Em vésperas das quintas eleições em Angola, José Gama mostra-se como um dos mais ‘inconformados’ profissionais da comunicação social perante os alegados atropelos da Comissão Nacional Eleitoral, sobretudo no que à contratação da multinacional espanhola INDRA diz respeito. Na conversa que manteve com o !STO É NOTÍCIA, o jornalista angolano radicado na África do Sul apresenta a sua visão sobre o histórico do processo eleitoral angolano, fruto das investigações que vem efectuando desde 2008. O inquinar das regras do sufrágio, os avanços e recuos do Estado democrático e direito em Angola e o papel da Casa Militar da Presidência da República no processo eleitoral de Agosto próximo são três dos tópicos importantes desta conversa mantida com recurso à rede social WhatsApp.
O Club-K tem vindo, sistematicamente, a publicar, sobretudo agora em vésperas do pleito eleitoral deste ano, uma série de denúncias consideradas graves, nomeadamente, sobre o papel da INDRA nas eleições angolanas, sobre o alegado envolvimento da Casa Militar no processo eleitoral, sobre o facto de os dados eleitorais não ficarem disponíveis para posteriores consultas, e etc. Tudo isso é o resultado de uma longa investigação ou estamos perante um país que pouco sabe ou conhece do seu próprio processo eleitoral?
A INDRA faz apenas o que o seu cliente pede. A Comissão Nacional Eleitoral (CNE) pede à INDRA o desenvolvimento de um software que permita a manipulação dos inputs e a INDRA faz. A CNE pede à INDRA para comprar boletins a uma entidade X, na quantidade Y, para depois os transportar para Angola e entregar à Casa Militar do Presidente da República, e a INDRA faz. A INDRA não questiona quais são as relações entre a entidade X e oficiais angolanos. Nem controla as quantidades exactas que a Casa Militar entrega à CNE, nem as quantidades que são colocadas nas assembleias de voto. Nem é este o seu trabalho. O seu papel é branquear as manobras envolvidas, utilizando seu nome. Quando a INDRA deixa Luanda, leva consigo o software, uma vez que são alugados e não comprados. Com isso, Angola não fica com os ficheiros informáticos das suas eleições. As partes ainda assinam um acordo de confidencialidade no qual a INDRA se compromete a manter sigilo de todos os dados por um prazo de cinco anos. Está tudo isso na cláusula vigésima nona do caderno de encargos da CNE. A CNE não publica os resultados comuna por comuna, mesa por mesa, assembleia por assembleia. Nunca foram publicados. Os resultados eleitorais que geralmente são anunciados nas eleições são processados no Centro Nacional de Escrutínio, que era controlado pelo general Kopelipa. Dois subordinados de Kopelipa, que são técnicos especializados em comunicações, engenharia electrónica e informática, é que dirigiam o processo de selecção, recrutamento e formação do pessoal que trabalhou neste centro de escrutínio, tal como nas acções de apuramento. Estamos a falar do general Rogério Saraiva Ferreira e do coronel Anacleto Garcia Neto. Isto pode ser comprovado no Ofício n.º 006/DOETI.CNE/10, de 14 de Junho de 2010. No passado dia 26 de Janeiro, este general Rogério Ferreira foi chamado e nomeado para o cargo de chefe do Centro de Gestão Electrónica da Casa Militar do Presidente da República. O seu regresso, a contratação da INDRA e a contratação do consórcio KPMP-LTI, ligado a homens do antigo chefe da Casa Militar — para transportar as urnas —, é merecedor de atenção do eventual envolvimento da Casa Militar no processo eleitoral.
Perante estas denúncias, não sente que existe um certo acobardar quer das forças partidárias, quer da sociedade civil, assim como de outras forças individuais do país, que pura e simplesmente não reagem a nada, pensando fazê-lo apenas quando os resultados eleitorais forem divulgados?
