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Sexta, 14 Novembro 2014 20:27

Charlatanismo e o curandeirismo em Alta em angola

Numa sociedade onde o número de problemas é crescente, a quantidade de indivíduos que dizem ter soluções para tais aflições também acompanha o crescimento. Uns com boas, outros com más intenções, mas o certo é que quimbandeiros, curandeiros, médicos espiritistas e naturalistas invadiram a capital para distribuir folhetos e trazer um método “obscuro” de tratamento.

Enquanto um tem o poder de trazer o amante de volta, fazer com que a mulher estéril fique grávida, proporcionar uma erecção poderosa e ampliação do pénis, afastar quem estiver perturbando seu relacionamento; outro ajuda a monopolizar o parceiro(a), puxar clientes no negócio, resolve casos judiciais, leva-te a conhecer o seu inimigo a partir de um espelho ou a recuperar a boa sorte.

De papel à papel, com diferentes nomes e serviços (quase) semelhantes, os números telefónicos em tamanho grande realçam a única forma de contactar os “professores, mestres e doutores”, uma vez que a maior parte deles nunca coloca o endereço do seu consultório.

Chama a atenção também o facto de aqueles “profissionais” terem conhecimento de várias áreas do saber e conseguirem resolver inúmeros problemas em apenas dois ou três dias, por exemplo, o que parece ser impossível.

Sem saber que estava numa entrevista, aquele que diz ser o especialista em remédios africanos mais confiado do mundo, Mestre Negro, disse que muitas pessoas o têm contactado, maioritariamente jovens, mas ainda há muita desconfiança no trabalho que presta porque “existe muitos ‘colegas’ burladores”, reconheceu.

“Aparecem muitos pacientes que já andaram em vários sítios como este e não viram resolvido o seu problema. Numa primeira fase, ficam com receio, ainda há preconceito sobre aquilo que fazemos. Uns me chamam quimbandeiro, curandeiro, doutor e até mesmo profeta, por isso ainda pensam que usamos sangue ou sacrificamos alguém nas nossas intervenções”, disse.

Poder aos curandeiros

Ciente de que existe uma corrente na sociedade que desacredita no seu trabalho e o associa a práticas ocultistas, o cidadão que conversou connosco alega que muitos dos que pensam daquela forma se calhar nunca sequer entraram numa casa do género para ver como funciona o tratamento – falam no empirismo ou por verem em filmes nigerianos, por exemplo. O nosso interlocutor, antes de começar com a as suas terapias procura conversar com o cliente e persuadi-lo a não desconfiar do seu trabalho. Boa parte das técnicas aprendeu-as trabalhando como ajudante, segundo nos conta, e hoje também dá poder e sabedoria àqueles que chama de “curandeiros fracos”.

“Tem havido muitos médicos que ao invés de tratar acabam por trazer mais problemas ao cliente. Recebo muitas reclamações de pessoas que ao contactarem estes curandeiros, acabaram por destruir a família. É preciso avaliar o sítio em que vais, nem todo sítio dá”, apontou ele, que disse ser o primeiro a ter ideia de espalhar aqueles folhetos no país.

Começou a praticar este tipo de trabalho em 2010, no bairro Rocha Pinto, quando regressou da Zâmbia. No princípio o seu consultório ficava muito cheio, mas por ter mudado de localização (agora encontra-se no Morro Bento, por trás da pastelaria Nice), o número de consultados baixou para uma média de 5 por dia – isso só em Luanda: Na província do Huambo a realidade é diferente e o número é bem maior. A consulta custa 5.000kz e justificou este preço (que caracteriza alto) porque precisa ver quem realmente está interessado em ser curado, pois muita gente liga para “gozar”. “Eu trabalhava sem descansar, esse preço ajuda muito a fazer com que os que não são sérios desistam, mas uma pessoa que está à rasca e quer resolver o seu problema se sacrifica, e esse dinheiro não é nada. Já recebi no Huambo pessoas que saíram de Luanda”, afirmou.

