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Segunda, 16 Agosto 2021 22:17

Magistratura Angolana e os Magistrados: Entre a falta de condições de Trabalho e a violação dos Direitos Constitucionais

Em todo Sistema (Estado) Democrático e de Direito “os Tribunais são órgãos de soberania, paralelamente aos demais órgãos de soberania mormente o Poder Executivo e Legislativo, pois, em Angola não é excepção, o que resulta do art. 105.º da Constituição da República Angolana (CRA)”.

 Aos Tribunais incumbe-se a tarefa de administrar a justiça em nome, do povo e de forma imparcial, com base a Constituição e a lei, (arts. 174.º, nº 1; 175.º e 177.º nº 1 todos da CRA).

A Constituição da República de Angola prevê no seu art. 178.º, que os Tribunais, a semelhança do Poder Legislativo (Parlamento) e Executivo (Governo), gozam de autonomia administrativa e financeira, porém apesar de estar consagrado na CRA, a verdade é que na prática, em Angola por questões desconhecidas os Tribunais somente gozam de autonomia administrativa, o que os torna extremamente dependentes do Poder Executivo, daí que os Tribunais têm dificuldades extremas concernentes a realização da justiça, de forma plena e efectiva, pois diferente acontece com o Poder Legislativo (Parlamento), que tem a verdadeira autonomia administrativa e financeira, gerindo o orçamento próprio.

Os Magistrados Judiciais (Juízes), são os que levam a cabo a administração da justiça nos Tribunais e, como tal são titulares deste órgão de soberania, a semelhança dos deputados à Assembleia Nacional e o Presidente da República (Titular do Poder Executivo), ver art. 179.º; 141.º, 142.º e 108.º nº 1 e 2 todos da CRA).

O protesto levado adiante pelos Magistrados Judicias e Procuradores da República, no pretérito dia 31 de Julho do corrente ano, fez com que cidadãos da sociedade Civil e funcionários públicos criticassem tal atitude, muitos pensando que estes estavam a reivindicar ‘’Lexus e outras regalias pessoais’’ apregoando o egoísmo e vaidade dos mesmos. Na verdade, trata-se de um protesto legitimo, sem carácter depreciativo.

Pois é um protesto contra precárias condições de trabalho a que estão submetidos e a justa efectivação dos seus direitos sócio-profissionais, portanto a falta de condições laborais em larga medida prejudica a celeridade processual, muito reclamada pela sociedade em geral.

A questão a ter em conta não se prende com a “perfeição ou imperfeição dos Magistrados”, mas sim a preocupação com o bem servir o interesse público “Administração da justiça em tempo útil e não só”.

Certamente, é notório que os demais órgãos de soberania e seus titulares dispõem de condições de trabalho razoáveis, é o caso da Assembleia Nacional e o próprio poder Executivo, diferentemente os Tribunais e seus titulares estão relegados a extrema dependência, o que desprestigia esta instituição do Estado.

Não é aceitável que falte sistematicamente: tinteiros para trabalhar, papeis, computadores, impressoras, transportes de apoio, condições de comodidade, que levem a destratar os Tribunais.

É necessário reflectir-se sobre a condição social dos Magistrados, pois ao longo dos anos passados sempre houve actualização da remuneração na carreira geral dos funcionários públicos, agentes administrativos e deputados, porém os Magistrados Judiciais e do Ministério Público têm um Estatuto Remuneratório de 1994, até ao momento nunca sofreu qualquer actualização salarial, nem reajuste, com agravante de que, grosso modo o respectivo estatuto carece de materialização, maior parte dos seus direitos só estão no papel, mas na prática é zero.

O art. 33.º da Lei n.° 7/94 de 29 de Abril, do Estatuto dos Magistrados Judiciais e do Ministério Público prevê direitos que desde 1994 nunca foram efectivados, desconhecendo-se as respectivas razões.

A atribuição de viaturas protocolares, o uso de passaporte diplomático e subsídio de estímulo são direitos inerentes ao estatuto de Magistrado, tendo em atenção o alto risco da actividade a que os mesmos se encontrem, pois, estes profissionais e suas famílias inevitavelmente estão expostos ao risco de vida, por causa da profissão.

Senão vejamos, a classe dos Magistrados recorre sistematicamente aos préstimos dos kupapatas (moto-taxistas), taxistas e boleias, para aceder o local de trabalho, durante este percurso a exposição ao risco de vida ou agressão torna-se efectivo, pois andar no mesmo transporte em que os arguidos circulam desperta a ira dos mesmos e consequentemente o pior pode acontecer, pois, o perigo é iminente.