Pensamos que não. Todas estas engrenagens constam de um processo-crime que a UNITA apresentou em 2012 à Procuradoria-Geral da República. O documento é público. O recurso que foi presente ao Tribunal Supremo, em Abril de 2013, nunca teve resposta até hoje. Também a CNE nunca negou os factos que foram aludidos no documento. O governo também não. Notamos agora que se está a seguir o mesmo caminho. As irregularidades eleitorais não se cometem quando os resultados eleitorais são divulgados, cometem-se ao longo do processo. Para 2022, já começaram a ser cometidas desde a indicação do presidente da CNE, que tem processos no tribunal que andam propositadamente encalhados no Tribunal Constitucional (TC) há mais de um ano. Dois partidos políticos, UNITA e Bloco Democrático, têm feito denúncias. A bancada parlamentar da UNITA apresentou recentemente um requerimento ao presidente da Assembleia Nacional, para uma audição parlamentar à CNE e para criação de uma “Comissão eventual para o acompanhamento do Processo Eleitoral”; o que consideramos positivo, porque será uma oportunidade para a bancada parlamentar do MPLA mostrar que está alinhada com a declaração pública do senhor Presidente da República, que, pela primeira vez, manifesta o interesse do Estado em ter eleições transparentes, competitivas e com lisura. Se os deputados do MPLA rejeitam estas propostas é porque não estão comprometidos com o seu presidente.
As eleições, em muitos países, são sempre alvo de reiterados debates, porque, no fundo, o que se pretende é sempre um maior aprofundamento dos mecanismos de controlo e de transparência do processo em si. Por que acha que em Angola não se discute eleições?
Porque ainda não temos uma democracia em pleno funcionamento. Vejamos os seguintes exemplos: em finais no ano passado foi aprovado uma Lei Eleitoral, um documento que deveria ser discutido por todos, à semelhança de uma constituição, em que o povo como visado merecia participar e contribuir. A Lei Eleitoral foi apenas debatida pelos partidos políticos no Parlamento. Logo, temos uma Lei Eleitoral que não exprime o consenso nacional e a vontade popular.
Em Dezembro passado, a CNE produziu um caderno de encargos que prevê a participação de intervenientes não previstos na lei. Falo dos chamados supervisores logísticos, cujo pagamento será feito pela INDRA. Realizou um viciado concurso com cláusulas que bloqueiam ou limitam a concorrência, e sem possibilidades reais de participação do empresariado nacional. A própria CNE vem a público fazer insinuações confusas sobre o papel do serviço nacional da contratação pública, que, como todos sabemos, não tem competência para resolver disputas entre concorrentes. Só os tribunais têm essa competência. O presidente da Assembleia Nacional mostra resistência para agendar um debate sobre o assunto na ‘Casa das Leis’. A mídia estatal actua como se estivesse a prestar assessoria à INDRA, dando cobertura a figuras como o espanhol Eduardo Tejerina Gonzalez, que se apresenta como titular de um cargo inexistente nesta empresa. É a expressão mais sublime das cumplicidades existentes entre Luanda e a INDRA.
“O senhor Manico não está do lado da lei, nem do lado da transparência e da lisura eleitoral”
Em 2012, a CNE teve despesas eleitorais de USD 653 milhões para um total de 9.757.671 eleitores; em 2017, de USD 796 milhões de dólares para 9.317.294 eleitores. Estes valores despertam a cobiça. A bancada parlamentar do MPLA votou pela tomada de posse de Manuel Pereira da Silva ‘Manico’ para o cargo de presidente da CNE, mesmo sabendo que tinha pendentes junto do Tribunal, por não cumprir os padrões de probidade para assumir tal cargo. A bancada do MPLA sabe que houve uma auditoria comprometedora contra esta entidade com o número de referência N.º 37/GAI/CNE/2018. Reconhecem o histórico de vulnerabilidade para actos de corrupção do senhor Manico, mas mesmo assim o investiram. O MPLA não aceita ir a votos com uma CNE independente, onde ele não tenha assegurada a maioria dos votos deliberativos. O MPLA deve ser desafiado a aprovar agora a revisão da lei da CNE, com uma composição em que nenhum partido concorrente tenha maioria.