Exercem o espiritismo de forma ilegal

Entendendo que o assunto envolve directamente o Ministério da Saúde, foi chamado a intervir o sector de Inspecção daquela instituição. Em entrevista a O PAÍS, Miguel Oliveira, inspector-geral da saúde, começou por dizer que o referido ministério não concorda com aquele tipo de prática medicinal, já que as actividades de saúde devem ser exercidas por profissionais com a formação para o efeito.

“A medicina espiritista não está regulamentada, o que implica dizer que não há normas para isso. Não havendo normas, as pessoas não podem exercer este tipo de medicina. Para que seja exercida uma actividade é necessário que esteja na lei e tal documento ainda está a ser trabalhado”, sublinhou.

Os indivíduos que distribuem os folhetos na rua não são reconhecidos pelo Ministério da Saúde, nem por qualquer outra autoridade angolana com competência para tal, segundo o responsável da Inspecção.

Aquele sector do supracitado ministério, pelo que ficamos a saber, muitas vezes tem ido atrás daqueles indivíduos, mas pelo facto de não terem o endereço tem sido difícil a sua actuação, uma vez que muitos acabam desligando o telefone.

“A princípio, torna-se muito difícil combater este fenómeno, não sabendo ao certo onde estão localizados estes indivíduos, mas há um passo que deve ser dado que tem a ver com o facto de a população colaborar com a Inspecção da Saúde, no sentido de denunciar, já que tem sido ‘habitualmente’ assistida”, enfactizou.

O apelo também se estendeu para que a população não adira a estes “supostos profissionais”, pois, de acordo aquele dirigente, se a sociedade não procurar por estes serviços, obviamente não terão espaço e acabarão por desaparecer por falta de clientes. “Devem recorrer aos serviços competentes, não pode chegar qualquer indivíduo a dizer que agora é bruxo, que advinha ou que é médico naturalista, sem ter o devido reconhecimento do Estado”.

Os dois (tão) esperados diplomas

A Inspecção da Saúde tem colaborado com as demais inspecções, nomeadamente, a da Cultura, Comércio, Polícia Económica, de modo a encontrar soluções para combater este fenómeno. Diversos órgãos de segurança também deverão ser chamados neste processo, segundo o nosso entrevistado.

Tudo passa também, “por um exercício que estamos a fazer, que é a conclusão de dois documentos normativos: Política Nacional de Medicina Natural e Tradicional e o regulamento do exercício daqueles dois tipos de medicina. São documentos importantes que irão definir as normas para o exercício deste tipo de práticas e só assim estaremos em condições de impor ordens e responsabilizar os infractores”.

A ausência daqueles dois diplomas não impossibilita a intervenção da Inspecção da Saúde, já que, de acordo o director, existe o Regulamento Sanitário Nacional que lhes dá esta possibilidade. Mas, diante dessa situação, o grande problema continua a ser a ausência de endereço físico nos folhetos.

A maior parte daqueles que exercem a medicina supostamente natural ou tradicional não têm a devida formação para o efeito, muitos dizem que aprenderam com os seus antepassados, daí que “nós estamos a trabalhar no sentido de termos aqueles dois documentos concluídos, com a participação dos profissionais da área”.

Hoje, os profissionais desta área estão divididos em associações como a CATEMETA, que têm interagido com a Inspecção de Saúde. As associações têm desenvolvido vários trabalhos no sentido de identificar quem faz o quê, como adquiriu o conhecimento e onde está localizado. Neste momento está a ser feito um trabalho de registo, com a participação da Inspecção, e o Ministério da Cultura, entre outros órgãos.

“É um processo que começou agora com o registo e, depois, termina com a implementação dos dispositivos legais aqui referidos”, finalizou.

