Não é de hoje a prática do uso de grandes slogans mobilizadores para a construção da imagem política da governação, sobretudo em termos da afirmação de valores que guiarão a vida pública. Embora não tenha sido declarado formalmente nem estejamos nos marcos de um ano civil, na verdade foi inaugurado de Agosto de 2016 a Agosto de 2017 o “Ano do rigor e da disciplina”. Este género de slogans procura exprimir um objectivo ou um alvo, conjugando a intenção de introduzir na linguagem política uma nova retórica discursiva (e estamos já assistir a políticos e governantes que usam o novo slogan) e a pretensão de o tornar num “grito de guerra” dos militantes partidários, neste caso contra a inércia, deixa-andar e vários outros vícios de que todos nos queixamos.
Este novo slogan, certamente inspirado na escolha brasileira de marketing político, busca atender, por um lado, a uma estratégica comunicacional que introduza algo que sirva de alavanca aglutinadora e, por outro, política, já que o MPLA parece finalmente ter reconhecido que há erros e desgaste pelos seus anos de governação.
No Brasil, quando Fernando Collor de Mello quis convencer de que era capaz de dar a volta às várias críticas de corrupção ao seu governo, inventou o slogan “Collor, um novo tempo vai começar”. De nada valeu toda a máquina propagandística. Por falta de medidas práticas representativas do novo tempo, o desgaste acelerou-se e foi expulso da cadeira com um impecheament. Quando em 1990 as pesquisas mostravam que a classe média tinha medo de votar em Lula para Presidente, criou-se o “Sem medo de ser feliz”, mas o medo continuou até que mudou o modo de comunicar, aparou a barba e o guarda-fatos e começou a usar uma linguagem mais de estadista.
No nosso caso, “rigor e disciplina” são conceitos muitos fortes mas vazios, não são substantivos: necessitam de agregar outras acções, procedimentos, algo mais concreto para que possam ser substantivos e assumir um carácter mobilizador dos cidadãos. Se, por ser forte, apela à emoção (basta ver o dom inebriante que teve sobre os congressistas), a condição de conceito generalista requer acções concretas, exemplos, acções, coisas mensuráveis e tangíveis. Requer exemplos de rigor e de disciplina mas também exemplos do oposto; exige capacidade e autoridade moral de quem possa exercer rigor e disciplina sobre outrem e tais capacidades e autoridades não só das auto-reconhecidas mas, acima de tudo, reconhecidas e aceites por outrem. Não é o indivíduo que se vê como rigoroso e disciplinado, mas as suas acções que o demonstram e se terceiros o vêem como tal, então mais autoridade terá de exigir deles o mesmo rigor e disciplina que lhe reconhecem.
A cultura do rigor assenta na ideia de um A cultura do rigor assenta na ideia de um posicionamento colectivo, baseado no primado escrupuloso da lei (o que entre nós é mais do que raro) e no respeito de um conjunto de competências, procedimentos e práticas convencionadas, e aceites como correctas, pela sociedade. Sendo rigoroso teríamos todos de aprender a “cortar a direito”, a começar pelas entidades responsáveis por fazer cumprir as leis. O provedor de justiça foi impedido de fazer o seu trabalho e em bom rigor já alguém deveria ter posto o seu lugar à disposição; há queixas sobre a actuação de juízes e procuradores e nem o ministro da Justiça exige nem os respectivos conselhos superiores prestam esclarecimentos públicos sobre a suspeição da falta de rigor que impede que figuras tao importantes. Há claramente empresas públicas que não conseguem realizar o seu objecto social por incompetência mas nem os seus responsáveis são demitidos nem quem os mantém no lugar paga pelo erro de manter incompetentes nos cargos.
A cultura do rigor é irmã gémea da responsabilização e da prestação de contas. No nosso caso, não é possível falarmos do rigor e da disciplina se não tivermos a coragem de enfrentar esse “dragão de sete cabeças” que se chama corrupção endémica. Enquanto o slogan deixa entender um sprint final de um ano de luta pelo rigor e disciplina, temos vivido largos anos de uma demorada e roedora maratona de corrupção. A nossa corrupção, no seu nível mais “ruminante”, assenta na arte de criar dificuldades para vender facilidades.
Encontramos até uma máxima para conseguir que ele seja visto com a cara de preservação cultural e portanto por todo o lado, sabemos, aceitamos, convivemos com a ideia de que “o cabrito come onde está amarrado”.
Em qualquer posto de trabalho para onde nos dirijamos, seja privado ou público, há um funcionário disposto a provar-nos quão é difícil o seu trabalho, mas ao mesmo a oferecer-nos alternativas em seu proveito. Não há ninguém (do agente policial aos juízes, do Jogador de futebol ao árbitro, do jornalista ao político) que não se venda ou não se compre. Qual é o rigor e disciplina que sobrevive a isso sem duro e doloroso “corte a direito”? Em bom rigor, as instituições públicas e os actos públicos nem conseguem cumprir horários e começar a horas. Os dirigentes não conseguem atender as pessoas nem receber os munícipes nas horas marcadas. Em bom rigor, não temos uma cultura da participação, pelo contrário quando um cidadão reclama é corporativamente “marcado” e institucionalmente rejeitado.
Que cultura de rigor seremos capazes de aplicar? Em bom rigor, não temos cultura de avaliar as pessoas em função dos resultados e das competências. Fomentamos a cultura da ganância e do enriquecimento fácil, em vez da cultura de cooperação, da saudável ambição, da participação cidadã, do empreendedorismo e a cultura de inovação. Em bom rigor, alguns ministérios já deveriam ser extintos e alguns ministros, largamente conhecidos na sociedade pela sua apatia, já deveriam ser mandados de volta para casa. Em bom rigor, a política (em qualquer parte do mundo é assim e na nossa ainda mais) vive de susceptibilidades e conveniências mas falta-nos um código ético para separar negócios privados dos públicos, para não termos governantes-empresários. E é vítima dos compadrios e jogos de interesse e influências.
Nunca quisemos criar uma alta autoridade contra a corrupção e as regras de concorrência e contratação são muito frágeis. Que rigor?
Os grupos de interesse estão cada vez mais fortes, os compadrios estão cada vez entrecruzados e o safe-se quem puder é, entre, nós uma “lei” natural. O “cabrito come onde está amarrado”, e nós somos milhões de cabritos amarrados e famintos. “Contra milhões ninguém combate. “Quem tentar será vencido”, diz o outro slogan dos velhos tempos.