A recusa de debate sobre as irregularidades cometidas pela CNE leva a suspeitar que irão cobrar esta ajuda parlamentar ao senhor Manico nos negócios envolvendo a Comissão Nacional Eleitoral. A bancada parlamentar do MPLA dá inúmeros sinais de que não está comprometida com o Presidente João Lourenço quanto ao combate à corrupção. A evidência está no apoio que prestam ao senhor Manico, ao rejeitarem requerimentos para a discussão do pluralismo de informação em véspera de eleições. É uma bancada que foi imposta ao Presidente da República em 2017, que terá agora a grata oportunidade de reformá-la.
Com um presidente da Comissão Nacional Eleitoral contestado, com processo que está praticamente encalhado no Tribunal Supremo, depois de já ter estado no Constitucional; com uma CNE que voltou a apostar numa empresa como INDRA, que tem inúmeros casos associados à corrupção… tudo isso não seria razão bastante para que não se avançasse para as eleições sem que se limassem estas ‘arestas’?
Naturalmente. Mas, nesse caso, parece que a corrupção eleitoral é tolerada, se ela servir para manter o regime. Quando João Lourenço chegou ao poder, não tinha a proximidade do Poder Judicial. O poder estava nas mãos de uma outra ala do regime, adversa a si, e que procurou controlar o judiciário e a CNE, dentro da estratégia de outras iniciativas que visavam impedir o novo chefe de Estado de mexer nas altas chefias militares e de segurança. O antigo presidente do Supremo Rui Ferreira realizou um concurso para o cargo de presidente da CNE colocando o senhor Manico, e, ao mesmo tempo, colocou a esposa deste, Fátima Pereira da Silva, como juíza do Tribunal Constitucional sem concurso público e à revelia da alínea d) do Artigo 11.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho [Lei Orgânica do Tribunal Constitucional].
No final do ano passado, a CNE realizou reuniões com entidades estrangeiras que queriam saber mais sobre o concurso para a solução tecnológica e logística eleitoral. Nestas reuniões estavam presentes figuras alheias à CNE e que falavam pela CNE na presença do senhor Manico. Isto indica que o senhor Manico, apesar de ser o presidente formal da CNE, na prática, os seus poderes estão nas mãos de outros grupos. É importante saber agora se ele continua nas mãos dos vulgos ‘marimbondos’, que o colocaram na CNE, ou se está com uma outra ala do regime, familiarizada com a INDRA, ou nos dois lados. Mas, uma coisa é certa: o senhor Manico não está do lado da lei, nem do lado da transparência e da lisura eleitoral.
A própria INDRA precisa também de limpar a sua imagem. O executivo que em 2012 esteve ligado a actos de corrupção com Angola, Jesus Gil-Ortega Garcia, creio, terá sido afastado. Os dois executivos da INDRA que estiveram envolvidos na corrupção de 2017, Jerônimo Bucero Miguel e Federico Javier Viejo Acosta, já não apareceram nos holofotes desta vez. Recorreram até a uma nova entidade, a MINSAIT, com NIF diferente, registo diferente, endereço diferente, gestão diferente, segregada e responsabilidades igualmente segregadas. Em termos de executivos, escolheram não mais um executivo de renome, mas um simples procurador da INDRA, não da MINSAIT, para dar a cara pela INDRA. Em Luanda, a CNE anuncia a INDRA como vencedora, mas em Espanha é a empresa MINSAIT que está a fazer comunicados dizendo que foi ela a escolhida. A MINSAIT foi criada em 2016 ou 2019, logo, não reúne o requisito imposto pelo concurso de dez anos de experiência eleitoral. Temos aqui só neste processo concorrencial muitos elementos que deveriam ser avaliados e ponderados, porque impactam na transparência, na lisura do processo e na consequente confiança dos cidadãos.
“Desde que Angola organizou eleições em período de paz, os resultados nunca foram publicados. O que se tem feito é o anúncio dos resultados. Publicar e anunciar são coisas diferentes”
O José Gama conseguiria estabelecer um termo comparativo ou fazer um paralelo com o processo eleitoral sul-africano, por exemplo, que é um país onde está radicado e que é também liderado por um partido nacionalista como o ANC?