“É uma falsa ideia pensar que as viaturas servem os interesses dos Magistrados”, pois são propriedades do Estado, por isso designam-se viaturas protocolares e constituem meios de trabalho para os Magistrados no exercício de suas funções, servindo o interesse estatal, a semelhança dos tinteiros, papeis, impressoras e condições de comodidade, pois, os Magistrados devem realizar diligências processuais fora do Tribunal, por exemplo inspecções  judiciais, reconstituição dos factos, apreensões e demais diligências processuais relevantes e necessárias, para justa realização da justiça dos casos concretos submetidos ao Tribunal. Questiona-se como cumprir estas diligências andando de kupapatas, táxis e boleias?

Segundo, dados vindos de fontes oficiais, as últimas viaturas atribuídas à classe de Magistrados data de 2013, porém de lá para cá mais de 500 Magistrados ingressaram à Magistratura e estão lançados a sua sorte, sem qualquer dignidade estatutária e condições de trabalho condignas.

Coloca-se a questão: como trabalham para tornar à justiça uma realidade que sirva o interesse público?

O passaporte diplomático é um direito facultados aos Magistrados que deriva do prestígio da função de Magistrado face as várias vicissitudes a que estão sujeitos. Por conseguinte, salienta-se que muitos Magistrados jubilados por doença e não só, sistematicamente acorrem a outras geografias (países), para aceder os serviços de saúde que internamente não são proporcionados, contanto que são doenças adquiridas ao longo do exercício da Magistratura, devido ao esforço empreendido por falta das melhores condições de trabalho.

Pergunta-se:

Será que a boa administração da justiça não preocupa a sociedade em geral?

Será que os Magistrados devem continuar calados e prejudicar a boa administração da justiça e em tempo útil?

Será que a morosidade processual é imputável aos Magistrados simplesmente?

Será que é justo continuar com os salários não actualizados desde 1994?

Será que apenas os Magistrados devem ignorar o bem-estar das suas famílias?

Será que interessa a sociedade prevalecer com uma justiça mórbida?

Será que o protesto dos Magistrados deve ser ignorado?

 Será que os Deputados e os Auxiliares do Titular do Poder Executivo encontram-se em situação similar?

Por que razão aos Tribunais não é reconhecida a dita autonomia financeira e gestão, prevista no art. 178.º da CRA?

Com efeito, as perguntas acima mencionadas devem servir de reflexão para a sociedade em geral, numa altura em que o País precisa de rumo e a administração da justiça é uma função do Estado.

Também, convém afirmar que os Magistrados estão sujeitos ao regime de exclusividade de funções, que significa que os Magistrados não podem exercer outras funções pública ou privada, além da docência e investigação cientifica de natureza jurídica, art. 179.º, nº 5 da CRA, o que os torna ainda mais limitados correlação os titulares de outros poderes de soberania.

Apesar de terem um estatuto remuneratório arcaico cujos direitos sociais e económicos constituem miragem, facto é que se assiste uma clara penalização da classe com a suspensão e retirada de direitos, o que os torna mais frágeis, exemplo o caso da redução do subsídio de estímulo para 50%, manutenção e residência e o passaporte diplomático.

Realça-se que os Magistrados tiram dos seus parcos salários o dinheiro, para comprar tinteiro, papeis, combustíveis, para abastecer geradores e motorizadas que são utilizadas pelos Oficiais de Justiça na realização de várias diligências processuais, exemplo: luz, para realização das audiências (nos municípios do interior onde usa-se grupos de geradores), notificar, oficiar e outras diligências relevantes.

Outrossim, por falta de condições laborais os Magistrados veem-se obrigados a levar processos, para trabalhar em casa, por via dos táxis, moto-taxistas e boleias, agravando-se ainda mais o risco de suas vidas, tudo por falta de condições condignas e respectivos meios de trabalho.

O protesto dos Magistrados visou simplesmente exigir as condições condignas e nada mais, pois sabe-se de fontes oficias que os Magistrados vencem um salário base equivalente AKZ 380 000, 00 (Trezentos e Oitenta Mil Kwanzas), porém por força da Resolução nº 6/19 de 19 de Fevereiro os Deputados a Assembleia Nacional percebem um salário base de KZ 547. 311, 00 (Quinhentos e Quarenta e Sete Mil  e Trezentos e Onze Kwanzas) além de outras regalias, também, por força do Decreto Presidencial nº  95/17 de 8 de Junho o salário base do Titular do Poder Executivo (Presidente da República) foi actualizado para 640 129, 84 (Seiscentos e Quarenta e Cento e Vinte e   Nove Mil Kwanzas e Oitenta e Quatro Cêntimos), já os seus auxiliares: Vice-Presidente 544 110, 36 (Quinhentos e Quarenta e Quatro e Cento e Dez Mil Kwanza e Oitenta e Quatro Cêntimos), Ministros de Estado 512 103, 87 (Quinhentos e Doze e Cento Três Mil Kwanzas e Trinta e Seis Cêntimos), Ministros e Governadores Provinciais 480 097, 38 (Quatrocentos e Oitenta e Noventa e Sete Mil Kwanzas e Trinta e Oito Cêntimos), Secretários de Estado 448 090, 89 (Quatrocentos e Noventa Mil Kwanzas e Oitenta e Nove Cêntimos), além de outras regalias suplementares.

