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Quinta, 02 Abril 2015 16:16

O Cidadão e o Titular – Reginaldo Silva

Os mais atentos já devem ter percebido onde é que esta crónica quer/vai necessariamente tentar desaguar, mesmo que, permitam-nos a analogia, actualmente as valas de drenagem e os colectores não estejam nas melhores condições para deixá-la passar livremente, tendo em conta as enxurradas que o país tem estado a ser testemunha, estando uma boa parte dele, completamente desesperada, na condição de vítima.

Em abono da verdade nunca estiveram, nem vão estar tão cedo, pelo que o nível da precipitação desta estação das chuvas só veio agravar a situação do saneamento básico, com o sério risco de lhe poder aplicar agora um verdadeiro golpe de misericórdia, a fazer lembrar-nos o que se passou em Luanda no ano de 1963.

No caso vertente, a analogia talvez ficasse melhor burilada, se nos fossemos inspirar na teoria dos vasos comunicantes aplicada ao funcionamento de uma sociedade em termos de coabitação entre os seus diferentes actores e figurantes.

Na referida teoria e de acordo com o manual, “quando se tem um único líquido em equilíbrio contido no recipiente, conclui-se que: a altura alcançada por esse líquido em equilíbrio em diversos vasos comunicantes é a mesma, qualquer que seja a forma de seção do ramo. E, para todos os pontos do líquido que estão na mesma altura, obtém-se também a mesma pressão”.

O problema é que na sociedade não temos apenas um líquido, mas vários e com distintas densidades, que não têm necessariamente que se misturar, mas são obrigados a viver juntos no mesmo ambiente dos vasos comunicantes.

Aí o desafio passa a ser bem mais complicado se nos quisermos aproximar das conclusões da física elementar.

Seja como for, o ideal seria que os diferentes “líquidos sociais” conseguissem comunicar da melhor forma para se aconchegarem em todos os tubos do vaso, evitando que uns se sobrepusessem demasiado aos outros.

Para efeitos da presente demonstração empírica, gostaríamos de separar os referidos líquidos, tendo em conta uma recente proposta que está a circular no Facebook, em apenas duas categorias, a dos cidadãos comuns e a dos titulares de cargos públicos.

A proposta em causa entende que os cidadãos não são iguais no exercício das suas liberdades e direitos, mesmo que a Constituição assim o defina, porque a lei ordinária é quem mais ordena e comanda. A lei fundamental será apenas para cumprir calendário e mostrar ao mundo que Angola já é um Estado Democrático de Direito, o que por si só já é uma extraordinária mais-valia.

A contrariar esta tese, temos necessariamente que nos entrincheirar, pois é disso mesmo que se trata, na Constituição, para proclamar alto e em bom som, que o cidadão vem sempre primeiro que o titular, seja ele de que cargo for.

O segundo não tem existência própria, se antes não envergar o fardamento civil do primeiro e fizer o juramento de apenas obedecer a lei, sem descurar a sua própria consciência, para evitar ter de cometer alguns crimes de lesa-humanidade, que resultam das tão famosas quanto famigeradas “ordens superiores”.

A peregrina tese posta a circular e que aqui estamos a tentar arguir, quase que diz que não, que não é assim, que o titular não é obrigado a ser cidadão como todos os outros que são citados na Constituição.

Por isso, não pode ter os mesmos direitos, particularmente ao nível da liberdade de expressão, devendo pedir autorização sempre que quiser ser apenas cidadão comum.

Na opinião do proponente da tese, a lei ordinária não permite tanta abertura devido ao peso da hierarquia e da fidelidade, começando pela lealdade partidária, que é considerada fundamental.

Aliás, antes de tudo o mais, o que conta mesmo é a camisola do partido pois é ela a fonte original do poder que foi transferido temporariamente ao titular, devendo o mesmo agir em conformidade e não andar por aí a “mandar bocas”, como se diz.

Aqui chegados, está, certamente, mais clara a localização da praia onde tudo isto vai terminar, com o arguente a discordar em absoluto do proponente da tese.

Definitivamente o facto de, não implica que.

O facto de sermos titulares com todos os deveres que a hierarquia coloca, não pode limitar direitos fundamentais ao ponto de nos ser retirada temporariamente a “carteira da cidadania”.

É perfeitamente possível e recomendável que o titular continue a ser cidadão a tempo inteiro, sem violar nenhum dos seus deveres estipulados pela lei ordinária e todos os regulamentos de disciplina interna, desde que estes estejam de acordo com a letra e o espírito do Estado Democrático de Direito.

Um titular é tudo menos membro de uma sociedade secreta onde vigoram as famosas leis do silêncio até que a morte nos separe.

Um titular tem de facto deveres de sigilo para com a instituição que dirige, mas não é obrigado a passar silenciosamente por um buraco que como resultado de uma obra pública qualquer, está quase a engolir o prédio onde vive, apenas para não afectar a imagem do Executivo.

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