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Quarta, 25 Dezembro 2019 20:59

Em defesa da minha dama Vs Moco defende perdão por crimes cometidos na antiga governação

O título escolhido pelo jornal “O País”, “Moco defende perdão para os crimes cometidos na antiga governação” para epigrafar a matéria do que disse há dias em Benguela, por solicitação de alguns jornalistas, tem suscitado comentários que me impõe alguns esclarecimentos.

Alguém, por exemplo, entendeu que aquilo era “um artigo” meu, quando não passou de uma interpretação, da responsabilidade do jornalista, do que eu dissera, com maior ou menor precisão.

Nesta sede, gostava de pedir penhoradamente que se olhasse um pouco para o facto de que o que digo hoje sobre esta matéria, tem toda uma sequência de esforços que completam mais de vinte anos de intervenções baseadas numa profunda reflexão sobre os problemas de Angola, desde a independência. Esforços em que me tenho despido, claramente, do casaco de militante de um partido, para tentar contribuir para soluções nacionais e africanas, dos nossos problemas fundamentais. Acrescento também que as minhas conclusões, que não pretendo impor a ninguém, são assentes numa actividasde de pesquisa, com alguma seriedade, para ser pura e simplesmente desconsiderada. Por exemplo, quando falo de uma alternativa “restaurativa” em vez da inadequada, para a situação, justiça meramente “punitiva”, vejo que alguns dos meus ferozes críticos, aduzem logo que se trata de querer defender amigos ou, pior, de querer salvar o MPLA que, segundo parece pensarem, iria agora implodir no seu esforço de auto-flagelo, se eu deixasse de falar nisso. E seria então uma enorme alegria.

Embora não sejam essas, efectivamente, as motivações da minha intervenção pública actual, sempre que me pedem uma opinião, devo aclarar que, para mim, este desejo de ver alguns partidos políticos desaparecidos ou nunca emergidos no panorama político angolano (ontem alguns desejaram a “implosão” da UNITA, a par do esforço aparentemente já conseguido de “matar” a FNLA ou do impedimento descarado do projecto Abel Chivukuvuku) nunca será a solução, perante tantas alternativas que temos. O que me parece é que algumas pessoas foram profundamente marcadas pela ideia de que entre “A” e “B” não há mais possibilidades. Quando na verdade existem “n” possibilidades, tais como A1, A2, ... B-1, B1, B2 ,,,,etc., etc. Eu penso sempre que em relação a todo o leque de possibilidades deveríamos adoptar aquela ou aquelas que nos sejam individual ou colectivamente benéficas, sem mais inúteis sacrifícios, em relação ao presente e ao futuro, já que o passado, sendo embora uma referência indispensável é fatalmente irrecuperável.

Como não é fácil – se calhar nem mesmo é possível – explicar em entrevistas, conferências ou colóquios, a ideia de “justiça restaurativa” que proponho para uma situação de excepção que se vive em Angola, no domínio da justiça quanto ao desvio do erário público de grandes proporções (não se compare isso ao “roubo de galinhas”, como alguns mo fazem, nem com outros tipos de crimes comuns que não é isso que está em causa), apelo para quem tiver um pouco de paciência, porque quer, efectivamente, ser um crítico positivo, que me leia in “Angola: por uma nova partida” (versão portuguesa angolana, 2019 pp. 103-110). Mas posso aqui mesmo fazer mais uma tentativa de síntese do que ali é dito.

O problema do desvio do património do estado para a esfera de algumas individualidades, durante os últimos 15 anos que antecederam o fim da impunidade decretada por João Lourenço (falar de 44 anos é ignorar ciclos já fechados de um passado em que nem havia metade da população actual), é de uma dimensão excepcional. Para esse problema, afirmo que a aplicação de uma justiça meramente punitiva seria uma monstruosidade, em vários aspectos. Desde logo, há a questão de saber quem tem legitimidade moral para punir e a quem, numa altura em que continuamos a ser governados pelo mesmo sistema que permitiu que as coisas atingissem essa dimensão (os mesmos governantes, no fundamental, pois e felizmente, a situação bateu no fundo, porém, começou a ser resolvida por via transicional pacífica). (Abrindo aqui um parênteses, quando brinquei que o único que sobraria seria eu, as raivas mais se acenderam, esquecendo que fui, etectivamente, dos poucos elementos que alguma vez ocupou cargos importantes no sistema que, durante os 15 anos analisados, e por vontade própria, não ocupou cargos públicos, alertando, atempadamente, para a situação que hoje lamentamos). Que tribunais punirão e a quem se foram eles que blindaram o sistema que permitiu os desvios descomunais?

