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Quinta, 16 Abril 2015 22:08

A História e as Estórias – Reginaldo Silva

Todos temos o direito e a possibilidade de contar as nossas estórias e de montar a nossa narrativa, sobretudo se tivermos sido protagonistas de algum acontecimento mais relevante na vida de um país chamado Angola, que este ano completa 40 anos de independência.

Por razões objectivas, já muitos poucos terão, entretanto, a capacidade de fazer a verdadeira história no tempo presente, para além das versões que vamos tendo, incluindo a própria historiografia oficial, que não deixam de ter a sua importância para o conhecimento do passado, mesmo que for a título provisório.

Trata-se, como é evidente, de um conhecimento sempre parcial dos acontecimentos e dos factos que marcaram a ferro e fogo as primeiras três décadas do pós-independência, porque refém da memória de cada um, que é sempre selectiva, mesmo quando ela é partilhada por um grupo mais alargado de pessoas que têm interesses convergentes.

O problema que hoje continua a dividir os angolanos é exactamente o tratamento que se está a dispensar a este passado que continua a ser alterado em função das conveniências políticas do presente.

Foi a minha saudosa amiga, a Cristine Méssiant, quem com bastante propriedade e num tom algo profético disse que em Angola até o passado é imprevisível, o que é fácil de comprovar com as diferentes narrativas sobre a história que vão surgindo a cada ano que passa, como tivemos a oportunidade de voltar a constatar agora.

É fácil de compreender que assim seja, devido à juventude do país e ao facto da maior parte dos protagonistas ainda se encontrar em vida e a movimentar-se num contexto que continua a ser marcado por uma acesa disputa político-partidária, onde todos os pontos continuam a ser preciosos, na hora de amealhar dividendos.

Felizmente, esta disputa tem agora uma perspectiva bem diferente daquela que acompanhou os angolanos até ao alcance da paz das armas em 2002, quando a própria sobrevivência do país chegou a estar ameaçada.

Agora o país tem de facto e de jure um outro rumo, onde já não se contam espingardas, mas sim votos nas urnas eleitorais, para com eles se implementarem, com a legitimidade democrática necessária, outros rumos mais específicos no que toca ao desenvolvimento socioeconómico, certamente com visões diferentes e que podem até ser contraditórias.

É esta agenda que agora é importante e que deveria realmente preocupar governantes e governados, num esforço conjunto para se libertar Angola o mais rapidamente possível das enormes e profundas manchas de miséria, pobreza e exclusão que ainda ensombram as suas belas paisagens com sinais de fumo preocupantes, que tardam em ser devidamente valorizados.

Para além desta agenda há várias outras que correm em paralelo e que também têm a sua importância na vida de um país que tem as particularidades do nosso, com um passado demasiado complicado que tarda em ser assumido como um património nacional, porque os interesses partidários ainda são aqueles que prevalecem.

Este ano sentiu-se que a agenda da reconstituição histórica parece estar a ganhar uma importância muito maior do que aquela que deveria ter no contexto das prioridades nacionais, com a agravante deste regresso ao passado estar a revelar-se bastante fracturante.

Mais uma vez temos aqui Angola como um país atípico, pois a evocação da guerra não segue o padrão de outras realidades onde claramente o conflito tinha do outro lado um inimigo estrangeiro que foi fácil de isolar para os devidos e celebrativos efeitos, onde se inclui a construção de memoriais.

No caso em apreciação, como o conflito se processou maioritariamente entre os próprios angolanos, com algumas intervenções estrangeiras pelo meio e sempre de um lado ou do outro, as coisas complicam-se bastante na hora de se fazer a mobilização nacional e de se apelar a exaltação dos valores patrióticos.

O problema é que uma parte muito significativa dos angolanos que em principio será tão patriótica quanto a outra, ou pelo menos tem este mesmo direito de o ser, não se revê na forma como a agenda oficial pretende fazer este regresso ao passado do conflito, porque entende que as coisas não se passaram bem assim ou nem pouco mais ou menos.

A novidade é que este ano a referida agenda, que já se anunciava nas entrelinhas e em algumas iniciativas mais concretas, foi finalmente assumida publicamente como mais um programa do Executivo.

Estamos a falar do conteúdo do discurso proferido no passado dia 23 de Março no Cuito Cuanavale pelo Ministro da Administração do Território, Bornito de Sousa.

Não é possível ignorar a extraordinária importância política deste pronunciamento como marco de viragem.

Efectivamente, ele marca uma nova fase na abordagem desta agenda mais histórica que, como é evidente, é tudo menos consensual, se tivermos em conta o conteúdo político que se quis dar aos acordos de paz assinados no Luena e celebrados anualmente a 4 de Abril.

Trata-se de uma data que figura no calendário dos feriados oficiais como sendo o “Dia da Paz e da Reconciliação Nacional”.

Aliás, também é bom aqui referir que, por falta de entendimento mínimo entre as partes signatárias, o próprio 4 de Abril acaba por ser uma celebração estranha, pois só se vê uma das partes a festejar, como se a outra tivesse desaparecido misteriosamente do mapa.

Quem chegasse este ano a Angola no passado dia 4 de Abril seria, provavelmente, tentando a confundir a efeméride como sendo mais uma homenagem apenas ao Presidente Eduardo dos Santos, que já é considerado no discurso oficial como sendo o “Arquitecto da Paz”

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