Segunda, 04 de Agosto de 2025
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Segunda, 04 Agosto 2025 20:02

A ditadura em Angola mantém-se firme

Os tumultos de Julho foram uma reacção motivada pela constante e acelerada degradação social e económica em Angola, aliada à contínua degradação política. Qualquer governante não precisaria de outros indicadores para chegar à conclusão de que falhou completamente.

O jornalista húngaro Joseph Pulitzer afirmou o seguinte: “Com o tempo, uma imprensa cínica, mercenária, demagógica e corrupta formará um público tão vil como ela mesma”. A imprensa estatal angolana é, sem resquícios de dúvidas, disto exemplo. Adapto as palavras de Pulitzer: um Governo terrorista, insensível e corrupto formará um povo à sua imagem e semelhança.

Os assaltos às lojas e armazéns de produtos alimentares e bens de primeira necessidade ocorridos na última semana em Luanda, com destaque para a sua periferia, motivaram declarações impetuosas de responsáveis da polícia, do ministro do Interior e, por fim, do Presidente da República.

A greve decretada pelas associações de candongueiros (transporte colectivo de passageiros e mercadorias, também chamados de taxistas) para os dias 28, 29 e 30 de Julho desencadeou a desordem, que se espalhou por outras províncias (Huambo, Huíla, Bengo, Icolo e Bengo, Malanje e Benguela) e culminou com o assassinato de cerca de 30 pessoas. Pessoas esfomeadas e desarmadas, dentre as quais uma senhora, de nome Ana Mabuila, com o filho ao lado que fugia dos disparos de polícias, fuzilada pelas costas, cambaleando enquanto empurrava o seu descendente para que ficasse fora do alcance das balas. O filho, 13 anos de idade, não a abandonou e, assim, viu a sua mãe a morrer, a expirar, a sufocar no seu próprio sangue, dando o último suspiro enquanto expelia sangue. Nenhum bem, alimentar ou doutro género, carregava nas mãos. Só tinha mãos para salvar o filho. Do terrorismo estatal.

João Lourenço, com o seu característico carisma que rivaliza com o de um hipopótamo, defendeu a actuação criminosa da polícia. Enquanto titular do poder executivo e Comandante-em-Chefe das Forças Armadas Angolanas, está sob a sua alçada o Ministério do Interior, que superintende a Polícia Nacional. Constitucional e materialmente, o ministro do Interior é um mero auxiliar do Presidente da República, sem autonomia e, logo, cumpre ordens directa do detentor de todos os poderes em Angola.

O presidente estava de regresso de Lisboa quando a greve e os tumultos começaram. Chegou à capital ao fim da manhã de segunda-feira, dia 28, quando já estava em curso a vaga de açambarcamento dos desesperados. Manteve-se sereno e seguiu a sua agenda, que consistia em realizar a sessão de Julho do Conselho de Ministros, ocorrida no dia 30, que teve a inclusão imprevista de um novo ponto na ordem de trabalhos. Os “actos de vandalismo e arruaça que desencadearam um clima de insegurança generalizada” mereceram uma nota exclusiva nas redes sociais da Presidência, onde assume que “se registaram vários desacatos às Autoridades [...], resultando em 22 mortes, 197 feridos e 1.214 detenções”.

Terminada a reunião, enviou uma nota ao Rei de Marrocos Mohammed VI a felicitar-lhe pelo 26.º aniversário do seu reinado. No dia seguinte, recebeu os embaixadores da Namíbia e dos Países Baixos, que se deslocaram ao Palácio da Colina para se despedirem do anfitrião por terminarem as suas missões diplomáticas. Também fez a típica dança das cadeiras ao exonerar e nomear dois embaixadores angolanos: o do Gana foi para a África do Sul e o da África do Sul foi para o Gana. E como uma mulher e mãe tinha sido assassinada pela sua polícia, era conveniente felicitar as mulheres pelo Dia da Mulher Africana.

Porém, no dia 1 de Agosto lembrou-se que “o país viveu momentos de angústia com os tumultos ocorridos” e, por isso, convinha fazer uma declaração, de preferência em live a ler o texto. A “cara dele tipo nada”, expressão caluanda para referir o cinismo, a despreocupação, a hipocrisia de quem, tendo de demonstrar empatia, assumir responsabilidades e responsabilizar-se, opta pela indiferença. Uma indiferença criminosa, legitimadora de todas as atrocidades.

Fosse apenas o semblante de indiferença e talvez menos grave seria. Lourenço não poupa palavras para atribuir culpas, como manda a tradição do partido. Referiu a destruição de património, assalto e pilhagem como crimes puníveis. Está certo! No quarto parágrafo e seguintes deliciou-se a elogiar e a agradecer as “forças da ordem”, que “actuaram no quadro das suas obrigações”, matando dezenas de pessoas indefesas, completamente desarmadas, por roubarem comida para se alimentarem e para suas famílias. Chamou as vítimas de “cidadãos irresponsáveis” e, recorrendo à velha insinuação da existência de uma mão invisível por trás da pilhagem, acusou de terem sido “manipulados por organizações antipatriotas nacionais e estrangeiras através das redes sociais”.

A lamentação pelas mortes só surgiu no quinto parágrafo, que começa por condenar, mais uma vez, “veementemente tais actos criminosos”. O lamento é claramente sem qualquer sinal de contrição, daí a sequência discursiva, antecedida do elogio aos assassinos.

