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Terça, 19 Julho 2016 22:10

A agricultura é a base de quê, mesmo? Há um elevado nível de desleixo

Os jovens sonhadores de 1975, como eu, acreditaram piamente que a agricultura seria a base do desenvolvimento de Angola e a indústria o factor decisivo. Interpretámos esse lema como um forte desejo de fazer chegar ao nosso país a revolução industrial. Era um sonho, é certo, mas em política muitos sonhos impossíveis tornaram-se realidade.

Por Fernando Pacheco | NJ

Se Martin Luther King fosse vivo entenderia melhor do que ninguém o que eu digo. Não se tratava de um sonho impossível. Angola era um país agrícola, com uma população camponesa que representava 85% do total, tinha desenvolvido uma indústria ligeira principalmente com base em matérias-primas de origem agrícola e beneficiava na altura do primeiro boom do preço do petróleo na sequência da guerra israelo-árabe de Yom Kippur, em 1973.

Os planos herdados do Governo colonial apontavam para uma série de medidas que prometiam o avanço da indústria semi-pesada e até mesmo pesada que poderia fornecer "out puts" que serviriam de "in puts" à agricultura. Era, por exemplo, o caso dos fertilizantes que poderiam ser produzidos com base na exploração dos fosfatos existentes no norte do território, condição necessária, ainda que não suficiente, para o aumento da produtividade dos nossos solos e das culturas.

Quando se analisa a razão do insucesso, a resposta é extremamente redutora: a guerra. Desde há muito defendo que isso não só não é verdade, como esconde, como em tantos outros casos da nossa vida política, a clara intenção de não se aprofundar o assunto. De outro modo, como explicar que depois de já, e sublinho o "já", decorridos mais de 14 anos desde o fim da guerra a agricultura esteja no estado em que está, sem os seus problemas estruturais resolvidos ou encaminhados, e com indicadores de produção que nos colocam, aqui também, junto dos países africanos mais incompetentes ou desfavorecidos?

Veja-se, por exemplo, o caso da Zâmbia, que hoje é auto-suficiente na produção de sementes de milho de qualidade e onde nós vamos comprar, se tivermos divisas, as sementes de que precisamos.

Insisto que a guerra, em muitos casos, foi "facilitada" pelo modo como (não) se encarou a agricultura. Não precisamos de procurar casos no exterior para provarmos isso. Basta ver o que aconteceu em Angola depois de 1961 com a agricultura e a indústria. Para além da frieza dos números, tenho numerosos testemunhos, incluindo no Uíje, onde vários camponeses me confessaram nos anos 90 que haviam abandonado a guerrilha e as matas depois das "reformas" iniciadas em 1961, primeiro de modo atabalhoado, e depois mais estruturado, que permitiram a melhoria substancial das suas condições de vida.

O crescimento da agricultura e da indústria nessa época deveu-se também ao investimento na investigação científica. Foi logo a seguir a 1961 que os portugueses iniciaram um importante investimento na criação de institutos de investigação, dois deles ligados à agricultura, silvicultura e pecuária, cujos resultados começaram a ser conhecidos e usados no início dos anos 70 e vaticinavam mudanças importantes na política colonial, como era o caso já ensaiado com sucesso da extensão rural no Planalto Central e da promoção social dos cafeicultores do Uíje organizados em cooperativas, experiências que ainda agora são evocadas com saudade pelos participantes de então.

Hoje, para além da falta de investimento e do desaproveitamento dos poucos investimentos feitos na investigação científica, há um elevado nível de desleixo em relação ao conhecimento. É um fenómeno geral.

Noto o espanto das pessoas, muitos deles técnicos altamente qualificados e com importantes responsabilidades no aparelho de Estado a diferentes níveis, quando ficam a saber que os nossos solos não são tão férteis como os vendedores de conhecimento tentam fazer crer e os governantes gostam de ouvir.

Pelo contrário, a maioria dos nossos solos são pobres nos principais nutrientes e em matéria orgânica, muito ácidos e arenosos e muito susceptíveis à erosão. É esse desconhecimento que permite que o jornal oficioso titule com grande destaque que produzimos "milhões de cereais" na Quibala ou transforme em notícia a plantação de cinco mil cafeeiros no Andulo (correspondente a menos de cinco hectares), o mesmo acontecendo a quase todos os órgãos de comunicação social.

É ainda esse divórcio em relação ao conhecimento que faz com que os assessores do Presidente da República o tenham levado a dizer recentemente que a província do Moxico já produziu, no tempo colonial, cerca de 60 mil toneladas de arroz, quando a produção histórica de Angola inteira nunca chegou às 40 mil.

Não se pode confundir o número de famílias que se dedicam à agricultura com o número de empregados no sector. Uma vez mais, é a falta de boa vontade em relação ao conhecimento que explica o facto de até hoje não termos um conhecimento exacto sobre o número de agricultores das várias categorias. Hoje a justificação é a falta de verbas para a realização do Censo Agrícola. E antes?

Pois é, se quisermos que a agricultura e a indústria possam melhorar o seu desempenho e contribuir, um dia, para exportações significativas, não podemos invocar carácter de urgência. É preciso investir nos pilares-chave, que, repito porque parece que ninguém quer ouvir, podem ser resumidos a quatro - isto sim, inadiável. Refiro-me à investigação científica, à assistência técnica aos agricultores, aos serviços de aprovisionamento de factores de produção aos agricultores e ao comércio rural.

Em vez de se fazer isto, como recomendava a Estratégia 2025, na chamada "mini idade de ouro" (2003-2008), quando pensávamos nadar em dinheiro, cometemos o erro grave de gastar rios de dinheiro em investimentos públicos para implementação de projectos de produção que de estruturantes nada tinham, como tenho vindo a denunciar. Calcula-se que muito mais de mil milhões de dólares tenham sido gastos em tais projectos, muitos deles com resultados absolutamente catastróficos.

Com esse dinheiro teríamos dado um grande passo no sentido do aumento da produção e da produtividade, da auto- suficiência alimentar e das exportações de origem agrícola. Em vez de aprendermos com as boas lições que nos dão alguns países africanos, como o caso do café no Uganda, ou do comércio de produtos agrícolas feito por comerciantes indianos no Quénia e em Moçambique, temos insistido na colaboração com parceiros que nem sempre são competentes, conhecedores da realidade, sérios e honestos, com os resultados que se sabem.

A verdade é crua. A agricultura, tanto o sector como o Ministério, não tem peso político. Enquanto tal acontecer, não acredito que as coisas possam mudar, muito menos com as ideias que continuam a ser as mesmas que falharam aqui e noutros países. Por exemplo, fazer projectos grandiosos de milho no Cunene, zona marginal para a cultura, esquecendo que temos uma espécie de "corn belt" no triângulo Caconda-Chicomba-Caluquembe (Huíla) só revela, além do mais, uma notória e teimosa ignorância.

* Coordenador do Observatório Político Social de Angola

 

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