes?
BM: O Governo da província tem tentado reduzir os males provocados pela estiagem. Há tanques de água, por exemplo, mas ainda não há água em volume suficiente para satisfazer as necessidades de todos. É preciso fazer furos em todas as localidades dos municípios atingidos pela seca, e não apenas em algumas. O município do Virei é muito extenso. Queremos que esses sectores sejam todos atendidos. A seca actual eliminou muitos animais. O Virei é uma área de muita pecuária, mas não há mais capim para os animais comerem.
MM: Existe uma sonda antiga no Erora, onde ainda é possível encontrar alguma água, em pouca quantidade e muito salobra. No ano passado, o Governo Provincial do Cunene realizou uma nova perfuração no solo, com uma outra sonda, e inicialmente a água chegou a jorrar com boa qualidade. Mas a alegria durou pouco. Em apenas duas semanas a sonda quebrou e a água deixou de jorrar. A situação na região do Erora, que já era difícil pela longa distância a percorrer para se chegar até esta sonda, é agora de absoluta calamidade. Enquanto a sonda funcionou, os Muhimbas enfrentavam longas distâncias com seus animais em busca da água. Agora não há animais e, se encontram alguma água que seja, precisam de decidir entre utilizá-la para saciar a sede de suas crianças ou cozinhar algo para comer.
É verdade que foram interditos de entrar no Parque do Iona?
MM: No ano passado, alguns criadores Hereros tentaram descer com seus animais para o Parque do Iona, de mais de 15 mil quilómetros quadrados, localizado no Sul do Namibe, onde existe capim verde e também água de boa qualidade, já que no local foi implantada uma sonda solar automática para apoio aos animais selvagens na área da Espinheira. Fomos proibidos pela Administração do Parque de usar o pasto e de dar de beber aos animais, uma atitude pouco comum na região, onde a solidariedade sempre foi uma característica entre as populações. Por causa dessa proibição, vários criadores decidiram partir em direcção à Namíbia. Seria importante que o Governo levasse sondas de água para os territórios castigados pela seca, para além de alimentos e medicamentos.
Para já, que ajudas têm conseguido?
BM: Até ao momento, somente o município do Virei tem contado com algum apoio do Governo, que fez algumas doações de alimentos. A comida chega em pouca quantidade, não ultrapassa quatro quilos de fuba por família, para além de só chegarem aos habitantes que estão nas áreas próximas à sede administrativa. Esperamos contar com o apoio da sociedade e dos empresários, que poderiam contribuir na doação de comida e na abertura de poços, numa acção de responsabilidade social. Poderia chegar mais tecnologia através do Governo.
MM: No Erora, foi realizada apenas uma pequena distribuição de três quilos de fuba e dois de milho, para algumas famílias que estavam mais próximas do local da doação. Talvez a sociedade não saiba a dimensão trágica da situação que estamos a viver.
Qual a dimensão da propagação da cólera?
MM: A cólera é a doença que mais tem atingido a população. Centenas de crianças têm crises agudas de diarreia. No local, por ser um produto raro, costuma beber-se água sem tratamento. É uma tradição beber sem tratamento. Não temos a sabedoria sobre como se trata a água. Não há hospitais próximos. Há um único hospital no município de Oncócua, província do Cunene, mas é muito difícil para os Hereros, pois não há meios para chegar a tempo ao hospital durante uma emergência.
Com o propósito de contribuir para a busca de soluções, estiveram com especialistas de gado no Brasil. O que lhes disseram?
BM: Estivemos com professores do Instituto de Zootecnia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Fomos recebidos por um professor que se mostrou disposto a dar o seu contributo para ampliar as possibilidades de criação de bois. Ele virá a Angola nos próximos meses, para verificar a viabilidade técnica de trazer para a região uma nova raça de bois, denominada Sindi. A raça é ideal para as regiões tropicais e subtropicais, e o seu pequeno porte é também considerado ideal pelo melhor aproveitamento por área, além do menor consumo absoluto de alimentos. Outra característica é a boa eficiência reprodutiva e, principalmente, a boa capacidade de produção de leite, tanto em quantidade como em qualidade. Para além dessas vantagens tem uma melhor adaptação às condições adversas de clima e de manejo, principalmente alimentar, em condições de seca.
