Manuel Vicente está protegido pela lei angolana de imunidade para titulares de cargos públicos, que limita essa proteção a cinco anos após o fim do exercício de funções, e esse prazo expira agora.
O investigador português sustenta que, “a partir da próxima semana, tem de ser tomada uma decisão legal” sobre as acusações que impendem sobre o antigo governante, nomeadamente enquanto arguido na “Operação Fizz” em Portugal, mas também como implicado pela Procuradoria-Geral da República (PGR) angolana em “um terço” da acusação no caso dos negócios dos generais angolanos ‘Kopelipa’ e ‘Dino’ com empresários chineses.
Rui Verde assina um capítulo de um livro sobre justiça em África publicado esta semana pela Pretoria Law University Press (“Criminal justice and accountability in Africa: Regional and national developments”), em que enquadra as razões jurídicas e, sobretudo, políticas que estiveram na origem da entrega pela justiça portuguesa à justiça angolana em 2018 da responsabilidade de julgar Manuel Vicente no processo resultante da Operação Fizz, concluído com a condenação do antigo procurador-adjunto Orlando Figueira a seis anos e oito meses de prisão.
O processo colocou as relações entre Portugal e Angola num dos graus mais baixos do respetivo “termómetro” diplomático desde a independência angolana, em novembro de 1975, e Luanda acabou por “vencer” a contenda, na opinião de Rui Verde, com a separação do processo e o envio da peça processual relativa a Vicente para a PGR angolana.
Entre os vários argumentos invocados, segundo o autor do artigo “Post colonialism and sovereignty vs international justice: The case of Angola”, o mais importante terá sido o da “soberania”, apesar de Manuel Vicente ter sido acusado de corromper um magistrado português para extrair vantagem exclusivamente privada na aquisição pessoal de um imóvel de luxo nos arredores de Lisboa.
“O que começou como um processo judicial acabou por revelar-se uma disputa política intensa entre os dois países. Angola foi inflexível argumentando que não se tratava de uma questão de justiça, mas da sua própria soberania, e que Portugal estava a usar mistificações legais para exercer o poder contra a sua antiga colónia africana”, escreve Rui Verde.
“Portugal [pelo seu lado] sustentou que procurava justiça, e que corromper um funcionário judicial português em Portugal era um assunto muito sério, alegando, relativamente aos aspetos políticos, que o Governo era impotente para intervir no seio do sistema jurídico”, acrescenta.
Desde a crise económica e financeira de 2008, Portugal tornou-se fortemente dependente do investimento angolano e essa circunstância revelou-se decisiva.
Devido “à sua dependência financeira e económica”, argumenta Rui Verde, Portugal acabou por deferir a pretensão angolana e, em janeiro de 2018, após quase um ano de contencioso entre os dois países, no início da fase de julgamento, o juiz português separou o processo contra Vicente dos outros coarguidos, prosseguindo o processo apenas contra os portugueses, condenados a prisão em dezembro de 2018.
Quanto a Manuel Vicente, entretanto sozinho num processo judicial separado, recorreu imediatamente da decisão de o submeter a julgamento em Portugal para o Tribunal da Relação de Lisboa, que veio a dar-lhe razão.
“Após algumas pronúncias não muito discretas de preocupação por parte do Governo português relativamente aos impactos negativos que o caso estava a ter na relação bilateral, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu, em maio de 2018, enviar o processo para Luanda”, diz o autor, acrescentando que quando o processo chegou à capital angolana “estagnou”.
O caso está envolto num manto de silêncio desde maio de 2018 e “as autoridades angolanas estão, aparentemente, à espera do fim da ‘ratione personae’ de imunidade, que irá ocorrer em 2022. Muito provavelmente depois disso, os tribunais angolanos declararão que Vicente está abrangido pela lei de amnistia de 2016 e assim o processo legal terminará, sem qualquer consequência”, vaticina o jurista português, referindo-se a uma lei aprovada ainda no tempo do antigo Presidente José Eduardo dos Santos, que amnistia todos os crimes com pena até 12 anos de prisão, cometidos até 2015.
Rui Verde considera o (não) julgamento de Manuel Vicente pela justiça portuguesa como “um caso exemplar de privatização de prerrogativas públicas, uma vez que os atos indiciados não são atos públicos, mas estritamente privados, e ele utilizou toda a maquinaria do Governo para se defender”.
“A soberania de Angola foi reforçada por este caso. Só em 2022 [a partir da próxima terça-feira] se saberá se também será feita justiça”, conclui o jurista.
O processo da Operação Fizz está relacionado com pagamentos, de mais de 760 mil euros, do ex-vice-Presidente de Angola Manuel Vicente, e a oferta de emprego a Orlando Figueira como assessor jurídico do Banco Privado Atlântico, em Angola, em contrapartida pelo arquivamento de inquéritos em que o também antigo presidente da Sonangol era visado, designadamente na aquisição de um imóvel de luxo no edifício Estoril-Sol, por 3,8 milhões de euros.
No caso angolano em que poderá ser envolvido, Manuel Vicente terá ajudado e também beneficiado de negócios feitos por Manuel Helder Vieira Dias, conhecido como ‘Kopelipa’, antigo homem da segurança do falecido Presidente da República José Eduardo dos Santos, e por Leopoldino Fragoso do Nascimento, conhecido como ‘Dino’, empresário e também homem da confiança do antigo chefe de Estado.