A mais recente polémica envolvendo a compra dos 600 autocarros é — diante destes muitos casos ignorados pelo próprio Ministério dos Transportes e por órgãos da administração pública — apenas um detalhe que salta à vista num sector onde os indícios de ‘negociatas’ abundam e os indicadores de práticas alegadamente ilícitas costumam ser sonegados pelas próprias autoridades.
Em 2016, por exemplo, através do Despacho Presidencial n.º 279/16, de 15 de Setembro, o governo angolano aprovou, por ajuste directo, a contratação da empresa Asperbras para o fornecimento de 1500 autocarros pelo valor de USD 383 500 000,00 (trezentos e oitenta e três milhões e quinhentos mil dólares norte-americanos), para o ‘Programa de Transporte para Todos, sob gestão do Ministério dos Transportes, cujo objectivo era o de priorizar a mobilidade das escolas do Sistema Educacional de Angola através do desenvolvimento e implementação de um moderno e eficiente serviço de transporte escolar.
A Asperbras, uma sociedade comercial com sede em Montevideu (Uruguai), de acordo com o contrato assinado com o então Instituto Nacional dos Transportes Rodoviários (INTR) — actual Agência Nacional de Transportes Terrestres — contrato esse visado pelo Tribunal de Contas (TdC), a 27 de Agosto de 2017 —, propunha-se a fornecer à República de Angola:
(1) Os referidos 1 500 autocarros, equipados com dispositivos GPS, acrescidos de dez camiões-oficina, sete camiões-guincho, 200 bafómetros/etilómetros; (2) os manuais e formações; (3) os equipamentos e sistemas informáticos para (a) operação da Bilhética, incluindo a emissão de 1 500 000 (um milhão e quinhentos mil) cartões para implantação do Cartão Social Escolar; (4) Monitoramento de Frota; (5) divulgação digital do programa; (6) revisão preventiva de todos os 1 500 autocarros e (7) construção de 18 bases de atendimento (que nunca foram infra-estruturadas conforme se previa).
E mais: a empresa Asperbras, com a qual o Ministério dos Transportes, veio a assinar uma adenda no âmbito do contrato para o fornecimento dos 1500 autocarros — adenda esta guardada a sete chaves até hoje — é também responsável, através de uma das suas empresas veículos (a Grow), pela construção dos três terminais rodoviários de passageiros do Kilamba (em Luanda), no Huambo e Kwanza-Norte.
Nenhum desses terminais, erguidos de raiz, está operacional até hoje, ao fim de dois anos. Só o Terminal Rodoviário de Passageiros do Kilamba custou aos cofres do Estado cerca de dois mil milhões de kwanzas, segundo o secretário de Estado dos Transportes Terrestre, Jorge Bengue,
Com uma área de 13.764 m², o Terminal Rodoviário de Passageiros do Kilamba a foi inaugurado em acto solene, e tinha como objectivo a melhoraria da mobilidade rodoviária em Luanda e facilitar o embarque e desembarque de passageiros de autocarros, com uma estimativa de receber milhares de visitantes anualmente. No entanto, dois anos depois, a infra-estrutura encontra-se encerrada e é mais um exemplo de um elefante branco a céu aberto.
Abamat, S.A
A ABAMAT, SA., foi uma ex-empresa de direito público, criada após a independência de Angola, com o objectivo de gerir as oficinas de autocarros e armazéns de peças do país. Esteve durante 40 anos no mercado, e tinha, no período do partido único, também como parte do seu objecto social a aquisição e importação de veículos, exercendo o monopólio desta actividade.
Em 2015, pouco menos de dois anos antes de ser extinta por decisão do governo de José Eduardo dos Santos — por apresentar “sinais evidentes de degradação física e económica com resultados negativos e custos acrescidos aos cofres do Estado” — a Abamat, S.A viu-se a braços com vários operadores de transportes públicos e privados de passageiros, assim como com outras entidades colectivas alheias ao sector, que se recusavam a pagar uma dívida contraída no âmbito do programa do executivo de reforço da capacidade de oferta de transportes públicos (autocarros) e no de “Ajuda ao Desenvolvimento e Restituição das Viaturas por Acção da Guerra” (camiões).
Entre 2009 e 2011, os vários operadores de transportes do mercado e outras empresas, que não tinham qualquer ligação com o sector dos transportes, haviam assinado com a Abamat, S.A um acordo através do qual se tinham comprometido a pagar os meios adquiridos. Porém, até Março de 2015, poucos haviam honrado o compromisso, tendo-se convertido em devedores do Estado angolano.
A situação arrastou-se até Julho de 2017, quando o governo tomou a decisão de extinguir a Abamat, S.A, alegando “degradação física e económica”. Tudo isso ocorreu três anos depois de o próprio executivo ter realizado um investimento de cerca de três milhões de euros para a construção do Centro Oficinal e Armazém Central de Peças de Viana, afecto à referida empresa, cuja inauguração contou inclusive com a presença do então Presidente da República José Eduardo dos Santos.
Todos estes acontecimentos, que vieram a resultar na extinção da Abamat, S.A., se dá numa altura em que a empresa pública tinha a possibilidade de cobrar a várias entidades devedoras as dívidas contraídas pelo recebimento dos vários meios de transporte não pagos até à data em que este artigo é escrito. O governo, entretanto, decidiu pela sua extinção e a lista de devedores “posta de lado”.