Portanto, facilmente vê-se o débil valor e consideração nutrido aos Magistrados, que desde 1994 não merecem actualização, nem reajuste salarial face a inflacção que se vive.

Vê-se uma clara violação do princípio da igualdade de tratamento em prejuízo dos Magistrados, quer formal e material, por força do art. 105.º da CRA, uma vez que entre estes órgãos e os seus respectivos titulares não existe qualquer relação de subalternização, senão a de interdependência de funções.

 A Assembleia Nacional, as instituições do Poder Executivo e seus titulares gozam de melhores condições sócio-profissionais, notoriamente percebe-se, pois Deputados e Auxiliares do Poder Executivo usam viaturas protocolares, pois em todas as legislaturas recebem viaturas, o que facilita a actividade destes órgãos, diferente acontece nos Tribunais, mas o povo crucifica os Tribunais e os respectivos Magistrados, isto é, exigindo-os que façam o impossível diante da precariedade que se vive.

Analisados os factos, claramente nota-se um desiquilíbrio inexplicável e que coloca a administração da justiça moribunda, ou seja, uma discriminação negativa que visa ofuscar a estabilidade e independência, deste importante órgão de soberania. Por consequência, outros princípios como da isenção, transparência e imparcialidade podem estar em crise, face a situação que este órgão sensível se encontra.

Ao longo deste tempo, os Magistrados sempre primaram pelo diálogo como via pacífica de resolução dos diferendos, mas sempre foram ignorados com sucesso e continuam sendo ignorados, talvez porque a boa administração da justiça não interessa os detentores do poder político e nesta senda o prejudicado é o povo.

Ademais, exorta-se a sociedade civil a apoiar a luta desta classe, porquanto a justa administração da justiça depende das condições exigidas por esta classe e, o reconhecimento dos direitos fundamentais dos cidadãos e a consolidação da democracia só será possível se tivermos Tribunais e Magistrados que tenham ferramentas para laborar. Portanto, não se percebe como se exige celeridade processual e melhor administração da justiça a estes profissionais, se as condições mínimas de trabalho os Tribunais e os Magistrados não as têm e nem as possuém.

Uma outra situação não menos importante, é que dentro da própria Magistratura existem Magistrados (um grupo restrito) que ganham muito dinheiro, é o caso dos Magistrados do Tribunal Supremo, os denominados Juízes Conselheiros (que na verdade são Juízes da 2a instância), a esses os salários foram reajustados recentemente. Os Juízes da 1a instância que na verdade são Juízes de Direito e Procuradores da República, a esses os salários não lhes é reajustado desde 1994, o que cria um fosso maior entre as duas instâncias, o que viola o princípio da igualdade de tratamento, formal e materialmente, uma vez que a Magistratura é um corpo único, pois esta situação desestabiliza a classe e consequentemente os Tribunais, razões de fundo desconhecem-se sobre o que está na base desta discriminação negativa interna.

De lembrar mais uma vez que nos Tribunais da 1a instância falta de tudo, desde as condições básicas de trabalho, a devida valorização e respeito aos seus titulares, portanto, convém afirmar que o peso da administração da justiça está nos Tribunais de 1ª instância, é ali onde se resolve o problema do pacato cidadão.

O quadro actual é uma demonstração clara da falta de vontade política para resolução das preocupações levantadas por esta classe de Magistrados, datam de longo tempo, continuar a ignorar significa comprometer a administração da justiça.

Também, está claro que a questão nada tem que ver com a falta de recursos financeiros, tendo em atenção ao avançar da carruagem.

Esta dependência extrema torna o sistema de justiça enferme cujas consequências são: a morosidade processual, corrupção, não efectivação dos direitos fundamentais dos cidadãos, parcialidade nos vereditos, pois, evidenciando a opacidade do sistema.

Portanto, preocupados com o bem servir o interesse público, razões plausíveis justificam tais reivindicações levadas acabo pelos Magistrados, pois os mesmos exigem melhores condições de trabalho e a materialização dos seus direitos sócio-profissionais,

Por conseguinte, este marasmo exige que se tomem medidas urgentes por quem está obrigado (Estado) a resolvê-las, sem desprimor de que os índices motivacionais aceleram a produtividade, em qualquer sector.

Está lançado o recto, para efeito de reflexão social.

Por: Leonardo Quarenta

Ph.D em Direito Constitucional e Internacional

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