A Comissão Nacional Eleitoral Independente da África do Sul é verdadeiramente independente e os seus responsáveis nunca permitiram que poderes alheios a tomassem de assalto. Seria um grande escândalo institucional. Nas comemorações do dia 4 de Fevereiro, o chefe da Casa Militar da Presidência garantiu “eleições livres, justas e transparentes”. Nos termos da lei angolana, quem deve dar esta garantia é a CNE e não a Casa Militar. Na África do Sul, os resultados eleitorais são publicados nas assembleias de voto depois de concluídos os trabalhos de votação e também no website da comissão eleitoral, bairro por bairro. Se alguém quiser pesquisar os resultados que o ANC teve nas eleições de 1994, vai para a página da CNE e encontra todos os dados. Desde que Angola organizou eleições em período de paz, os resultados nunca foram publicados. O que se tem feito é o anúncio dos resultados. Publicar e anunciar são coisas diferentes. Anunciar é o que a senhora Júlia Ferreira fazia na televisão com as garrafas de água ao lado. Em 2017, a senhora anunciou resultados que os próprios comissários da CNE denunciaram desconhecer a sua proveniência, uma vez que as comissões provinciais não haviam se reunido para produzi-los.
Sente que as denúncias do Club-K ainda são recebidas com bastante indiferença, ou porque existe aqui uma preocupação individual das pessoas de não se envolverem em polémica, principalmente eleitorais, sob pena de virem a pagar, se calhar, com as próprias vidas?
Nós saímos da governação do Presidente Dos Santos para João Lourenço. A governação endureceu, as pessoas preferem inibir-se de exercer os seus direitos de cidadania. O presidente da CNE terá assinado já acordos para o futuro. Não conhecemos o conteúdo desses acordos, se dizem respeito à capacitação da CNE para realizar eleições sozinha, sem a INDRA, ou se dizem respeito à aquisição de assistência técnica permanente à INDRA. Algumas pessoas próximas ao poder dizem que, em caso de vitória eleitoral este ano, vão reivindicar direitos apenas em 2027, quando João Lourenço estiver há meses do fim do segundo mandato, sem poder concorrer ou ter meios do Estado para os castigar. Por enquanto, tomaram a liberdade de assistir a erros cometidos na administração do Estado. Sou de opinião que os quadros do MPLA não deveriam temer o seu líder, deveriam protegê-lo e ajudá-lo na implementação do Estado de direito e democrático. Etinete de La Boetie [filósofo e humanista francês] chamou atenção para isso há 459 anos, quando dizia que “pior do que negar a sua liberdade em servidão voluntária é rejeitar a sua própria vontade de ser livre”.
Nenhuma das afirmações/denúncias que fez até agora fê-lo de ânimo leve? Colocamos-lhe esta questão por causa de uma coisa muito comum que ocorre cá em Angola, que é termos as chamadas ‘milícias digitais’ numa permanente tarefa de desinformarem ou de passarem a ideia de que alguns portais são veículos transmissores de fake news e de inverdades…
É recorrente em véspera de eleições em Angola surgirem ‘milícias digitais’ para desinformar, para distrair as atenções das pessoas do nosso debate sobre transparência eleitoral. As pessoas foram educadas a pensar que exigir eleições livres e justas é sinónimo de pregar a guerra em Angola. O termo guerra vai se esgotando e agora surgiram terminologias mais sofisticadas como arruaças, instabilidade e por aí afora. Temos 50% da juventude no desemprego. Se estes forem às ruas reclamar, o próprio governo transporta a reivindicação da juventude para a UNITA e acusa o seu adversário de querer criar um quadro de ingovernabilidade para tomar o poder.
Várias vezes o Club-K fez menção ao envolvimento da Casa Militar da Presidência da República. Este ano, vimos o ministro de Estado e Chefe da Casa Militar exactamente a garantir a realização de eleições livres, justas, transparentes e abrangentes. Era esta a confirmação de que precisava para se sentir com a consciência tranquila em relação aos seus leitores ou há mais coisas que vão passando ao lado dos angolanos sem que estes se apercebam do que efectivamente está a ocorrer?
