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Sábado, 08 Novembro 2014 22:34

Onde se fala de fábricas privadas que produzem iogurte só para Fidel

A chamada de primeira página do DN de há exatamente duas semanas era "Fidel tem pequenas fábricas onde é feito o seu próprio iogurte". Remetia-se o leitor para uma entrevista nas interiores. Ali, o título da primeira era repetido com um acrescento: "e queijos". Temos, pois, que o obstinado e controverso líder da Revolução Cubana possui pequenas fábricas - não se informa quantas... - que lhe produzem em exclusivo os iogurtes e os queijos com que se banqueteia. Ele há cada excentricidade...

Tratava-se de uma entrevista - inserida numa série promocional de encontros com órgãos de informação - com Juan Reinaldo Sánchez, por ocasião do lançamento do seu livro A Face Oculta de Fidel Castro. Não sou especialista em Fidel Castro, mas traduzi dois livros sobre ele: Fidel e Che - Uma Amizade Revolucionária, de Simon Reid-Henry, que pode considerar-se "favorável" a Fidel e cujo objetivo é demonstrar que o líder cubano não "empurrou" Che Guevara para a aventura boliviana (Casa das Letras, 2009); e um "desfavorável", A Autobiografia de Fidel Castro, de Norberto Fuentes (Casa das Letras, 2011), um "resumo" de quase seiscentas páginas, feito pelo autor, do seu livro homónimo de 1104 páginas.

Diga-se que Norberto Fuentes foi braço--direito de Fidel ao longo de quase 40 anos e, quando se afastou, só não foi fuzilado por causa da intercessão de Gabriel García Marquéz. É um livro fustigador e, curiosamente, a capa exibe a mesma fotografia que a do livro de Juan Reinaldo Sánchez. Uma espécie de "boleia gráfica"...

Apesar de impiedoso, a Norberto Fuentes "escaparam" três "informações" que Sánchez revela: que Fidel era chefe do narcotráfico e que fuzilou o general Arnaldo Ochoa (acusado de se ter envolvido em negócios de narcotráfico em Angola), por razões que, afinal, terão sido mafiosas, próprias de um "padrinho" zangado; que Fidel tem milhões depositados no estrangeiro; e que tem "pequenas fábricas onde é feito o seu próprio iogurte e queijo"!!!

São afirmações que constam da entrevista e só responsabilizam quem as proferiu. Mas quem o entrevistou nem sequer quis saber mais de qualquer destas "informações", tão originais que ninguém até agora havia divulgado (à exceção da revista Forbes, que "deduziu" que Fidel deveria receber uma fatia dos lucros das empresas exportadoras cubanas...).

Também é curioso verificar que, no caso deste livro, as autoridades cubanas, sempre prontas a intervir contra aquilo que se publica a denegrir a liderança cubana, tenham primado por guardar, de Conrado, o prudente silêncio: embaraço ou desconsideração?

E sendo Fidel um "narcotraficante" e um sabotador da economia cubana em proveito próprio, que escolheu o DN para título de primeira e das interiores? Que Fidel tem fábricas a produzir o seu próprio iogurte e queijo. Fábricas! O homem deve tomar banho em iogurte e jogar basebol com queijos que são feitos só para ele!

Naturalmente, pedi esclarecimentos à Direção do DN sobre os critérios seguidos. Respondeu-me o diretor, André Macedo: "A escolha de um título é sempre - ou quase sempre - discutível. Nem sempre acertamos na tentativa de, por um lado, chamarmos a atenção dos leitores e, por outro, sermos fiéis ao conteúdo da notícia. Num jornal diário nem sempre é aplicado o tempo necessário a atingir os dois objetivos.

"Tantas vezes o jornalista passa o dia a escrever e só ao fim dedica alguns breves segundos a construir o título. Infelizmente, este erro ainda acontece demasiadas vezes. Noutras ocasiões, é o editor ou até o diretor que, apressadamente, mudam o título e deixam o jornalista desgostoso. Neste caso, isto não aconteceu.

"O título reflete o texto e é interessante porque, na verdade, significa mais do que diz, isto é, traduz a duplicidade de Fidel Castro - a vida pública e a vida privada. A peça é, aliás, sobre isso mesmo. Podíamos ter chamado para título outro assunto, sim, claro; mas isso não significa que esta escolha esteja errada.

"Não se trata sequer de nenhuma cedência populista. Embora com erros, se há rumo traçado é esse: fazer do DN um jornal de qualidade. E é isso que temos procurado fazer desde que aqui chegámos."

Respeito - e testemunho - as intenções de qualidade manifestadas pelo diretor do DN, mas há ainda um caminho a percorrer, sendo certo que um só erro pode ter o efeito do mito de Sísifo: obrigar a recomeçar.

Bill Kovach e Tom Rosenstiel, no seu notável livro, Os Elementos do Jornalismo (Porto Editora, 2004), afirmam que "a essência do jornalismo é a disciplina de verificação". Talvez não seja fácil fazer a verificação de uma afirmação produzida em entrevista. Mas se tal afirmação desafia os limites da credibilidade, pode fazer-se o que em gíria jornalística chamamos "repicar", isto é, insistir no assunto com perguntas de outros ângulos. Fábricas de iogurte para uma só pessoa? Quantas fábricas? Quanto produzem? E são propriedade de Fidel, tal como a famosa ilha de lazer, que se diz no texto que é privada. (Não será privativa? O Palácio de Belém é privado ou privativo do Presidente da República?)

Dizemos que a transcrição exata das palavras de um entrevistado é "vender o peixe ao preço a que se comprou". Mas nisto de entrevistas de promoção, a ideia de "vender o peixe" não é uma metáfora: é mesmo vontade de vender. Aqui, a disciplina de verificação consiste em estar preparado para perceber, pelo vermelho das guelras, se o que se compra é de qualidade ou não.

A entrevista deixou o leitor com mais perguntas do que respostas. Por isso, como entrevista, falhou.

E o título? "Tantas vezes o jornalista passa o dia a escrever", explica André Macedo, "e só ao fim dedica alguns breves segundos a construir o título". Posso garantir, a partir da minha própria experiência como jornalista, que nunca escrevi notícia, entrevista ou reportagem sem ter na cabeça o título. Aliás, quando um repórter chegava com a sua recolha, antes de se sentar para escrever, tinha de conquistar a atenção e o interesse do chefe, sempre muito atarefado, para que a sua peça tivesse relevo. Para isso, tinha de trazer bem pensado um bom título. Se agora se faz de modo inverso, só posso desejar boa sorte. Mas palpita-me que a coisa acaba com os burrinhos na água. Insisto: título é que vai iluminar o texto - é nele que se faz o maior investimento.

O que é dito em redes sociais sobre a credibilidade de Juan Reinaldo Sánchez não é muito abonatório. Isso não é certificado negativo, sabemos como funciona a propaganda e a contrapropaganda. Já é mais significativo não aparecer uma só voz que ponha as mãos no fogo por ele. Norberto Fuentes, que escreveu um livro tão corrosivo quanto gigantesco contra Fidel Castro, beneficiou da intervenção salvadora de Gabriel García Márquez, intransigentemente amigo de Fidel. Sánchez só tem em torno dele o silêncio e os megafones do reclamo comercial.

Há males que vêm por bem. Se chegou ao conhecimento de Juan Reinaldo Sánchez o título com que o DN mimoseou a sua entrevista, deve estar, por estas horas, a resmonear: "Não me levaram a sério..."

Por Oscar Mascarenhas

DN

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