Para alguns, entre os quais um amigo meu da família MPLA, é muito simples: como se tratasse de uma situação militar em que as "nossas tropas"estivessem quase a ser destroçadas por indisciplina, não se deve questionar se o novo general empossado pertence ao mesmo exército ou não, se também tem responsabilidades ético-morais pela degradação da situação ou não. Devemos pura e simplesmente permitir que ele mande executar, à calha, um ou dois comandantes para, a medo, se impor ordem na manada. Eu aceitaria este exemplo macabro se não se vislumbrassem outras soluções mais humanas e cívicas, até porque já não estamos em combates armados e pretendemos encontrar soluções conciliatórias definitivas, depois de tantos anos de pensamento belicista.

Outro aspecto da justiça puramente punitiva, nesta situação excepcional a que os meus críticos não atentam, alguns por não reflectirem sobre ele, outros por simples hipocrisia (oh, e eu que a todo o custo queria evitar verbalizar ou adjectivar opiniões alheias! Mas aqui não é possível não ver que pelo menos alguns magistrados têm consciência disso e aparentam ignorar) são as quantidades de processos versus condições de trabalho e de aprisionamento que desviariam o maior dos esforços para situações do passado, enquanto se continuaria a desviar fundos do estado no presente e no futuro. Porque, claro na minha pobre opinião, a justiça restaurativa que proponho seria muito mais educativa e persuasiva do que a punitiva que parece ter entrado em irreversível funcionamento, com consequências imprevisíveis: se no seu aspecto selectivo, que transparece nos poucos casos actuais, a nível nacional, porque haverá mais cedo ou mais tarde o reverso da medalha, ou se generalizada, como já está a acontecer com a quase paralisação de algumas províncias, e a solução serão as constantes exonerações de governadores provinciais, que não vai resolver problemas fundamentais dessas unidades territoriais (v. Ob. Cit. pp. 117-119).

Dizem-me que não precisamos de nenhum tipo de justiça transicional porque em França, Portugal, Brasil e até na África do Sul, as coisas seguem o seu livre curso e ex presidentes e primeiros ministros estão a ser julgados normalmente por corrupção, que constitui a principal agenda da nova governação angolana. O problema que eu coloco é que em Angola houve uma interrupção de julgamentos judiciais por crime de colarinho branco, durante vários anos e há um acumulado de situações de dimensão incrível. Julgados, e por estes mesmos tribunais e juízes que ainda não se penitenciaram (fá-lo-iam, no âmbito de uma justiça restaurativa) foram os que tentaram contrariar a situação: Rafael Marques, William Tonnet, Revus, etc. etc.

Pegando apenas no caso próximo da África do Sul, isso nunca aconteceu e os tribunais sempre funcionaram normalmente, na base das soluções políticas consensuais que foram encontradas no processo de democratização arracial do regime.

Pelo que vamos comparar isso (as comparações valem o que valem mas podem ajudar) a duas estradas. A estrada sulaficana manteve as suas pontes intactas. Será necessário construir desvios para reparar o quê? As pontes da estrada angolana foram levadas por uma tempestade e queremos que viaturas circulem, normalmente, e à mesma velocidade que levavam antes da destruição das pontes? Alguns se lembrarão do que aconteceu a uma família benguelense que viajava para Luanda, de noite. A ponte do Benfica-Luanda tinha sido levada por uma forte chuvada e não houve tempo para as autoridades assinalarem a ocorrência. O pater famílias, ao volante, não se deu conta do desaparecimento da ponte, a tempo de travar. Por isso, voou com a viatura com todo o agregado para a destruição e a morte.

A justiça restaurativa que proponho, não só para o caso concreto de Angola, mas para algumas outras situações africanas, e que pode assumir várias formas a discutir, é assim uma solução política que se impõe numa situação que ultrapassou a simples dimensão jurídico-judicial. Como se fosse um desvio da estrada que se faz, enquanto se repõe a ponte principal.

Por Marcolino Moco

Festas Felizes

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