O olhar esquivo e o tom em que fala vincam o sentimento de revolta enraizado na mente destroçada por traumas. O quadro lembra a emoção expressa pelos adultos, quando descrevem as dificuldades transpostas em cenários de desespero, que levaram o menino de 14 anos a dar pouca importância ao facto de "ter ou não ter pai e mãe."
A sujidade nos calções que veste, os chinelos gastos, nos pés, o rosto desfigurado por cicatrizes resumem o esforço que o menino empreende para sobreviver à interminável disputa com outros petizes, a fim de conquistar o respeito "na selva”.
Maria Bualette Issanzu (nome fictício), que por influência de colegas e amigas começou a consumir álcool, ganha a vida nos parques de estacionamento de camiões. O rosto atraente e a moldura no corpo funcionam como isca que atrai os clientes, via de regra adultos e utentes de viaturas. Por vezes atende solicitações definidas por uma intermediária mais velha.
Proibida de passar pela casa dos pais que cuidam da sua filhinha, recorre aos préstimos de irmãos e pessoas que frequentam o lar paterno. Com este ofício "não passo fome, nem durmo na rua”.A pseudo independência espevitou a negligência em relação aos estudos.
Inicialmente receosa, implora pela discrição. "Não faz imagem nem grava”, impõe a adolescente, virando as costas, baixando a cabeça e condiciona: “se for para a rádio não posso, ou já estás a gravar?” Finalmente parte para o diálogo.
A partir da escola apren-deu com as colegas a assediar clientes. A princípio só para um saldo ou comprar meren-da, durante os intervalos do turno. “A minha presença despertou sempre o interesse dos homens e minhas amigas incentivaram-me a tirar proveito máximo da situação. Engravidei pela primeira vez e saquei” - conta. Acrescenta que da segunda gestação “veio a menina que tanto adoro”.
Bualette diz que tentou, sem sucesso, um recomeço diferente, ”mas a facilidade com que ganha o dinheiro falou mais alto”. Consciente que o tempo de vacas gordas passa, projecta amealhar parte dos rendimentos para investir num negócio digno.
Comemorações simbólicas em todos os municípios, reflexões em palestras, e ciclos de formação sobre a situação da criança perante a pandemia da Covid-19, violência, expansão de pontos focais, parâmetros e fluxos da criança, visitas de auscultação e operacionalização da rede de atendimento SOS preenchem a agenda de actividades em curso, alusivas ao mês de Junho, consagrado à criança.
Falta de afecto
Segundo a chefe dos serviços provinciais da Lunda-Sul do Instituto Nacional da Criança, Jaqueline Chicapa, os esforços gizados para ga-rantir uma vida estável à criança resvalam por "falta de afecto". O quadro é resultado da desestruturação as-sustadora das famílias, o que leva muitos petizes a "trocarem a casa pela rua e os centros de acolhimento".
Como mãe atenta aos problemas que acentuam a perda de valores, constata, preocupada, o facto de os pais terem um papel na família muito limitado, não intervindo para corrigir o que está mal. Este fenómeno ganha mais espaço em zonas urbanas onde a influência social incentiva o crime, o consumo prematuro de álcool e a prostituição, da qual resultam gravidezes precoces e doenças de transmissão sexual.
Jaqueline Chicapa fala da insistência na realização de casamentos precoces de adultos com meninas a partir dos 14 anos em localidades rurais, e da sedução de menores por mais velhas, que geralmente agem como intermediárias no aliciamento de menores para a prostituição.
Entre as causas que incentivam crianças e adolescentes a enveredarem por caminhos ínvios aponta as telenovelas, conversas de adultos em presença de menores, as publicações nas redes sociais e outros meios.
Participação em crimes
Assinalou também a participação de menores, via de regra do sexo masculino, como "pontas de lança" em crimes engendrados por adultos, pelo facto de os primeiros serem "inimputáveis perante a lei, devidamente instruídos para não revelarem o local de residência."
A também antiga depu-tada infantil na província da Lunda-Sul fala da existência de um número reduzido de "crianças na rua" como resultado de uma campanha de recolha realizada pelas autoridades por força da pandemia da Covid-19, e consequente integração nos lares de acolhimento S.João Calábria e Primeiro de Dezembro, todos em Saurimo.
A sua actividade conta com larga parceria da Acção Social Família e Igualdade do Género (ASIG) e Procuradoria Geral da República para os casos de conflito com a lei que envolvam crianças.
Desde que assumiu o cargo, em Outubro de 2019, Jaqueline Chicapa conta apenas com a prestação de um colaborador, na única sala disponibilizada no edifício das repartições públicas. Os dois computadores atribuídos poucos dias depois de assumir funções constituem o património do INAC na província.
A estória do “Paulo”, aliás “Maneli” Edna Cauxeiro
“Com licença, bom dia tia, a tia não pode só me dar comi-da?”. Do alto, olha para o rapaz todo andrajoso: descalço, calção e camisola furados e imundos.
Nas suas mãos, um saco transparente permite ver no interior alguma comida. “Sobe”, autoriza, ao que o mesmo responde: “paro no quê, tia?”.Resposta: no terceiro andar. É lá que aguarda pelo menino. “Como te chamas? Que idade tens? Onde vives?”, pergunta. Olha para a “tia” desconfiado, tenta mentir que tem seis anos, mas, exceptuando a altura, o seu desenvolvimento indica que tem mais. “Que idade tens?”, repete.
“Maneli”, nome inicial, diz ter oito anos, ser morador do bairro Imbondeiro e filho de tio António e tia Feli, ambos desempregados. “Essa comida que tens no saco tiraste do lixo?”. Garante que não. “Uma tia, de um outro prédio me deu. A tia não pode só me dar também roupas?”, pergunta.
Pelo seu tamanho, dificilmente as roupas das crianças em casa da “tia” caberiam nele. Ainda assim aparece entre as peças uma t-shirt, que entrega ao rapaz, agora sorridente.
“Quem te furou a orelha, a tua mãe não ralhou contigo?”. Olha, envergonhado, para o chão e diz que a mãe ainda não o viu com a bijuteria colocada na orelha, a seu pedi-do, por Makaya, uma prima. Maneli abandonou os estudos porque os pais não têm condições, conta. “Como te chamas mesmo?”. “Sou o Paulo, tia”, mente. “Há bocado não disseste que o teu nome é Maneli?”, pergunta. “Eh, se esqueci, tia.
É Maneli mesmo”, diz. “O que queres ser quando cresceres?”, pergunta. A resposta é demorada, mas firme: “quero trabalhar na Elisal, para recolher o lixo”, porque hoje “no lixo encontro muitas coisas boas, que ainda dá para usar”. Despede-se da criança com a satisfação de, ao menos, lhe ter arrancado um sorriso.
Como ele, são inúmeros os rapazes que continuam a vaguear, diariamente, pelas centralidades, em busca do pão de cada dia. Nem sempre é possível beneficiarem da compaixão e da simpatia dos moradores, agastados e sem condições para auxiliar tanta criança faminta, rota, descalça, sem máscara nem luvas para se protegerem da pandemia que assola o país e o mundo. JA