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Terça, 03 Março 2020 20:55

“Na justiça também há marimbondos” - José Augusto Junça

José Augusto Junça, Director-Geral da Empresa de Transporte Urbano Rodoviário de Angola (TURA) José Augusto Junça, Director-Geral da Empresa de Transporte Urbano Rodoviário de Angola (TURA)

Aos 75 anos, ainda fica surpreendido com a política e com as opções económicas em Angola. Por isso, confessa sentir-se “profundamente enganado”. A experiência e a idade dão-lhe liberdade para criticar abertamente dirigentes do MPLA e não tendo dúvidas de que há práticas antigas que se mantêm.

“Esse metro de superfície é uma cavalaria muito alta”

Apoiante do combate à corrupção, vê nela também motivações pessoais de João Lourenço. Ligado aos transportes há 30 anos, José Augusto Junça é contra a construção do Metro em Luanda para já e admite que ninguém quer investir nos transportes rodoviários, porque “não são rentáveis”.

Como está a situação dos transportes?

No geral, está muito mal. Nos transportes rodoviários de passageiros por autocarros, a cidade de Luanda precisaria de, no mínimo, de sete mil autocarros.

E quantos tem?

Não deve ter 100

E como se vai buscar o restante?

Só com um reforço Financeiro do Governo já que as empresas estão descapitalizadas, porque, ao longo dos anos, não se atenderam os transportes públicos como deveria ser feito. Os custos de exploração não são cobertos e não há retornos. As empresas foram defi­nhando e até pararam com o transporte urbano.

O transporte Inter-Provincial ainda é rentável.

Com as empresas descapitalizadas, qual seria a solução?

Um investimento do Governo a fundo perdido.

Tem noção de quanto é que o Governo precisaria de investir?

Não estou a dizer que gostaria que o Governo comprasse sete mil autocarros. Se fosse possível comprar faseadamente, provavelmente poderia resolver-se as di­ficuldades quase na totalidade. Os autocarros não podem exceder características mecânicas normais do Euro 4 (padrão europeu de emissões de gases), que são monitorizações eléctrónicas e não temos pessoal formado nessas áreas. Depois é o próprio abastecimento de acessórios. É preciso garantir o abastecimento destes com regularidade. Se  forem chineses, temos de ter um armazenamento de peças num período mínimo de seis meses que é o tempo que demora a importação da China. Depois zelar pelo comportamento das massas, que são as pessoas e não as massas de lubri­ficação. Pintam a manta demais. Entendemos que, desde que haja um buraquito num autocarro, a pessoa entra. Mas não pode ser assim.

Mas isso precisaria de mais educação …

O que é muito difícil. As pessoas não querem trabalhar...

Se o Governo, por acaso, decidir comprar os sete mil autocarros acredita que há gente suficiente para trabalhar neles?

Não há assim tanto. Têm de ser formados. Por isso é que o investimento tem de ser parcelar.

Acredita que o Governo está a pensar em fazer esse investimento?

Não sei. Nunca falámos, apesar de ter recebido João Lourenço, na Tura. Conversámos apenas. Se forem atribuídos anualmente 100 autocarros às empresas licenciadas e a fundo perdido pode ser que as coisas comecem a funcionar.

Há investidores privados interessados nos transportes públicos?

Provavelmente sim, mas, nas condições actuais, não acredito. Não há retorno. Os transportes públicos não são rentáveis. A menos que haja lavagem de dinheiro e outras jogadas ­nanceiras, ninguém está disposto a colocar dinheiro. O título do bilhete não cobre sequer os custos de exploração.

O que é preciso então para que haja interessados em investir nos transportes?

Tem de actualizar as condições de comercialização.

Aumentando o preço dos bilhete?

Com o Estado a participar na diferença. O público pode pagar de um a 100 kwanzas, mas o Estado tem de compensar depois. As pessoas não têm dinheiro, de facto, e muito menos para comer. As massas proletárias não têm dinheiro, nem para comer. Tenho trabalhadores cujos filhos foram dispensados da escola por falta de dinheiro para pagar propinas.