Há muitas diferenças entre os subgrupos de Hereros?
BM: É mais o que nos une... Mukubais, Muhimbas, Mudimbas e Hakaonas são alguns dos subgrupos étnicos que compõem o universo dos Hereros nas províncias do Namibe, Huíla e Cunene, no Sul do país. Cultivamos a solidariedade, dividindo o que houver para comer.
Qual a base da vossa alimentação?
BM: Em condições normais, consiste basicamente em carne, leite, milho, fuba, funge de milho e feijão.
Quando é que os animais são mortos?
BM: Os nossos bois e vacas são para criar e para alimentar as crianças com o leite. E de vez em quando, em alguma festa, para matar. Eles só são mortos para alguma cerimónia. No dia-a-dia alimentamo-nos de leite, mas onde há muita comunidade, sempre aparece carne. Se alguém mata, nós vamos lá comer.
E vendem animais para comprar outros bens?
BM: Neste momento em que a tecnologia avança, estamos a ganhar o princípio de vender animais para comprar milho. Só vendíamos para comprar produtos numa loja. Não é nosso objectivo vender os nossos bois para guardar o dinheiro no banco. Mas, com esta seca e também com a troca de ideias com outras pessoas mais sensibilizadas, nós agora temos essa noção de que se pode vender o boi e meter o dinheiro num banco, porque amanhã poderemos tirar o dinheiro e comprar um boi de outra raça. O leite era só para alimentar as nossas crianças. Alguns trocam o leite por fuba. Mas não é comércio acentuado.
O comércio de trocas é sempre justo?
BM: Nem sempre. Em terra de Hereros, aparece frequentemente algum comerciante para especular. Trocamos os nossos animais directamente com eles, que nos dão o milho e a fuba. E nós damos o boi. Mas eles dizem sempre que o boi está magro e ameaçam não efectivar a troca. E acabamos fazendo o negócio sem poder regatear, porque as nossas crianças estão a gritar. Por exemplo, dois sacos de arroz, milho ou açúcar por um animal. Depois depende do comerciante, ele pode avançar na matemática e dizer que custou mais do que na verdade lhe custou. Por isso é que se as crianças forem à escola, vão aprender o valor do boi e ajudar as famílias a dar a importância devida na vida da comunidade.
Todas as crianças andam na escola?
BM: Nem todas estão em escolas, porque alguns sítios estão isolados e ainda não as têm. Mas todos estamos interessados em pôr as nossas crianças em escolas, para que elas possam conhecer o mundo e voltar depois para proteger as nossas tradições. Queremos muitos técnicos, muitos doutores especialistas e capazes. O facto de Martins [sobrinho do soba Mussonde] ser hoje um intérprete que fala bem o português, para além de conduzir uma viatura, é um ganho enorme para as comunidades dos Hereros. Apesar de ter aprendido o português, ele continua a ser Herero, do mesmo modo que o filho do Mutili, que trabalhou comigo e foi membro das Forças Armadas Angolanas. Com estudos conseguimos aprender a trabalhar e criar os animais, a dar mais importância ao leite e à carne.
Andou na escola? Como foi a aprendizagem?
Mucaa (neta de Mutili) - Eu não andei, mas a escola é algo muito bom. Hoje vejo as crianças e percebo que é muito positiva a aprendizagem que se faz na escola. Não vamos achar que isto vai matar a nossa cultura e tradição. A escola, a modernidade, pode acompanhar a nossa cultura e permanecer com a nossa tradição. As escolas estão dentro da comunidade.
Onde arranjam os materiais para fazer esses adereços?