E finalizou o discurso com reforço do fantasma da manipulação: “Quem quer que seja que tenha orquestrado e conduzido esta ação [sic] criminosa, saiu derrotado e ajudou-nos a todos, ao Executivo e à sociedade, a tomar medidas preventivas e melhores formas de reagir em caso de reincidência, com vista a minimizar os danos sobre as pessoas e o património”, leu Lourenço.

No passado, o Presidente já culpou as vítimas por terem sido assassinadas pelas forças de segurança. Em 2021 tinham passados 44 anos desde o 27 de Maio de 1977 quando Lourenço decidiu quebrar o tabu sobre o holocausto angolano. Perante familiares e sobreviventes das vítimas do 27 de Maio, permanentemente em luto, João Lourenço repetiu a cartilha oficial do partido-único: “Um grupo de cidadãos organizados levou a cabo uma tentativa frustada [sic] de golpe de Estado, matando altas figuras do poder instituído”.

À altura reconheceu que, “no intuito da reposição da ordem constitucional, a reacção das Autoridades de então foi desproporcional e levada ao extremo, tendo sido realizadas execuções sumárias de um número indeterminado de cidadãos angolanos, muitos deles inocentes”. Ênfase para “Autoridades de então”, da qual era chefe António Agostinho Neto, sendo ele mesmo uma destas “Autoridades de então” com o cargo de Comissário Político da 2.ª Região Político-Militar em Cabinda.

Se em 2021 reconheceu que a resposta das “Autoridades de então foi desproporcional e levada ao extremo”, quando se tratava, segundo a versão oficial, de uma tentativa de golpe de Estado, como pode autorizar, elogiar e agradecer a polícia com a “cara dele tipo nada” que em 2025 por terem executado em plena luz do dia mulheres e jovens desarmados e desesperados por estarem a roubar comida ou outros bens de primeira necessidade? Fizeram uma tentativa de golpe de Estado?

Se em 2021 disse que “a postura de um Estado perante situações adversas e de extrema tensão deve ser, sempre que possível, ponderada e comedida, pelas responsabilidades maiores que o Estado tem na defesa da Constituição, da Lei e da vida humana”, em 2025 a postura de um Estado pode ser diferente? Ou não terá sido possível evitar as mortes porque os assassinados estavam armados com caixas de massa, de frango e sacos de arroz? A mulher assassinada nem uma lata de sardinha tinha nas mãos.

A incoerência é tal que, depois de apontar o dedo a culpabilizar as vítimas do 27 de Maio, disse que “não é hora de nos apontarmos o dedo procurando os culpados; importa que cada um assuma as suas responsabilidades na parte que lhe cabe”. Não assumiu responsabilidades, pelo contrário, colocou assassinos e vítimas na mesma Comissão de Reconciliação em Memória das Vítimas dos Conflitos (CIVICOP), dirigida pelos primeiros, ao que se viram forçados a abandoná-la mais tarde.

Uma reacção política sem consciência política

Os tumultos de Julho foram uma reacção motivada pela constante e acelerada degradação social e económica em Angola, aliada à contínua degradação política. Assaltar lojas e armazéns para obtenção de comida deve ser o sintoma incontornável de que um povo já não tem quaisquer esperanças. Qualquer governante não precisaria de outros indicadores para chegar à conclusão de que falhou completamente. Talvez este seja o último sintoma.

Ninguém rouba comida por prazer, diversão ou para passar o tempo. E ninguém manipula a fome.

Entretanto, ficou evidente a falta de consciência política na reacção, apesar de muito esforço do Presidente e seu Governo para ligar o acto a uma conspiração orquestrada por “organizações antipatriotas nacionais e estrangeiras através das redes sociais”.

Uma reacção com consciência política teria atacado instalações fulcrais à manutenção do autoritarismo. Apesar das escaramuças, não foram atacados bancos e portos, colégios de elite e aeroportos, hipermercados e condomínios privados, restaurantes luxuosos ou stands automóveis de luxo, a Unitel ou a Zap. O luxuoso avião presidencial em que João Lourenço viajava aterrou em Luanda tranquilamente no aeroporto 4 de Fevereiro.

A serenidade do Presidente – não confundir com o banho de serenidade – reflecte uma profunda tranquilidade porque os tumultos não representaram sequer preocupação ao regime ditatorial instalado e solidificado ao longo de 50 anos.

O desespero causado pela fome fez as pessoas correrem às prateleiras mais próximas, àqueles empreendimentos erguidos com poupanças familiares, muitos dos quais pertencentes a imigrantes que efectivamente contribuem com a criação de postos de trabalho, mas cujos impostos que pagam não se reflectem em infra-estruturas sociais. São extorquidos constantemente pelos agentes fiscais, que volta e meia passam pelos seus estabelecimentos a exigirem a famigerada “gasosa” sob ameaça de encerramento e revogação das suas autorizações de residentes. Mais uma vez, vítimas!

A falta de esperança do povo angolano é visível no rosto e palavras de qualquer cidadã ou cidadão. Mas, o mais grave tem sido notar que até o Presidente já não tem esperança nenhuma de que Angola tenha futuro. Basta lermos ou ouvirmos os seus discursos, acompanharmos as suas intermináveis viagens pelo mundo sem benefício real para o país. Nem Sérgio Piçarra consegue tapar o rabo do Futuro carregado às costas da Esperança nos seus cartoons porque não há pano que tape a falta de esperança generalizada. E assim estamos oficialmente na era do vandalismo contra vandalismo.

Sedrick de Carvalho é jornalista angolano e ativista dos direitos humanos.

Esquerda.net

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