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Terça, 11 Abril 2023 19:45

O discurso de ódio não pode ser confundido com o direito à opinião

Angola vive em paz. Não há dúvidas quanto a isso, mas não é garantido que não volte, um dia, a acontecer uma nova guerra.

Por Ismael Mateus

Se nada for feito contra o discurso de ódio e a estratégia de diabolização do outro, em poucos anos voltará a haver novos conflitos que, mesmo que não sejam armados, vão dilacerar do mesmo modo o tecido social do país.

A estratégia da diabolização do outro esteve sempre no centro dos conflitos em Angola. Primeiro, na relação entre o regime colonial e os movimentos de libertação, em que estes eram vistos como assassinos, turras e terroristas. Depois, na relação de combate entre uns e outros movimentos de libertação, com acusações de tribalismo, traição e neocolonialismo.

Ao longo da guerra civil pós-independência, a diabolização do outro voltou a ser uma importante arma de guerra com tentativas de demonização da oposição, aniquilamento dos discursos contrários, discurso como bandidos armados, bandoleiros, inimigos do povo e tentativas de "animalização” dos adversários.

Todos estes estereótipos fizeram os movimentos de libertação acreditar que o convívio entre irmãos e a convivência pacífica seria impossível e que a única solução passaria pela eliminação completa do adversário político.

Ao terminar como terminou, a nossa guerra deveria ser suficiente para afastar todas as novas tentativas de solução dos problemas por via da violência armada, física ou verbal. Lamentavelmente não é assim, vinte anos depois da assinatura do acordo de paz.

Mesmo com o fracasso da violência armada, algumas vozes, que antes eram defensoras da solução armada, continuam a manifestar abertamente a convicção de que a violência verbal, física ou por manifestações de rua pode conduzir à derrocada do poder político, tal como imaginavam que a via militar seria capaz de o fazer.

É sobretudo uma elite de mentes militarizadas, que tendo sido protagonistas da guerra armada assumem-se agora como radicais políticos que influenciam as novas gerações a "herdarem” o menosprezo, desprezo, desconsideração e o ódio aos seus "velhos inimigos”, que trazem como "questões pessoais” desde os tempos da luta de libertação e da guerra civil.

Do mesmo modo que a transição política do país do monopartidorismo para a democracia exigiu um rejuvenescimento do partido no poder, a transição da guerra para a paz carece de uma saída de cena política de todos, sem excepção, que foram os protagonistas da guerra.

A influência dessas figuras sobre as novas gerações, não só está a fazer perdurar os velhos preconceitos e estereótipos da relação entre MPLA e UNITA, como está a "semear” novos ódios de estimação, que já se identificam quando assistimos ao recrudescer do discurso do ódio e da diabolização do outro.

O crescimento da violência verbal, que começou na área política, está a ter um efeito de contágio para outras esferas da sociedade, onde se começam a verificar manifestações de não-aceitação das diferenças, indisponibilidade de convívio com pessoas de outro partido político ou de intolerância nua e crua, como os cancelamentos e boicotes comerciais por divergência de opinião. Actualmente, o discurso de ódio esconde-se na liberdade de expressão. Ao mesmo tempo que se reclama por mais abertura política e mais diálogo, usa-se a liberdade de expressão para a promoção da violência verbal e física, de cariz intolerante, contra todos que tenham posições diferentes das suas.

Os mesmos preconceitos e estereótipos, que foram o suporte moral de uma guerra tão prolongada, continuam a ser usados como instrumentos de luta, tendo deixado de ser motivação para pegar em armas para agora passar a ser motivação para o discurso de ódio.

As estruturas do Estado angolano (Governo, Assembleia Nacional e os Tribunais) assistem impávidas e serenas à crescente utilização do discurso de ódio como factor de divisão e de fomento da violência verbal e física, o que fere gravemente as garantias e direitos fundamentais de todo e qualquer cidadão.

Não pode haver dúvidas de que o discurso de ódio se configura como crime, o que deve levar as autoridades angolanas a encontrarem uma redacção de legislação que, por um lado, salvaguarde a liberdade de expressão e o direito à opinião, mas, ao mesmo tempo, penalize e criminalize os excessos verbais, que são a semente da violência entre os angolanos.

O discurso de ódio não pode ser confundido com o direito à opinião. A opinião tem por base os sentimentos e conclusões de um determinado indivíduo, o que difere no conteúdo e nos objectivos do discurso de ódio, cujas características são de incitação à discriminação e ao insulto do outro, à instigação contra as autoridades e o desprezo pessoal aos opositores. O discurso de ódio, ao contrário da opinião, usa como instrumento a violência verbal e física.

Uma atenção particular deve ser dada à Internet por se tratar de um espaço que muitas pessoas acreditam que é permitido agir com intolerância e diabolização dos outros, sem que lhes sejam imputadas responsabilidades. É nos dias de hoje um fértil canteiro das mensagens de ódio e diabolização do outro.

A permissividade com que se assiste à violação ostensiva do respeito à pluralidade e às liberdades de cada um, é também um risco para a preservação do clima de paz e para a estabilidade política do país. Faça-se alguma coisa. JA

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