Nos termos da lei, a Comissão Nacional Eleitoral é um órgão independente, que organiza, executa, coordena e conduz os processos eleitorais. Cabe unicamente à CNE a garantia de eleições livres, justas, transparentes e não à Casa Militar do senhor Presidente da República. Há que compreender a cultura do senhor general Furtado, de estar habituado a ver a Casa Militar a auto-proclamar-se coordenadora do centro de escrutínio eleitoral em Angola. Daí ir ao comício e esquecer o que diz o artigo 107.º da Constituição quanto à independência da CNE em relação à administração directa e indirecta do Estado.
“Há um combate à corrupção no país, mas temos a CNE a ser usada para fins corruptos”
O que é que mais lhe deixa apreensivo em relação ao pleito eleitoral angolano?
Estamos nas quartas eleições em período de paz e até ao momento não se está a criar condições para capacitar a CNE, para que tenha autonomia tecnológica, para realizar eleições transparentes sem os espanhóis e sem a Casa Militar. Ao invés de alugarmos os softwares, deveríamos comprar e capacitar os quadros da comissão eleitoral. Segundo as nossas investigações profissionais, esta mesma INDRA vendeu à Colômbia o software por 27 milhões de dólares. Nós aqui pagamos à INDRA centenas de milhões de dólares, mas não ficamos com tecnologia nenhuma.
A Colômbia realizou eleições legislativas no dia 11 de Fevereiro deste ano e até então alugava o software de contagem à INDRA. A sociedade civil e os partidos contestaram para que o software passasse a ser propriedade exclusiva do Estado colombiano. As eleições foram adiadas e vão ter lugar no próximo dia 13 de Março. Todos os partidos concorrentes terão direito a receber ao mesmo tempo os resultados produzidos pelo software, terão os seus próprios auditores credenciados no centro de escrutínio e serão acompanhados por uma equipa técnica pertencente à missão de observadores internacionais. O que a INDRA está a ser obrigada na Colômbia, é o mesmo que os angolanos deveriam solicitar. Não basta, portanto, dizer que fazem em Angola o que a CNE lhes pedir, ainda que saibam não ser transparente e não reflectir as melhores práticas. A própria INDRA pode fazer propostas à CNE.
Na última denúncia que fez sobre a subcontratação de uma outra empresa pela INDRA, que deverá imprimir os boletins de votos, assim como adquirir o conjunto de material logístico, deixa formuladas algumas questões à CNE e à INDRA. As perguntas que levanta seriam desnecessárias se se estivesse diante de um processo eleitoral mais transparente e justo?
A INDRA é uma empresa que produz solução informática para várias indústrias como a militar, transporte, bancos, energia, etc. A CNE contrata-a para a aquisição do software e para o fornecimento do material eleitoral, como impressão de boletins de votos, caixas de plástico, cabines de cartão, esferográficas e etc., coisas que ela não produz. A CNE poderia contratar directamente esta terceira empresa, sem ter a INDRA como sua agente de compras. Angola tem, desde 2008, uma gráfica, a Damer, que foi projectada para ser uma das mais sofisticadas de África. Os boletins eleitorais podem ser impressos no país pela Damer. Como segunda opção, poderiam ser impressos na África do Sul, como faz a Zâmbia. Ficar-nos-ia muito mais económico, até em transporte. O recurso à INDRA deixa claro que é para fins de negociatas. Há um combate à corrupção no país, mas temos a CNE a ser usada para fins corruptos. Se o que dizemos estiver errado, que a CNE divulgue então os conteúdos dos contratos que assina com a INDRA, como fazem as suas congéneres em África e no mundo, e também como estabelece a legislação angolana sobre o direito dos cidadãos à informação sobre os actos administrativos dos entes públicos, em particular o Artigo 11.º da Lei de Acesso aos Documentos Administrativos.
A nível da região da SADC, Angola é o país que tem o processo eleitoral mais complexo ou cada processo eleitoral em África, no geral, e na região da SADC, em particular, é um processo complexo em si mesmo?