Esses são fracos e mentirosos’, diz Charlebois Poaty

Mestre em tratamentos espirituais e licenciado em ciências ocultas, Charlebois Poaty foi chamado a intervir nesta matéria e logo no início da nossa conversa, aquando da avaliação dos folhetos publicitários dos outros mestres, disse que aqueles “colegas” são mentirosos.

“No espelho não se vê o inimigo, espiritualmente só vimos o inimigo nos sonhos”, desmentiu o conceituado espiritista, que alega não ter feito folhetos publicitários mas quase todos os dias o seu consultório regista lotação esgotada, de clientes maioritariamente do sexo feminino.

Quem publicita não tem o poder forte no que tange à espiritualidade, de acordo o especialista, que lhe leva a atrair clientes. Por outro lado, acrescentou que o tratamento espiritual não tem prazo, por ser um trabalho feito com os santos e Orixás (deuses africanos).

“Leva muito tempo, dependendo do tipo de tratamento”, disse, “é como se fosse ir à igreja e pedir a Deus que lhe dê emprego, você não pode dar prazo à Ele”. Há que se ter paciência e “quem diz que em três dias faz isso é mentiroso”. Tratar insanidade e loucura com folhas também é mentira, porque “actualmente já não existem folhas para tal”, palavras de Charlebois. O modo de acção daquele ´ocultista´ é maioritariamente ligado aos espíritos e exemplificou que se um homem não tiver sorte de arranjar emprego, por meio de sete velas verdes consegue garantir a empregabilidade do cidadão. Mas há que se ter em conta o seguinte aspecto: a magia branca não funciona com quem estiver de braços cruzados. Quem quer emprego tem de ir à luta, o tratamento é só para dar sorte.

Trabalha com 35 orixás

As fases de tratamento no seu consultório estão divididas da seguinte forma: banho para limpeza do corpo em casa (durante 4 dias), banho para limpeza do corpo no seu santuário, conversa com os santos, o tratamento, além de ter direito a três rituais. Não adiantou os preços mas disse que “depois de acabar aqueles três rituais, se quiser repetir um ritual tradicional da Índia o cliente terá de embolsar 5.000,00kz”.

“Trabalho com 35 orixás. Trabalho com os santos da Índia, África, América Latina, santos da Igreja Católica e estou a terminar o meu curso de magia Goétia do Rei Salomão – que vai me ajudar a invocar 72 espíritos”, disse ele, que está a terminar o curso na Índia, onde receberá o selo daquele rei. O mesmo selo, segundo Charlebois, é usado pelos Papas e os Illuminati. Ele fez entender que tem santos diabólicos que o controlam e que quem tentar fazer algo contra si poderá usar uma das 35 formas de “eliminar” alguém, por meio dos espíritos. Perguntado se trabalha para o mal, respondeu que não, mas que se alguém tentar contra o seu “campo destruidor” poderá pôr em causa toda a sua família.

‘Líderes religiosos também fazem magia’

Todos os líderes religiosos do mundo praticam a magia e não são chamados de demónios, mas por ser o Charlebois ou um outro espiritualista “dizem que nós estamos ligados às práticas demoníacas”, defendeu, acrescentando que existem várias formas de fazer magia e o ritual ecuménico, por exemplo, é uma delas.

“Eu sou espiritualista, mas ninguém me mente, tenho conhecimento também do umbanda, candomblé, magia branca e magia negra. Estou no mundo do misticismo desde os 14 anos quando dormia no cemitério, já fui tratado por 82 quimbadeiros (de vários países), todo o sucesso da minha vida e o facto de ter o corpo jovem (mesmo com 61 anos) é feitiço”, alegações do especialista em ciências ocultistas.

Por fim, e não menos importante, o nosso entrevistado reclamou o facto de não colocarmos o seu terminal telefónico nesta matéria, de modo com que possa esclarecer as eventuais dúvidas que poderão surgir. Por questões ligadas a nossa linha editorial não publicamos o contacto, mas podemos frisar que o consultório de Charlebois Poaty encontra-se em Viana, bairro da Estalagem Moagem, numa rua com o nome Charlebois.

