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Quinta, 03 Junho 2021 10:42

As boinas, o pensamento mágico e a falta de projecto e agenda no activismo angolano

Nos últimos meses, emergiu em Angola uma espécie de febre cívica traduzida no uso de boinas vermelhas e verdes. Nas poses fotográficas rapazes e raparigas apresentam-se de punho cerrado erguido, exibindo uma mensagem anímica de luta, sim, de combate.

A maior parte dos jovens aderentes às boinas tem como fontes de inspiração as figuras de Robert Kyagulanyi Ssentamu (1982-), Julius Sello Malema (1981), Jonas Savimbi (1934-2002), Fred Hampton (1948-1969), Huey Percy Newton (1942-1989) e outros.

Entretanto, é preciso questionar: para além do adereço das boinas, camisas, camisolas, camisetas e do punho cerrado, que propostas de solução aos problemas de Angola os jovens activistas oferecem?

Uma análise fria, objectiva e rigorosa ao problema ínsito na questão acima formulada leva a inferências reveladoras. Neste sentido, usaremos três eixos analíticos.

I - A QUESTÃO DO ACTIVISMO SEM PROJECTO NEM AGENDA: o activismo (de activo [acção] + ismo [sistema, regime) é – à luz da Filosofia Política – uma doutrina ou argumentação que privilegia a prática da transformação da realidade em detrimento da actividade exclusivamente especulativa na esfera pública. Isto significa que um activista é um agente de transformação da realidade, uma agente de mudança través da acção. É a acção inteligente, sistemática, coerente e consequente que faz de alguém um activista. Deveras, o activista rege-se por uma causa, possui um objecto de intervenção, uma visão de luta, proposta solucional, uma missão definida, uma ética própria, quadro de funções, objectivos a atingir com a luta, ferramentas para fazer a luta, bem como uma metodologia.

Um dos graves problemas do activismo em Angola reside no facto de que a maior parte dos seus actores não faz activismo com projecto nem agenda, incluindo os activistas de boina. Se forem questionados sobre qual a causa da sua luta, qual a sua área ou especialidade de intervenção, que visão têm de Angola à luz da causa e dos objectivos de luta que têm, que projectos e actividades têm em carteira e realizam para o alcance dos objectivos pelos quais lutam, que ferramentas e métodos usam para a realização dos projectos e actividades, que valores e princípios norteiam a sua luta, terão sérias dificuldades de responder.

Basicamente, na maioria dos casos, por trás do nome e da boina não há projecto nem agenda.

Tal facto não é difícil de compreender, porquanto sua etiologia advém de um problema que é quase ontológico em Angola: a luta pela independência foi feita sem projecto. O partido que tomou o poder tem estado a governar sem projecto, de tal sorte que, na verdade, o Estado é uma realidade, mas a independência (económica, científica, tecnológica, cultural etc.) é uma ficção. No ínterim, tal como os partidos políticos têm feito oposição sem projecto (salvaguarda rara excepção), o activismo angolano também padece do vício da falta de projecto e de agenda.

No caso concreto dos jovens de boina, salvaguardadas as devidas excepções, existe apenas um denso espectro de romantismo, como abordarei adiante neste texto.  Trata-se, pois, de uma séria contradição, como demonstrarei a seguir.

II - A QUESTÃO DAS FONTES DE INSPIRAÇÃO: figuras como Robert Kyagulanyi Ssentamu, Julius Sello Malema, Jonas Savimbi, Fred Hampton e Huey Percy Newton são as fontes de inspiração dos jovens de boina. Será que eles, os jovens de boina, realmente fazem jus às suas fontes de inspiração? Vejamos.

1 - Robert Kyagulanyi Ssentamu: mais conhecido por Bobi Wine, este jovem político, cantor, actor, empresário e filantropo ugandês começou o seu percurso de luta como activista. Depois de anos no activismo e outras ocupações, entrou para a política. Usando uma abordagem inovadora de campanha, a Plataforma de Unidade Nacional, concorreu às eleições legislativas em 2017, e foi eleito deputado. No ano em curso, 2021, liderando a Plataforma de Unidade Nacional, concorreu às eleições presidenciais, tendo sido o segundo candidato mais votado, senão mesmo o mais votado;

2 - Julius Sello Malema: membro do parlamento sul-africano e líder do Partido dos Combatentes da Liberdade Económica, (partido político sul-africano da extrema-esquerda, que ele fundou em julho de 2013), começou o seu percurso político de forma precoce, aos 9 anos de idade, em 1990. Foi Presidente da Juventude do Congresso Nacional Africano entre 2008 e 2012.

3 - Jonas Savimbi: depois de uma breve passagem pelo MPLA, ingressou na FNLA, onde exerceu diversas responsabilidades, tendo chegado ao elevado cargo de ministro das relações exteriores do GRAE (Governo Revolucionário de Angola no Exílio). Em 1966 fundou a UNITA, com a qual prosseguiu os seus esforços de luta pela independência de Angola e, posteriormente, para a abertura democrática. 

