É um poder que não salva, não cura, não transforma. Mas é cultuado. Os militantes, empobrecidos e esquecidos, percorrem longas distâncias com pão seco embrulhado em pequenas embalagens, ou uma marmita com arroz frio sem acompanhante. Vão em peregrinação não a um templo religioso, mas a um comício partidário um ritual de exaltação ao líder máximo. A viagem é feita com sacrifício, como um ato de fé, uma penitência. E no destino, a recompensa não é o pão multiplicado, nem água transformada em vinho, mas palmas batidas em sincronia para um homem distante, que mal os enxerga.
Enquanto o militante canta, dança e grita palavras de ordem, o chefe está com os pés cruzados, envolto em luxo. As suas contas internas e externas estão abarrotadas de dólares, euros, kuanzas e libras, frutos de um sistema que esmaga quem aplaude e enriquece quem ordena. O líder, como um falso deus, observa de cima o espetáculo da sua própria adoração. Não há milagres a serem distribuídos, não há promessas cumpridas. Há apenas poder, culto e ilusão.
O militante retorna. Mais de 360 quilómetros depois de uma ida e volta, o cansaço é visível no corpo e na alma. Ao entrar em casa, encontra os filhos com a boca aberta, como filhotes famintos no ninho, esperando que o pai, esse herói de comício, traga algo para saciar a fome. Mas ele volta de mãos vazias. Nem pão multiplicado, nem esperança renovada. Apenas o peso de mais uma mentira engolida com a mesma fome com que os seus filhos o aguardam.
Esse retrato não é ficção. É cotidiano. Em muitos países africanos, os partidos transformaram-se em igrejas políticas, onde a figura do presidente é intocável, incensada, mitificada. A crítica é pecado. A dúvida é traição. E a fome... é apenas um detalhe inconveniente. O Estado, que deveria garantir políticas públicas para combater a miséria, investe milhões em festas partidárias, em campanhas pomposas, em viaturas blindadas e aviões privados. Enquanto isso, a maioria dos cidadãos não sabe o que vai comer amanhã.
O culto ao chefe não é apenas um problema político é um problema moral, ético e existencial. Ele sequestra a dignidade das pessoas. Impede o pensamento crítico. Condiciona a esperança. Falsifica o amor à pátria. Ser militante, em muitas dessas estruturas partidárias, não é lutar por um projeto coletivo de nação, mas submeter-se a uma hierarquia baseada na bajulação, na obediência cega e na recompensa futura que nunca chega.
A figura do “chefe absoluto” é incompatível com qualquer ideia séria de democracia. O chefe não é eleito é ungido. Não é questionado é venerado. E não é cobrado é aclamado. Os militantes tornam-se devotos. E os devotos tornam-se escravos da fome, da mentira e da esperança mutilada.
Essa realidade precisa ser desafiada. Não com violência, mas com consciência. Não com medo, mas com coragem. É preciso romper com a ideia de que o líder é um pai eterno e que o partido é a casa única. O cidadão deve compreender que sua dignidade não depende do olhar do chefe, mas da garantia dos seus direitos. É preciso reconstruir o tecido social com base em instituições fortes, líderes que prestem contas e políticas públicas que sirvam à maioria e não a uma elite que se alimenta da miséria popular.
Cada vez que um militante faminto deixa seus afazeres, abandona os filhos com fome e percorre centenas de quilómetros para enaltecer um chefe milionário, é a democracia que sangra. É a república que perde mais um pedaço. É o povo que confirma sua submissão a um poder que não o representa, que não o alimenta, que não o respeita.
É urgente repensar essa estrutura de poder. Presidentes devem ser servidores públicos e não deuses políticos. Militantes devem ser cidadãos conscientes e não adoradores incondicionais. A política deve servir à vida e não à idolatria. Porque quando o chefe se torna o centro de tudo, a pátria vira refém da sua vaidade. E o povo, prisioneiro da sua própria miséria.
Talvez um dia, quando os filhos desses militantes crescerem, não entenderão por que o pai saiu com fome, cantou e dançou para um homem rico, e voltou sem nada para lhes oferecer. Talvez se revoltem. Talvez construam outro caminho. Talvez, finalmente, deixem de ver presidentes como profetas e passem a exigir deles o que realmente importa: justiça, dignidade, pão e liberdade. Por Rafael Morais