A presidente da Câmara dos Deputados dos EUA, a democrata Nancy Pelosi, chegou nesta terça-feira a Taiwan, na primeira visita de um integrante do alto escalão político americano à ilha desde 1997, acirrando a tensão já elevada nas relações entre Pequim e Washington. A viagem foi mantida em sigilo por semanas, e, apesar das promessas da Casa Branca de que tudo transcorrerá "em segurança", a China, que considera a ilha autogovernada parte do seu território, prometeu hoje que os EUA "pagarão um preço alto" pela visita, e iniciou uma série de manobras militares na região.
O Boeing C-40C da Força Aérea dos EUA que levava Pelosi pousou por volta das 22h40, no horário local (11h40 em Brasília), no aeroporto de Songshan, nos arredores de Taipé, vindo de Kuala Lumpur, na Malásia. A rota usada foi pouco usual, como mostrou o site de monitoramento FR24: a aeronave contornou as Filipinas e não passou pelo Mar do Sul da China, área onde Pequim tem disputas territoriais com os vizinhos e mantém presença militar ostensiva. Antes da chegada, uma mensagem de boas-vindas foi projetada no arranha-céu Taipei 101, de 438 metros de altura.
Em comunicado divulgado pouco depois da chegada, Pelosi afirmou que a visita "honra o compromisso inabalável dos EUA com o apoio à vibrante democracia taiwanesa". "A solidariedade dos EUA com os 23 milhões de habitantes de Taiwan é mais importante do que nunca, no momento em que o mundo enfrenta uma escolha entre a autocracia e a democracia", escreveu a presidente da Câmara, que é a segunda na linha de sucessão do presidente dos EUA.
Pelosi destacou que a viagem "de forma alguma contradiz a longeva política dos EUA" para Taiwan, estabelecida nos anos 1970 e que é marcada por um robusto apoio militar, mas sem o estabelecimento formal de relações diplomáticas.
Conhecida crítica da China e considerada "persona non grata" no país, ela não confirmou a viagem até pouco antes de deixar a Malásia. A visita não aparecia no roteiro divulgado à imprensa, que incluía escalas em Cingapura, Malásia, Coreia do Sul e Japão.
Antes da chegada do avião de Pelosi a Taiwan, a China anunciou uma série de exercícios de artilharia no Mar de Bohai, próximo ao Mar Amarelo. As manobras começaram na segunda-feira e devem seguir até a quinta. O comando militar chinês também realizará manobras no Mar do Sul da China, e algumas áreas foram fechadas à navegação pelo menos até sábado.
Caças chineses voaram perto da linha que divide os dois territórios, e o comando Sul do Exército de Libertação Popular, as Forças Armadas chinesas, está em estado de alerta elevado. Voos de passageiros em regiões próximas a Taiwan tiveram seus itinerários modificados, e alguns veículos locais chegaram a afirmar que o espaço aéreo no estreito estava fechado para aeronaves civis, mas o tráfego pelo lado taiwanês não sofreu alterações aparentes. Segundo a rede CGTN, caças chineses Sukhoi Su-35 cruzam o Estreito de Taiwan — o avião de Pelosi chegou pelo lado Leste da ilha, oposto ao estreito.
De acordo com o jornal South China Morning Post, dois porta-aviões, Liaoning e Shandong, deixaram os portos onde estão baseados, e há movimento de tropas e blindados em Xiamen, cidade localizada a menos de 6 km de uma ilha controlada por Taiwan. Analistas, contudo, veem na movimentação mais uma demonstração de força por parte dos chineses do que uma intenção real de militarizar a viagem de Pelosi.
— Queremos dizer mais uma vez aos EUA que a China está de prontidão, e que o Exército de Libertação Popular jamais ficará inerte. A China adotará respostas firmes e fortes para defender sua soberania e integridade territorial — declarou, na segunda-feira, o porta-voz da Chancelaria chinesa, Zhao Lijian, em entrevista coletiva. — De toda forma, se ela ousar ir [a Taiwan], vamos esperar pra ver.
Houve ainda medidas comerciais, supostamente de retaliação à visita: empresas taiwanesas de alimentos afirmam que alguns de seus produtos estão sendo barrados nos portos chineses, e Pequim não explicou o motivo. Mais de 100 itens estariam banidos, incluindo biscoitos e doces.
Do outro do estreito, Taiwan colocou suas forças em alerta máximo: a imprensa local afirma que as tropas se encontram em estado de prontidão, e devem reduzir o tempo necessário para agir no caso de algum tipo de agressão chinesa. Caças Mirage 2000 estariam prontos para decolar em bases no leste da ilha, segundo o jornal Liberty News.
As forças dos EUA também elevaram o alerta: há quatro porta-aviões americanos nos arredores de Taiwan, além de um contratorpedeiro, que integra um destacamento que está na região desde meados de maio. Ao menos três Boeing P-8 Poseidon da Força Aérea dos EUA, responsáveis pelo monitoramento de atividades navais, foram identificados perto de Taiwan nas últimas 48 horas.
Dentro da Casa Branca, a viagem dividiu opiniões. O presidente Joe Biden afirmou que os militares não viam a ideia com bons olhos, temendo uma possível reação chinesa — em conversa com Xi Jinping, Biden ouviu o "conselho" para que os EUA não "brincassem com fogo". Dentro das atuais diretrizes de política externa dos EUA, a China está em lugar central, e embora a Casa Branca e Pelosi destaquem que não mudou sua política de "Uma China", Pequim vê ambiguidades no discurso americano.
Declarações de Biden de apoio à ilha, gafes do presidente sugerindo que os EUA poderiam intervir no caso de uma hipotética invasão — Pequim vê Taiwan como parte de seu território, embora jamais tenha exercido controle de fato sobre a ilha — e a visita de Pelosi contribuem para essa percepção.
Na véspera da viagem, o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional, John Kirby, declarou que o governo americano iria garantir que a visita de Pelosi seria "segura". Segundo ele, Pelosi "tem o direito de visitar Taiwan, e um presidente da Câmara já visitou Taiwan sem qualquer problema" no passado.
Kirby se referia à viagem do republicano Newt Gingrich em 1997, mas sem fazer referências às diferenças entre os contextos: na época, a Câmara era controlada pela oposição ao presidente Bill Clinton, democrata, e Pequim tinha outras prioridades, como o retorno de Hong Kong ao seu controle e a ampliação dos laços diplomáticos com o resto do mundo. Os chineses ficaram irritados, mas preferiram "engolir" a presença do republicano em solo taiwanês.
Agora, com os ânimos acirrados entre Washington e Pequim, e a nova posição chinesa no contexto global, a visita traz consigo riscos elevados, algo reconhecido pelo próprio Kirby.
— Ela aumenta o risco de erros de cálculo, como eu disse, que podem levar a consequências indesejadas — declarou, em entrevista coletiva. — É aí que está o risco. Não digo que poderá haver um ataque direto, mas eleva os riscos de erros de cálculos e confusão, que podem levar a essas consequências indesejadas. Globo