O Estado deve continuar a subvencionar os transportes?

Tem de subvencionar. Obrigatoriamente. Se não o ­fizer, não teremos transportes públicos.

E o Estado tem condições para o fazer?

O Governo tem de fazer. O Governo é uma coisa e os elementos que estão no Governo são outra. Há camaradas que têm carros e estão-se marimbando para os transportes. Como têm carros assegurados e gasolina paga não querem saber de quem usa os transportes públicos. O resto não importa.

O senhor devia ser chamado a ter mais intervenção na política nos transportes?

Quando me quiserem convidar, que me convidem.

E não o têm convidado?

 Não.

Porquê?

Talvez o ministro, como faz parte da política dos ‘workshops’, não tenha orçamento suficiente. O último conselho consultivo foi no Lobito. Houve um recentemente que nem tive conhecimento.

Sendo responsável de uma empresa como a Tura não deveria ser chamado?

Acho que deveria ser chamado, até porque sou interventivo. Faço intervenções a sério.

Talvez por isso não o chamem...

Não sei. Talvez se sintam ‘apalpados’. Ficam melindrados com as intervenções. Tenho o coração ao ‘pé da boca’ e, quando me convidam, é para ouvir as verdades.

Quanto é que  Angola precisaria para fazer um investimento a sério nos transportes?

Para cada uma das operadoras, Angola precisaria de mais de um milhão de dólares por ano. E sendo uma compra de autocarros do Governo o valor pode baixar. Não posso é aceitar que esses autocarros escolares custem 255 mil dólares cada um. Estão a brincar.

O que era essencial na política dos transportes?

Acima de tudo, disciplina e responsabilização, quer aos concessionários quer aos concessionados. Por exemplo, o Instituto Nacional dos Transportes Rodoviários é o quê? Aliás, há outras entidades de transportes servem para quê?

O que pensa do actual ministro dos Transportes?

É um jovem honesto e quer fazer acontecer. Mas a estrutura do Ministério é a mesma praticamente. Só mudaram talvez umas pinturas e uns efeitos.

Quando diz que a estrutura é a mesma, está pessimista?

Quero apenas dizer que estou indeciso. De facto, não é o ministro que faz tudo. O ministro tem de ter uma boa equipa para poder brilhar. O Herminio Escórcio, por exemplo, não entendia nada de petróleos e nem sequer tinha candeeiros de petróleo, mas rodeou-se de uma equipa de luxo. Foi o melhor director-geral que passou na Sonangol. Na altura, até dizíamos que a empresa tinha quadros nas prateleiras.

E é isso o que falta hoje ao Ministério dos Transportes?

Acredito que sim.

Se o senhor fosse ministro dos Transportes o que faria?

Pedia demissão. São áreas muito complexas e grandes.

O ministro dos Transportes devia chamar outras pessoas?

Sim. Está bem-intencionado, mas não tem pessoal sufi­ciente para atender a tudo. Por exemplo, a Marinha Mercante é complexa e não é a Secil que a vai resolver. Há erros de palmatória que estamos sempre a cometer. Um dos responsáveis da Secil tinha sido electricista. Não pode. Muitos só vão para esses cargos por serem do partido ou da ‘bó­a’. Não pode.

A construção do metro de superfície é uma boa ideia?

É. Mas não para já. É bom que se comece a pensar nisso, mas não para já. Não sei se ideia é só para agradar os alemães, com esse orçamento de 3,5 mil milhões.... O Metro não pode ser justifi­cação para fazer aumentos, como o IVA. Tudo agora é culpa do IVA.

O Metro pode prejudicar possíveis investimentos nos transportes rodoviários?

É evidente. Estive recentemente numa reunião com as federações dos desportos e a ministra dos Desportos. A federação a que pertenço (de desportos náuticos) vai receber 11 milhões de kwanzas. Temos cinco modalidades. Não chega para uma. Uma única deslocação ao estrangeiro come tudo isso. Mas não há dinheiro.