Angola é governada por uma única cultura, um único partido, o mesmo que chegou ao poder, em 1975, por meios violentos, expulsando os outros parceiros com quem deveriam juntos proclamar a Independência nacional e realizar eleições. Abraçou a democracia não por vontade própria, em 1991, e passados 31 anos ainda resiste à democracia. São vários anos de cultura de partido único em que o MPLA controla tudo, o Estado, a economia e a sociedade. Controla a imprensa, os tribunais, a polícia. Quando há eleições transporta este hábito para o pleito, daí que os nossos processos eleitorais se tornam aparentemente complexos. É a luta entre a absolutismo e a democracia.
Nos sistemas de partido único, as eleições são encaradas como um assunto de segurança, de defesa de Estado, à semelhança do que sucedeu com as eleições presidenciais portuguesas de 1953, em que o general Humberto Delgado desafiou o regime de Salazar indo a votos, e acabou sendo perseguido até à exaustão, resultando na sua execução. Quando estamos em véspera de eleições, o MPLA cria um clima superficial de tensão, amedrontando a população. Em 2008 dizia que a UNITA iria retornar à guerra; em 2012 a segurança ameaçou a juventude contestatária, executando dois activistas — Alves Kamulingue e Isaías Cassule. Em 2017, foi mais tranquilo porque o país estava celebrando o fim de quase quatro décadas de Eduardo dos Santos. Foram eleições de festa sem motivação para amedrontar as pessoas. Para este ano, já vimos o general Furtado ir celebrar o aniversário das FAA e, em pleno quartel, insinuar instabilidade. O MPLA insinua a tal instabilidade que atribui aos seus adversários, depois apresenta-se como partido da paz, e a CNE junta-se à disputa, adoptando slogans. Para quê? Nenhuma outra comissão eleitoral no mundo, que eu conheça, adopta slogans para as eleições, sugerindo as pessoas a votarem “na paz” ou naquilo que a propaganda do governo quer insinuar. Em 2017, o slogan foi “Vote pela paz e pela democracia”, e o que acaba de ser aprovado é “pela paz, democracia e desenvolvimento”. Esta é a complexidade dos nossos processos eleitorais.
“Um dos requisitos para avaliar um processo eleitoral justo é a conduta da mídia. Estamos a cinco meses das eleições e a mídia já se transformou, dando tratamento desigual aos opositores do partido no poder”
Ouvimo-lo a citar muitas vezes o caso das eleições zambianas, em que se teria evitado um clima de repressão e de fraude eleitoral, caso não tivesse havido um pronunciamento dos EUA em relação à transparência do processo. Consegue estabelecer uma ponte com Angola? O caso Zâmbia seria também aplicável a Angola? Teriam os Estados Unidos de América a mesma força que tiveram na Zâmbia nas eleições angolanas?
Desde que chegou ao poder, a Administração Biden declarou que a democracia no mundo não pode ser derrotada pela autocracia. A comunidade internacional passou a igualar as fraudes eleitores aos golpes de Estado e, com isso, tem procurado desencorajar todas as iniciativas de subversão da vontade popular, aplicando sanções contra os elementos que estejam a perturbar os processos eleitorais. Nas eleições de 2016, na Zâmbia, a luta eleitoral esteve indefinida e o Presidente Edgar Lungu provocou desequilíbrios, saindo vencedor com 50,35%. Nas eleições de 2021, estava a pôr as tropas na rua, a prender opositores, a tentar intimidar e a querer manobrar o processo. Três dias antes do acto de votação, os EUA ameaçam com sanções que, de certa forma, o desmobilizam. No ano passado, sancionaram dirigentes do Uganda, da Nicarágua, e este mês foi a vez da Somália.
Os EUA estão a dar muitos sinais de querer acompanhar as eleições angolanas milimetricamente. Nas eleições de 2017, o Departamento de Estado fez advertências, realçando a marginalização da mídia estatal para com os partidos na oposição. Um dos requisitos para avaliar um processo eleitoral justo é a conduta da mídia. Estamos a cinco meses das eleições e a mídia já se transformou, dando tratamento desigual aos opositores do partido no poder. A bancada parlamentar do MPLA rejeitou votar pelo requerimento da oposição, para que se debatesse este tema, o que quer dizer que não há interesse em termos uma mídia imparcial nas eleições. Há muitos sinais a merecerem a consideração dos EUA. Neste caso, as sanções seriam ou serão aplicadas ao presidente e comissários da CNE, ao responsável do Ministério da Administração do Território, da comunicação social, presidente do Tribunal Constitucional, responsáveis da Polícia Nacional e quaisquer outros agentes eleitorais que forem implicados em actos de corrupção eleitoral, que equivalem a actos de violação do direito de sufrágio, portanto, dos direitos humanos. No fundo, são medidas que servem para fazer correcção de alguma conduta de altos dirigentes que participam nos processos eleitorais.
