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Sábado, 26 Junho 2021 13:48

Gatunicílis angolense, ou o surto ladrúnculo de Angola (I)

"...Os cem mil contos, Abrigada!  ... Os cem mil contos, Abrigada!..."  Declamada, desta forma, ficava historicamente exteriorizada a indignação do que  havia sido considerado um roubo.

Estava-se em 1975, e em Angola, procedia-se com ansiedades afanosas e numa turbulência sem precedentes aos preparativos para a sua independência.

O primeiro sério resultado foi, o Governo de Transição, como a réplica de um Governo de Angola, que ensairia a gestão da nova nação, até a realização das Eleições-Gerais, que como se sabe, não chegou a acontecer.

Os membros que o compunham, estavam repartidos pelos representantes de Portugal e dos Movimentos de Libertação. Dentre os membros, Samuel Abrigada, era o nome indicado pela FNLA, como Ministro da Saúde.

Foi a esta figura que ficou imputada a responsabilidade, de ter sido desviada um fundo de 100 mil contos (expressão monetária lusa, da época) equivalente à 100.000.000 escudos. Ou seja, 100 milhões de escudos!

Deste acontecimento, derivou, como era de esperar, reações e situações variadas: Para além de toda a sorte de especulações sobre o desaparecimento desses 100 milhões de escudos, emergiram efeitos pertinentes, depois de levantados, do então denominado, Banco de Angola.  

Destes efeitos, dois deles, tiveram atenção particular de toda a sociedade dessa época: 

- a primeira, foi do enunciado apresentado através da TPA, a Televisão angolana, feito por Saydi Mingas, o então signatário das Finanças, que explanava sucintamente o que poderia ser feito com aquele dinheiro, para beneficio do povo e do país;

- a segunda, foram as jocosas exaltações, que se criaram por causa disso - *Versos trocistas e uma canção cantada em português e kimbundo, donde musicalmente era teatralizada o desvio. E assim, até as crianças que nada entendiam do que acontecia, cantavam:

"...Nós te vimos, nós te vimos, nós te vimos...Nós te vimos, quando você estava a roubar!..."

Claro, que este refrão, era apenas o fruto, da inevitável tendência do povo, de satirizar um acontecimento politico. Porque na verdade, a realidade dos factos dessa ocorrência, permaneceu desde então, envolto em mistérios ou explicações confusas.

O próprio indivíduo em causa, social e politicamente (apenas), considerado culpado desta façanha, explicava-me lacônicamente em 2005, em Zurique (Suiça), enquanto conversávamos, desta forma: "... Pintaram-me, com essa história dos 100 mil contos! Eu apenas tive a responsabilidade, de autorizar o estanciamento desses fundos destinados a refugiados!...

De resto, Samuel Abrigada, tinha, na altura das alegações do desvio, explicado publicamente, sobre o que realmente aconteceu e fechava com a exclamação, que irónicamente a canção também conservou:

“...Não roubei, nem preciso de cem mil contos!...”

Ou seja, Samuel Abrigada, o angolano de Malange, que saíra para a Europa em meados de 50, teve o infeliz destino, de carregar involuntariamente a culpa do roubo dos “Cem mil contos”.

Em triste simbologia, este ficou como o primeiro furto expressivo na História da Angola independente. Pois que o momento estava circunscrito a fase de Independência.

No complexo intreccio, político em que se encontrava Angola, e sobretudo na finas e emaranhadas teias, produzidas pela atuação dos confrades que se haviam proposto para a sua libertação - FNLA, UNITA e MPLA. Este último com uma expressão notadamente eloquente viria a ser o autor dos destinos da Angola africana, guinando o trem do percurso do chamado Governo de Transição com manobras sagazes e  rocambolescas até, para trilhos descarrilados da sua rota inicial.

As posturas musculadas, exibidas pelas forças da FNLA, que com o pecado da aliança com  Mobutu, impulsionou o epípeto de “Lacaios do Imperialismo”, à soldo dos americanos”, serviram de mola, para que a organização dirigida por Agostinho Neto, justificando-se no espírito de único e legítimo defensor do Povo angolano, procedesse a uma cruzada de demonização dos irmãos da antiga UPA. E como, em política, o fim justificam os meios, (não importanto a perversidade delas), todas as acções foram válidas:

Desde a horripilante exibição de frigoríficos que conservavam, órgãos humanos, retirados de cadáveres, vítimas dos confrontos armados, entre as forças do MPLA e da FNLA, atribuindo-se a estes últimos a responsabilidade, por alegadas práticas canibais; à retórica ideológica e política sustentada com profundas incrustações de caráter social e até cultural no seio do povo.

Os exercícios de defesa da inocência ou de reclamação de dignidade por parte dos visados, face ao ímpeto exercido pelo MPLA, estiveram condenados a ficarem sem qualquer efeito.

Daí que no rol do endosso à organização de Holden Roberto, como o bode-espiatório de turno, se podia adiccionar mais uma: “O roubo dos 100 mil contos”!

Deste modo foi configurado um culpado - Samuel Abrigada. As suas alegações de inocência, foram convenientemente reduzidas à total indiferença. Porém, nunca se soube realmente, o fim desses 100 milhões de escudos, (moeda portuguesa usada em Angola). 

Entretanto no destino de Angola, ironicamente, parecia ficar assim inaugurado, um surto que se alastraria ao longo da sua existência.  Como todos os surtos complexos que infligem à terra ou os humanos, acabam tendo denominações cientifizadas de pronúncia estranha, eu ousei irremediavelmente rotular esse como:

“Gatunicílis Angolense, ou Surto ladrúnculo de Angola”!

Por Mário da Assunção

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