A mãe preferiu ficar em seu país natal. Sabia que a filha teria mais condições aqui e aceitou a separação. Por isso, quando soube que a jovem havia escolhido ser atriz --e não médica, advogada ou alguma profissão mais "promissora"-- não ficou muito feliz.
Apesar da frustração dos parentes, a artista nunca se arrependeu da escolha. Antes mesmo de o Notícias da TV terminar de formular uma pergunta, ela já tinha escolhido uma palavra para definir o momento em que bateu o martelo sobre a carreira. "Foi libertador", relembra ela. "A escolha mais acertada que fiz na vida. Não consigo me imaginar fazendo outra coisa. Quando eu falo de propósito de vida, é nessa profissão que penso."
Embora a resposta tenha sido direta, o processo para a tomada de decisão não foi simples ou rápido. Heloisa nunca pensou em seguir carreira na atuação, apesar de participar de grupos de teatro desde que chegou a Minas Gerais. Ela viajava pelo Estado com algumas peças, se divertia com os textos e gostava da interpretação, mas jurava que largaria tudo em algum momento e rumaria para o caminho desejado pela família.
Não foi isso que aconteceu. Depois de completar os estudos, a atriz decidiu se mudar para Salvador, na Bahia. Lá, se filiou a duas companhias de teatro e, enfim, decidiu que curtia mesmo ser atriz. Quando a notícia chegou aos ouvidos da mãe dela, o caos familiar foi instaurado. Mas a artista entende o lado da mulher: "Ela não teve grandes oportunidades na vida. Então, queria que a filha dela fosse ganhar dinheiro. E a arte não representa isso, né?"
Os pais da atriz se conheceram durante um atendimento médico em Angola. A mãe sentiu uma terrível dor de dente e buscou ajuda. Foi atendida por um estudante de Medicina brasileiro, que trabalhava como voluntário no local.
Do encontro, nasceu um grande amor. Eles passaram mais de uma década no país africano, apesar de nunca terem se casado. Só que a guerra civil --uma disputa de poder entre três grupos que, inicialmente, lutavam pela independência do país-- ficou forte demais, e o pai decidiu trazer a filha pequena ao Brasil para protegê-la. Heloisa tinha dez anos.
Quando cheguei, eu era pré-adolescente. E é uma época muito delicada, porque você quer ser aceito, não quer ser o estranho no ninho. E eu tinha todo um contexto que depunha contra mim, né? O sotaque, ter vindo com refugiada, ser angolana, o fato de as pessoas não entenderem muito o meu contexto familiar --nem eu entendia direito. Então, minha identidade estava sendo formada, e uma coisa forte estava acontecendo na minha vida ao mesmo tempo.
Segundo a atriz, o processo foi doloroso e difícil justamente por ela ter vindo tão nova. Mas os preconceitos da sociedade brasileira em relação à África como um todo também atrapalhou sua adaptação. Houve quem perguntasse se ela andava de elefante em Angola, ou se existiam carros e shoppings na África. Ela só era reconhecida como "a angolana" ou "a africana" na escola, apesar da luta para se fazer reconhecer pelo nome.
Estrela de Angola
Na faculdade, tudo mudou. O dramaturgo Elísio Lopes Jr. encontrou a artista, buscando por um profissional que pudesse largar tudo e assumir uma peça com urgência. Ele precisava de uma substitua, pois a artista que interpretava Elza Soares num musical sobre a cantora teve problemas. Ele escavou as universidades e se deparou com Heloisa. Ela agarrou o papel na hora.
Agora, mais de uma década depois, será Lopes Jr. que pegará o horário das seis da Globo das mãos da colega. Primeiro novelista titular negro na Globo, ele assinará Amor Perfeito, a substituta de Mar do Sertão, ao lado de Duca Rachid e Julio Fischer. "Eu consigo reconhecer a escrita dele só pelas chamadas, porque a gente conviveu intimamente, né? Fico muito feliz que ele esteja nesse lugar. Ele tem um trabalho incrível, e acho que vai contribuir muito para a empresa", afirma ela.
Heloisa protagonizou duas peças musicais com Elísio Lopes Jr., ambas relacionadas ao samba. Numa delas, foi dona Ivone Lara (1921-2018), a primeira mulher intérprete de um samba-enredo. Abriu os guarda-roupas da cantora, pegou peças icônicas e, enfim, sentiu-se tocando um patrimônio da música. Foi aí que, sem querer, voltou a se conectar com parte de sua família. "Meu pai sempre foi muito da música. A gente não assistia a muita televisão. Tudo que eu sei, é por causa dele. Acho que ele nem sabe disso", destaca ela, rindo.
A própria mudança para Salvador também lhe serviu como um reencontro de suas raízes. Ela compara a cidade a Luanda, a maior cidade de Angola e o local onde nasceu. Essa comparação adquiriu um teor mais forte depois de que a mãe dela morreu, enquanto ela ainda morava na Bahia. Ela só reviu a mulher e os cincos irmãos um bom tempo depois de ter saído de Angola.
Depois disso, a busca por suas raízes adquiriu um teor ainda mais importante. E a oportunidade perfeita pra isso caiu praticamente em seu colo. Depois de um papel em Gabriela (2012), na Globo, a atriz conseguiu o papel de protagonista de Jikulumessu (2014), uma novela luso-angolana. Ela voltou ao país natal para gravar as cenas de sua personagem, uma imigrante brasileira que sonhava em ser cantora.
Nos poucos meses em que ficou por lá, conseguiu mudar um aspecto cultural do país: o cabelo. Sua personagem, Djamila, é dita como uma das responsáveis por popularizar o estilo black power em Angola.
As meninas e as mulheres em Angola usavam muita peruca, muitas laces, né? Lá tem uma influência muito grande da cultura norte-americana, como na maioria dos países africanos, mas a caracterização topou usar o meu cabelo exatamente do jeito que ele: volumoso. E isso começou a ser elogiado pelas pessoas. E eu era a protagonista, então sempre estava muito exposta. Isso me emocionou muito. Nunca tinha protagonizado nada aqui no Brasil, então foi muito simbólico.
Definitivamente, a carreira dela se entrelaçou com a vida pessoal da artista. Mas, para ela, o grande trunfo da profissão é o oposto disso: "A gente dá uma descansada de nós mesmos para viver outras vidas", arremata. Assim como a pastora da novela das seis. Notícias da TV