Passes sociais
Anunciado na abertura da pré-campanha eleitoral de 2022 pelo então candidato do MPLA a Presidente da República, o ‘Passe Social’ foi um dos triunfos eleitorais para o sector dos transportes públicos urbanos, destinados aos grupos mais vulneráveis da população.
A promessa de João Lourenço era de que, dali a uma semana, os ‘Passes Sociais’ passariam a ser entregues. Porém, um ano depois, os tão almejados ‘Passes Sociais’ ainda não tinham sido lançados e levantava-se já todo o tipo de burburinho a respeito do assunto.
Em Maio de 2023, a Empresa Nacional de Bilhética Integrada (ENBI) anunciava a atribuição, em Luanda, dos primeiros ‘Passes Sociais’, com o presidente da Comissão Executiva da instituição a dar indicações de que aquele ente público recém-criado tinha capacidade para emitir mais de mil passes por dia. Não passou disso mesmo: de um engodo!
Segundo a ENBI, o ‘Passe Social’ deve beneficiar os estudantes do ensino público, com idades entre os seis e os 15 anos, matriculados até à 9.ª classe. Os passes, avançou a ENBI, são em PVC e a substituição é feita depois de três anos. Quanto ao carregamento mensal, explicou, seria feito automaticamente, de acordo com a categoria do utente, com uma durabilidade de três anos renováveis.
Ora, pouco mais de 14 meses depois, o semanário Expansão relatou a emissão de 1 150 passes sociais, um número olimpicamente abaixo das necessidades do país. E mais: num trabalho desenvolvido por aquele semanário — o !STO É NOTÍCIA seguiu-lhe o exemplo este ano — apurou que quase ninguém conhece o ‘Passe Social’, quais os seus benefícios, nem mesmo onde se pode solicitar ou levantar o tal cartão, apesar da campanha publicitária emitida pelas televisões públicas. Contudo, sabe-se que a entrega tem sido feita pela própria ENBI, através de equipas que trabalham em Luanda, Huíla e Benguela.
A mesma ENBI, quando questiona pelo Expansão sobre o “insucesso” do projecto, atirou as culpas às escolas e aos alunos, alegando que a fraca emissão de passes sociais se deve à “falta de Bilhete de Identidade ou caducados, à falta de Cédula Pessoal, bem como [por conta das] fichas de inscrição de matrícula dos estudantes indevidamente assinadas, que deviam ser fornecidas pelas próprias instituições de ensino”.
Em resumo, dos 600 mil previstos apenas foram emitidos 554 passes sociais. O que facilmente se pode concluir que os ‘Passes Sociais’ representam mais um desses projectos cujo impacto e efeito é residual e apenas um caso para fazer constar das estatísticas do sector dos transportes como uma das acções desenvolvidas pelo executivo.
Sistema BRT
O projecto BRT, o famoso sistema de Trânsito Rápido por Autocarro de Luanda, cuja implementação se previa até 2017, é outro exemplo de fiasco do sector dos transportes.
Com as obras paradas e abandonadas, o BRT previa a circulação de veículos em Luanda numa via exclusiva com extensão total de 53 quilómetros, divididos em dois corredores com 24 estações.
A frota inicial do sistema seria composto por 240 autocarros, sendo 90 articulados, 50 bi-articulados e 100 alimentadores convencionais, capazes de transportar em torno de 200 mil passageiros por dia ou 5 milhões mensalmente.
Facto é que sete anos depois ninguém viu o tal de BRT. Ou seja, não é bem verdade que nada se tenha visto, até porque os autocarros articulados que hoje circulam nas vias de Luanda foram adquiridos precisamente para atender a esse sistema de transporte público. O Ministério dos Transportes só não explicou ao país se desistiu em definitivo do projecto.
Observatório
Em 2012, o governo angolano gastou nove milhões de dólares norte-americanos com o Observatório Nacional dos Transportes Públicos, Colectivos e Regulares de Passageiros (OTR), que teoricamente permitiria controlar e gerir o sistema de transporte público de passageiros e contribuir consideravelmente para a redução da sinistralidade rodoviária.
Aquando da sua inauguração, foi divulgado que o mesmo dispunha de ‘equipamentos invioláveis’ instalados nos veículos, que permitem saber o número exacto de viagens realizadas, de acordo com a programação prevista; assim como iria gerir informações directamente do sítio em que seriam colectadas, através de estrutura de conexão automática, o telefone, para o OTR, em Luanda.
A monitorização dos autocarros em circulação seria feita por meio do sistema GPS em tempo real, com informações actualizadas de três em três minutos.
O OTR, que foi instalado na então Direcção Nacional dos Transportes Rodoviários, também previa maior eficiência do sistema de transporte no país, vigiar eventuais actos de vandalismo, contribuir para a preservação do património público e conferir mais segurança aos utilizadores.
Os nove milhões de dólares norte-americanos foram usados e pouco ou nada se sabe do tal Observatório? Ninguém ouviu falar nele depois da sua inauguração, apesar de todo o dinheiro gasto. ISTO É NOTÍCIA