Conseguem enganar porque a nossa estrutura social é fraca

Para o padre Eugénio Lumingo, da paróquia da Sagrada Família, o aparecimento deste tipo de terapeutas demostra claramente que estamos com uma franja da nossa população profundamente desorientada, além do facto de encontrarem (os terapeutas) um terreno bastante fértil para exercer tal “profissão”.

Pelos problemas que vamos tendo nas famílias, sabendo que nem todo o mundo tem acesso aos cuidados básicos de saúde, o desespero leva as pessoas a aderirem a toda e qualquer coisa que aparece. Tudo o que encontrar passa a ser uma tábua de salvação, segundo o que sublinhou o padre.

Uma pessoa esclarecida consegue ver que se trata de publicidade enganosa, pelo facto de existirem cura para problemas difíceis, em curto espaço de tempo. “Já vi papéis de pessoas que dizem curar o SIDA. Penso que há aqui uma publicidade irresponsável, que vai levando as pessoas a perderem tempo e quando o caso agrava é que voltam aos hospitais oficiais”, auferiu.

Devia haver uma investigação séria por parte das entidades competentes, para que o nosso país não seja transformado num palco onde qualquer charlatão pode vir enganar como quiser.

Numa sociedade como a nossa, adicionou o líder católico, aqueles indivíduos exploram as fragilidades humanas e accionam todos os mecanismos para poder entrar. Eles só conseguem porque encontram uma estrutura social extremamente fragilizada, carente em questões de saúde e de fiscalização.

“Tudo depende também do esforço que existir por parte das entidades competentes para que as condições básicas de saúde melhorem. Quando um dirigente prefere ir se tratar fora do país é porque não confia no sistema de saúde que criou. Em segundo lugar, o quadro de saúde cria desigualdade, é necessário que todos tenham a mesma dignidade para viver”.

Usam o sincretismo

Quanto a ligação dos espiritualistas aos santos, o Pe. Eugénio disse que na linguagem teológica chama-se sincretismo (a mistura de diversos dados religiosos com aspectos ligados a tradição e/ou coisas ocultas).

“Quanto mais supersticiosa for a pessoa, mais sincrética ela se torna”, ajuntou. Aqueles que unem-se ao sincretismos fazem-no no sentido de deixar as pessoas mais confusas e o padre tem dito que “se você quer dominar alguém, o amedronta – uma pessoa amedrontada facilmente é dominada”. Diante do discurso amedrontador a pessoa fragilizada acaba por aceitar tudo.

“Não é que eles tenham relações com os santos religiosos, a religião é simples e esclarecida, a igreja católica não mistura as coisas. Existe um mistério a nível da Santa Sé (chama-se dicastério) que responde justamente pela disciplina do culto dos sacramentos para que cada um não faça o que quer dentro da igreja”, explicou. Por isso, continuou a explicação, não é qualquer padre que pode ser exorcista, por exemplo. Os exorcistas hoje são raros para se evitar os abusos que muitas vezes se viam e que deixavam as pessoas mais confusas, no campo da sua própria espiritualidade ou fé. Atenção: não confundam exorcismo com a actividade desses “terapeutas” .

Em jeito de conclusão, recomendando que não podemos cair na ilusão pensando que Deus é como se fosse uma varinha mágica que poderá resolver os nossos problemas de forma gratuita, o padre mencionou que Deus é o inspirador de todo o bom propósito e enquanto rezamos para o bem da nossa saúde, não podemos ignorar as soluções que estão ao nosso alcance.

Queria com isso dizer que “não é o facto de ter paludismo que basta uma oração para estar curado. Deus está com isso a me indicar para ir ao hospital. A fé em Deus não dispensa que procuremos médicos competentes que nos possam curar”. O Senhor age quando os recursos humanos já não são capazes de dar alguma resposta, sentenciou.

O PAIS | AO24

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