Mucaa: Os arames e ferro encontramos nas cidades por onde passamos. Depois vamos enrolando e trabalhando para ficar com estas formas. São adereços para as mulheres, para mostrar a nossa feminilidade, tal como a manteiga que usamos para untar o corpo.
Onde arranjam as roupas?
BM: As roupas dos Hereros são feitas por nós mesmos, com peles de animais. Quando vendemos algum animal, costumamos comprar, em lojas do Namibe, casacos para enfrentar o frio. Os sapatos que utilizamos também são comprados. É comum andarmos descalços ou com sapatos feitos de borracha. Nos tempos antigos usava-se couro de boi.
Onde aprendeu a falar português?
BM: Quando estive no serviço militar, na província do Cunene. Tive como grande êxito conseguir participar no derrube das forças racistas da África do Sul. O Governo de Angola ofereceu-me um prémio no valor de 50 mil kwanzas em 1979, pela mão do escritor angolano Rui Monteiro e do ministro da Cultura da altura, e hoje deputado, Boaventura Cardoso. Depois sempre trabalhei com as autoridades governativas e fui falando português.
Os Hereros mudam muito de sítio?
BM: Os Hereros nunca permanecem muito tempo num lugar, pois é raro uma família que não se desloque em busca de um melhor pasto. Se o animal não está a desenvolver com o capim, temos de procurar outra área no mesmo município. Pela questão da saúde, também precisamos de mudar para outro lugar.
É verdade que a entrada de bebidas alcoólicas nas comunidades cria muitos problemas?
BM: Desde os tempos mais antigos que levar álcool para junto dos Hereros foi uma forma de aproveitar a fragilidade da comunidade e apropriar-se dos seus bens, pois a pessoa bebe e não se consegue controlar. É uma fonte grave de problemas.
O que achou do documentário que fez o Sérgio Guerra sobre o povo Herero?
MM: Fiquei totalmente satisfeito com a forma como o Sérgio Guerra levou o nosso corpo lá para ser mostrado no Brasil. Toda a comunidade já tinha visto e ficou contente.
O ar condicionado nos hotéis, a viagem de avião que fizeram ontem. Como é a adaptação a um dia-a-dia tão diferente?
BM: Por exemplo, ao embarcar no Aeroporto Internacional 4 de Fevereiro, em Angola, no momento da passagem pelo raio X, os agentes do SME queriam que tirássemos as roupas e adereços.
MM: Esta não é a minha forma de vestir, eu fico na tradição. As minhas vestes ficam mesmo na tradição.
O povo Herero sempre sofreu e resistiu. Que recordações mais antigas tem de tudo aquilo por que o seu povo já passou?
MM: Eu trabalhei no tempo colonial. Lembro-me do tempo dos portugueses, trabalhei com eles. Muitos antepassados meus morreram e não foram embora com alegria. Ainda hoje choro os meus antepassados de todas as etnias, que tiveram de trabalhar à força, as pessoas eram recolhidas das aldeias para construir os caminhos, as estradas, sempre a mandarem fazer tudo com rapidez. Davam-nos instrumentos de trabalho como a picareta e a pá para abrirmos caminho nas vias. Hoje sinto que estou livre, liberto. Todo o povo está.
Há muitas diferenças entre os Hereros de Angola, da Namíbia e do Botswana?
MM: Todos somos familiares, tanto na Namíbia como nós que estamos em Angola. Entre a Namíbia e Angola tem o rio Cunene e ao longo do rio tem polícia e ordens do Estado, que fazem muitas perguntas para quem quer atravessar de um lado para o outro. Por isso, acabamos por não viajar tanto entre os lugares. Mas somos todos Hereros.
O mundo moderno já está a chegar aos Hereros?
MM: Sim, na verdade está, mas não vai prejudicar as nossas tradições. Nós sabemos que os Estados de todo o mundo têm de respeitar as tradições dos povos.
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