PAÍS SAQUEADO

E pode acontecer o mesmo com os transportes?

Naturalmente. Não há dinheiro. Este país foi saqueado. Foi saqueado. E não foi só pelo antigo Presidente, José Eduardo dos Santos. Mas ele permitiu muita coisa.

E tinha condições para travar?

Tinha. Tínhamos uma polícia de inteligência à altura. Para umas coisas serve e para outras já não serve? Não brinquem comigo. Tenho 75 anos de vivência aqui, conheço bem o ‘mambo’. Não venham com estórias.

Está portanto decepcionado?

Muito. Nunca pensei que chegasse ao ponto onde chegou. Nem no tempo da guerra vivíamos com essa pobreza e essas difi­culdades. Já para não dizer no tempo do colono. Não sou eu apenas a dizer isso. Fale com os mais velhos e eles dizem isso, nunca vivemos assim.

O que acha do actual Presidente?

É evidente que João Lourenço fez parte do sistema. Ele que esteve por dentro do sistema tem de virar isso.

Vai conseguir?

Sim, se tiver apoios.

De que apoio é que o Presidente precisa?

Para já, tem de fazer umas limpezas particularmente no partido. É ostentação de mais. Há camaradas que não são camaradas coisa nenhuma. Mesmo agora com o casamento da filha do General ‘Dino’. Cinco milhões de dólares que aquilo custou? É uma afronta ao povo. É uma afronta! Ele que fosse casar a ­filha no Tibete, mas não aqui.

Que limpezas é que propõe?

Há camaradas ali que estão no Comité Central e no Bureau Político que não podem estar. Não podem estar, porque são corruptos, ou melhor, têm sinais de riqueza que não podem justificar.

Esse combate à corrupção no MPLA não é novo. Já em 1980, José Eduardo dos Santos usava as mesmas palavras que hoje João Lourenço usa. Porque é que nada foi feito?

Fui profundamente enganado como militante do partido.

Apercebeu-se disso quando?

Há três ou quatro anos. Mais precisamente quando foi decretado pelo ex-Presidente a ‘tolerância zero’ à corrupção.

Ainda se sente enganado?

Ainda, porque isto não passa de um dia para o outro.

Apoia o actual combate à corrupção que está a ser feito pelo Presidente da República?

Naturalmente que sim. O país foi muito roubado, muito, muito.

Não acha estranho que o Presidente, tendo chegado a secretário-geral do MPLA, só se tenha apercebido da corrupção depois de chegar à presidência da República?

Por isso é que digo que ele está por dentro do esquema.

LIMPEZA TOTAL

E esse combate tem sido o sufi­ciente?

Ainda não temos uma justiça à altura para fazer isso. A nossa justiça ainda é débil. Mesmo na justiça também há marimbondos. Isto está tudo manietado de Cabinda ao Cunene. A limpeza não pode ser total e imediata. Tem de ser paulatina. É evidente que as ­guras mediáticas são as que estão mais expostas. O que me aborrece, nos militantes do partido, é que querem justi­car o injustifi­cável. Todo o mundo sabe. O povo do asfalto sabe. O de Angola profunda nem sabe quem eles são.

Há na política de João Lourenço uma motivação pessoal?

Provavelmente.

E as motivações pessoais devem sobrepor-se às do Estado?

Não, de maneira nenhuma. João Lourenço sofreu na pele o facto de ser subordinado do antigo Presidente.

Foi ministro da Defesa, secretário-geral do MPLA, vice-presidente da Assembleia Nacional… Isso é sofrer na pele?

Sofreu antes quando disse que podia ser Presidente da República. Podem existir outras motivações que desconheço.

Concorda então que há um combate em que a família do antigo Presidente é atingida?

Sim. Tudo culpa de José Eduardo dos Santos que permitiu tudo isso. Mas há outros. O actual Presidente é um estratega. É general, estudou na Rússia. É jogador de xadrez. Não pode abrir várias frentes de combate se não vai perder.