4 - Fred Hampton: foi um activista e revolucionário afro-americano marxista-leninista, presidente da filial de Illinois do Partido dos Panteras Negras (PPN) e vice-presidente do PPN nacional. Após sua graduação em direito no Triton Junior College, Fred Hampton passou a se familiarizar com o sistema legal americano e usá-lo como defesa contra a polícia. Mais tarde, quando ele e seus colegas Panteras Negras seguiram a polícia no seu programa de supervisão comunitária, atentos à brutalidade policial, usaram seu conhecimento da lei como defesa. Com o tempo assumiu as responsabilidades acima descritas.

5 - Heuy Percy Newton: foi um revolucionário norte-americano, co-fundador, líder e inspirador dos Panteras Negras, uma organização política negra voltada para a luta pela igualdade racial nos Estados Unidos, fundada em 1966 na Califórnia. Ainda estudante, Newton envolveu-se com a política, filiando-se à Organização Afro-Americana e foi uma figura-chave na introdução do primeiro curso de história afro-americana no currículo do Merritt College, onde estudava. Inspirado em Malcolm X e outros pensadores de esquerda, Huey juntou-se ao colega Bobby Seale em outubro de 1966, para fundar o Partido Pantera Negra para Autodefesa, no qual ele assumiu as funções de ministro da defesa, enquanto Seale era o presidente.

As figuras acima têm diversas características comuns, tais como estas: (i) conhecimento profundo da sua causa, do seu foco de luta, valores e princípios de luta, dos seus objectivos, métodos e instrumentos de luta etc.; (ii) projectos insertos numa agenda de mudança à luz dos objectivos da sua causa. Bobi Wine lidera a Plataforma de Unidade Nacional. Julius Malema fundou o Partido dos Combatentes da Liberdade Económica. Jonas Savimbi fundou a UNITA. Fred Hampton aderiu ao Partido dos Panteras Negras, e Huey Newton fundou, com Bobby Seale, o Partido dos Panteras Negras; (iii) viabilidade política, económica e social das organizações que fundaram, tornada possível mediante um mecanismo de sustentabilidade de captação de recursos de diversas fontes estratégicas; (iv) impacto e legado reais das suas acções, actividades e projectos a nível da sociedade.

III. A QUESTÃO DO PENSAMENTO MÁGICO E DO ROMANTISMO: basicamente, na Antropologia e Psicologia, o pensamento mágico é o processo mental em que a pessoa considera que as suas projecções mentais em si mesmo podem alterar a realidade ou, ainda, que sua actividade mental, aliada a fenómenos sobrenaturais, pode produzir transformações, ou seja, mudar a realidade.

Um facto que caracteriza grande parte dos jovens activistas em geral, e dos activistas de boina, em particular, é o discurso que, mesmo sem o perceberem, sugere que frases de ordem e slogans são de tal maneira importantes, que substituem, total ou parcialmente, a acção, a qual é o paradigma do activismo. O rótulo (imagem e discurso) passou a ser mais importante que o conteúdo (projecto e agenda).

Na verdade, o pensamento mágico tem também presença na concepção de imagem que os jovens têm de si mesmos e do país.

Não basta a um activista afirmar que sua fonte de inspiração reside em fulano, sicrano ou beltrano. Deve ter a coragem de analisar a si mesmo a fim de se certificar que não passa de um mero sonhador.

As gerações que lutaram pela independência e na guerra civil cumpriram com o seu papel dentro do que quiseram ou lhes foi possível.

Se os activistas actuais – sobretudo os que pretendem servir Angola numa posição elevada – continuarem a reproduzir o modelo errático da luta sem projecto nem agenda, estarão a contribuir para Angola continuar atolada no pântano da estagnação em cujas lamas chafurda desde à sua fundação como Estado.

Ao pensamento mágico agrega-se o romantismo. De tal sorte que, como já constatei, na sua maioria, os jovens de boina até têm uma noção, ainda que muito elementar, do que é activismo com projecto e agenda, mas deixam-se arrastar pelo charme das poses chiques, pelo fascínio das frases de ordem e slogans, pela projecção de esperanças ignorando a realidade e o nível de esforço necessário para concretizar sonhos.

Trajar-se de boinas, camisas, camisolas e camisetas, botas, bem como posar alegremente sem ter projecto nem agenda não faz de ninguém um activista com futuro.

O activista com projecto e agenda não segue bala alheia. Antes, pelo contrário, tem a sua metralhadora, os cartuchos cheios e dá os tiros segundo o que quer, onde quer, como quer e quando quer.

Faz-se mister lembrar que as figuras citadas no presente texto podiam ser meros figurantes no filme da sua existência. Mas não foi isto o que fizeram. Antes pelo contrário, Bobi Wine, Julius Malema, Jonas Savimbi, Fred Hampton e Huey Newton, fizeram um percurso marcado por projecto e agenda. Foram/são actores, não figurantes. Sim, responderam aos desafios que enfrentaram com projecto e agenda de luta.

Por Nuno Álvaro Dala

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