Os partidos, a sociedade civil e outros actores apontam para a presença de observadores internacionais como uma forma de inibir qualquer tentativa de fraude eleitoral. Se já existe um clima de suspeição a partir da empresa que irá fornecer as soluções informáticas e apoio logístico, fará algum sentido esperar que os observadores façam algum ‘milagre’? Se houver fraude, o processo seria sempre anterior, tal como disse mais atrás, não?
O governo tem rejeitado a presença da União Europeia (EU) e de outros observadores, que têm a reputação de produzir relatórios mais analíticos e independentes, como aquele que a UE elaborou em 2008. Devemos lembrar ainda que existe o acto eleitoral que ocorre num dia e há o processo eleitoral que é a fase em que estamos. As fraudes não acontecem no dia da votação, mas no processo em si. Os observadores deveriam ter mais tempo para poderem fiscalizar o que se passou na fase dos preparativos e dos processos. Os observadores internacionais não analisam nem se pronunciam sobre casos como este da INDRA que estamos a viver, se o concurso foi feito como manda a lei.
“O Presidente João Lourenço decidiu ir a eleições com uma CNE que o seu partido controla e com uma lei pior do que aquela que governou as eleições anteriores”
João Lourenço mudou parcialmente as regras do jogo eleitoral a um ano da sua realização. Este é um indicador de alguma insegurança por parte do actual Presidente da República? Teria existido, nesta iniciativa legislativa, uma tentativa de tornar o processo numa espécie de “encontro de cartas marcadas”?
Em 2017, o Presidente João Lourenço estava com popularidade em alta e foi anunciado como tendo 61% dos resultados das eleições. Nos últimos dois anos perdeu esta popularidade pelas razões que todos conhecemos. Fica-lhe difícil apresentar-se com resultados superiores ao das eleições passadas. A solução encontrada é afastar o adversário que lhe tem usurpado a popularidade, que é Adalberto Costa Júnior, líder da UNITA. Depois de a UNITA ter refeito o seu congresso, em Dezembro de 2021, vimos o Presidente a promulgar o pacote da Lei Eleitoral sem as alterações que, segundo as suas próprias palavras, garantiriam “maior igualdade entre os concorrentes, sã concorrência, transparência, lisura e verdade eleitoral”. Pelo menos, em questões estruturantes: como recursos a utilizar nas campanhas eleitorais, tratamento dos partidos pela comunicação social e apuramento municipal e provincial dos resultados eleitorais. O Presidente João Lourenço decidiu ir a eleições com uma CNE que o seu partido controla e com uma lei pior do que aquela que governou as eleições anteriores, na medida em que elimina os mecanismos e procedimentos de prevenção e controlo da fraude, que fora provada em 2012 e em 2017 pelos próprios comissários eleitorais.
Portanto, o Presidente João Lourenço vai a eleições com uma comunicação social que irá sufocar os seus adversários políticos, com uma CNE que começou a defraudar o processo, com um Tribunal Constitucional liderado por um membro suspenso do Bureau Político do MPLA e que a qualquer momento pode voltar a afastar Adalberto Júnior da chefia da UNITA, caso o regime sinta que este continua a constituir ameaças eleitorais. Teremos uma disputa desigual, com concorrência desleal, em que o candidato de um partido, o MPLA, vai concorrer com o apoio da máquina e dos recursos do Estado. Se a Casa Militar mantiver o controlo do processo, com o apoio da INDRA, como no passado, teremos o candidato João Manuel Gonçalves Lourenço a ser declarado vencedor com os resultados que ele próprio escolher.
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