A KPMG Portugal garante que o Banco de Portugal (BdP) nunca questionou a validade da garantia do governo angolano associada à carteira de créditos do BES Angola (BESA). Além disso, a auditora diz que nunca considerou estes créditos incobráveis – ao contrário do pretendido pelo regulador – por estarem suportados por esta “rede de segurança” que acabou por cair no dia seguinte à resolução do Banco Espírito Santo (BES), no verão de 2014. Esta é a posição da entidade liderada por Sikander Sattar na impugnação que deu entrada no Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, e que foi consultada pelo Negócios.
Foi em meados de 2018 que o BdP avançou com a acusação contra a KPMG Portugal. Em causa está, segundo o regulador, a prestação de informação “incompleta” e “falsa” sobre o BES Angola (BESA) e o BES por parte da auditora. A KPMG Portugal auditava as contas do BES em Portugal, enquanto a KPMG Angola era responsável pelo BESA.
Isto porque, segundo a decisão do regulador, com quase 500 páginas, ficou provado que entre 2011 e dezembro de 2013 os arguidos – KPMG e os seus sócios – tinham conhecimento da falta de acesso, no âmbito do seu trabalho de auditoria, a informação essencial sobre a carteira de crédito do BESA e que sabiam, pelo menos a partir de janeiro de 2014, da existência de um conjunto de créditos incobráveis. Para o BdP, estes factos deviam ter determinado a emissão de uma reserva às contas consolidadas do BES e ter sido comunicado ao regulador. Um ano mais tarde, o BdP condenou a KPMG Portugal ao pagamento de uma coima única de três milhões de euros. Para a auditora, a decisão é “ilegal, infundada e profundamente injusta”.
Acesso “vedado” a informação sobre créditos
De acordo com a impugnação da KPMG Portugal, que foi consultada pelo Negócios, apesar de a KPMG Angola ter tido conhecimento, no final de 2013, de que havia sido identificado “um conjunto de créditos de difícil recuperação”, a partir do momento que passou a existir uma garantia soberana que cobria esses créditos, estes deixaram de ser considerados incobráveis. O governo de Angola concedeu esta garantia, de cerca de 5 mil milhões, em dezembro de 2013.
Nesse sentido, a KPMG Portugal diz que não podia reconhecer uma “incobrabilidade que não existia”. Quanto à falta de acesso a informação sobre a carteira de crédito, a entidade defende que, a partir de agosto de 2013 até janeiro de 2014, a nova comissão executiva do BESA, liderada por Rui Guerra, levou a cabo um conjunto de procedimentos relativos a esta carteira. E, durante esse período, “vedou por completo” o acesso da KPMG Angola à documentação, “circunstância que nunca se tinha verificado” e que levou mesmo à emissão de uma reserva por limitação de âmbito.
Já a garantia, diz a auditora, nunca foi questionada pelo regulador. Segundo a impugnação, o BdP reconhece, na parte da análise crítica da prova, que a garantia soberana era válida para efeitos de cobertura de eventuais imparidades e que o regulador “nunca questionou” a validade da garantia para esses efeitos. Uma “rede” que a KPMG garante ter sido validada pelas Finanças de Angola, em abril de 2014.
A auditora relembra ainda, na defesa, uma das intervenções de Carlos Costa no Parlamento, então governador, antes da resolução do BES, quando disse ser importante “salientar que o BdP não antecipa um impacto negativo relevante na posição de capital do BES resultando da situação financeira da filial BES Angola”. Isto tendo em consideração que a garantia angolana “cobre uma parte substancial da carteira de crédito” do BESA. Para a KPMG Portugal, o BdP entendia que a garantia era válida e cobria os créditos pelo menos até quatro dias antes da resolução do BES.
Sattar nunca soube, “nem tinha” de saber
Além da KPMG Portugal, também os sócios Inês Viegas, Fernando Antunes, Inês Filipe e Sílvia Gomes foram alvo da contraordenação do BdP. Isto além do próprio presidente Sikander Sattar, a quem foi atribuída uma coima única de 450 mil euros.
De acordo com a decisão do BdP, citada na impugnação da KPMG Portugal, Sattar tinha alegadamente conhecimento da falta de acesso a informação essencial sobre a carteira de crédito do BESA, suscetível de determinar a emissão de uma reserva às contas do BES. Isto pelos cargos de relevo que ocupava na auditora. Os advogados garantem que, “na sua consciência e no seu juízo pessoal e profissional, e com base na informação que dispunha”, Sattar “nunca considerou” que a situação do BESA “viesse a ter impacto material nas contas do BES” e, nesse sentido, “ter de prestar qualquer informação ao BdP sobre o BESA”. É que, segundo a defesa, ao mesmo tempo que lhe foi entregue cópia da ata da assembleia-geral do BESA, na qual foi abordada a questão dos créditos problemáticos, foi também entregue uma cópia da garantia que sanava esta questão.
E vão mais longe: até à notificação da acusação, Sikander Sattar “desconhecia” uma “parte relevante dos factos que nela são relatados”, bem como a grande maioria dos elementos de prova. Segundo a impugnação, o responsável “nunca tinha lido os reportes” que eram feitos pela KPMG Angola à KPMG Portugal, nem foi informado sobre o seu teor. “Nem tinha de ter”, diz a defesa, já que Sattar – que indicou Miguel Maya e Paulo Macedo como testemunhas neste processo – não realizava trabalhos de auditoria
O julgamento entre o BdP e a KPMG Portugal devia ter arrancado em maio, mas foi adiado entretanto para setembro.
NOTA: O governo angolano, então liderado por José Eduardo dos Santos, deu ao Banco Espírito Santo Angola (BESA), filial do Banco Espírito Santo, no final de 2013, ‘Garantia Angola’ no valor de 5,7 mil milhões de dólares. Jornal de Negócios