Acha que vai abrir outras frentes?

Sim.

Se não abrir?

Pode dar-se mal.

Fala-se em protegidos...

Fala-se que Manuel Vicente tem uma fortuna de 60 mil milhões de dólares. Como? Como isso é possível?

Não acha que tem sido protegido pelo Presidente da República?

Talvez o João Lourenço necessite dele ainda.

Ainda?

Sim.

E depois?

Encosta-o.

Necessita dele para...?

Como acessório de qualquer coisa. Manuel Vicente e outros não podem continuar a ter a vida que têm. Não podem. Fizeram mil vezes pior do que o colono fez.

Partilha da ideia de que o combate está a ser selectivo?

Tem de ser selectivo.

Só com os mais próximos ao ex-Presidente?

Onde está o Augusto da Silva Tomás? Quem é que deu mais nas vistas? Por exemplo, como é que a ‘Tchizé’ é membro do Comité Central? Quem é a ‘Tchizé’? Como é que ela chegou lá? Ela foi para militante por ser ­lha do Presidente e não pelos elevados serviços prestados ao partido.

Mas chegou a questionar isso?

Não. As pessoas tinham de andar de boca fechada.

E hoje já podem andar de boca aberta?

Mais aberta. Mas nem tanto.

Porquê?

Por causa das represálias directas ou indirectas. Há práticas antigas que se mantêm. Particularmente nas províncias, em que o governador é o deus daquilo tudo. E não pode ser. Não pode.

Marcolino Moco chegou a falar de uma justiça restaurativa…

Não. O camarada Marcolino que me desculpe, mas não. Há determinado nível de inteligência em que as pessoas sabem o que fazem. A maior parte dos tais marimbondos sabia o que estava a fazer. Actualmente, ainda há pessoas que estão a ser presas por desvios. Não sabem o que fazem? Estão a brincar. As pessoas não têm consciência. O novo presidente da CNE não pode ter o currículo manchado, com um desvio de 50 milhões. Diz que foi um erro. Não pode ser.

Então, porque o MPLA aprovou o nome de Manuel Pereira da Silva?

Por conivência de muitos. Para já, a presidência do partido, de João Lourenço e o seu secretariado geral. Não é a primeira vez que o MPLA é  acusado de manipular as eleições. Dá-se esta nomeação e as coisas continuam. Não pode.

É um erro de João Lourenço?

É um erro do partido.

Não receia que este combate à corrupção possa dividir o MPLA?

Naturalmente que vai dividir.  Quando Higino Carneiro se permite fazer afrontas ao partido, isto está mal. Se tem críticas ao partido, deve fazê-las lá dentro.

E pode? Não pode sofrer represálias?

Não sei, mas ele tem de assumir as suas responsabilidades.

O MPLA aceita isso?

Esse é um dos graves problemas do MPLA. Alguns militantes em cadeiras importantes não são honestos, são uns lambe-botas. E continuam. Só mudaram a ‘casaca’.

 Indirectamente, está a dizer que João Lourenço ainda não tem mãos no MPLA?

Sim, ainda não, na sua totalidade. Mas vai ter se o partido o ajudar.

Como vê a política económica do país?

O país está falido. O Governo tem de andar com muita coerência e não se pode meter em cavalarias altas. E esse metro de superfície é uma cavalaria muito alta. Devíamos ter outro comportamento.

Que aposta económica é que deveria ser feita?

A aposta devia ser nas pessoas. Na educação. É nas pessoas que tem de se investir. E esse investimento não está acontecer. Essa coisa de apostar em universidades em tudo quanto é canto não resulta,. Vamos ver a qualidade dos quadros que de lá saem e a maior parte é para meter no lixo.

Não receia do destino das empresas que estão a ser arrestadas?

Não. Mal do Estado se não fi­zesse esse asseguramento.

Confia que vai haver uma boa gestão?

Vai haver gestão. Agora se vai ser boa é que não sei.

Valor Economico

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