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Sábado, 30 Março 2019 09:31

Adolfo Maria: " Herança recebida por João Lourenço é muito pesada"

Adolfo Maria lançou, quarta-feira, em Lisboa, o livro “Angola - A Hora da Mudança”, ensaio que inclui, de maneira profunda e sem tabus, textos de carácter sociopolítico, histórico e cultural sobre África e Angola. Em entrevista exclusiva ao Jornal de Angola, o autor refere a principal motivação que o levou a escrever o livro, que foi apresentado pelo economista guineense Eduardo Fernandes, parceiro de Adolfo Maria no programa “De-bate Africano”, da RDP e RTP África, em Portugal.

Qual foi a principal motivação para escrever “Angola - A Hora da Mudança”?

O livro é uma compilação de textos que tenho produzido nos últimos três ou quatro anos, na sequência de outros que deram origem a um anterior, “Angola - Contributos à Reflexão”, abrangendo várias áreas, da política, económica, social, do Estado, democracia, passando pela cidadania. Este novo livro tem como título “Angola - A Hora da Mudança”, porque uma parte substancial dos escritos diz respeito a análises sobre aspectos políticos e governativos dos últimos anos em que José Eduardo dos Santos exerceu o poder e também sobre a governação do novo Presidente, João Lourenço. Outra razão é o actual e crucial momento do país que convoca os cidadãos a agirem.

A motivação maior para eu publicar este livro foi a que sempre me moveu na vida: contribuir para a liberdade e o progresso do povo angolano. Penso que “Angola-Hora de Mudança” será útil para a análise do que se está a passar e para a discussão sobre rumos necessários para o país.

Em função das mudanças que ocorrem em Angola, e sendo alguém que acompanha, viveu e vive, todas as mutações e sintomas da política do país, o quê que os angolanos e o mundo poderão vislumbrar e confiar com a governação do Presidente João Lourenço?

A nova presidência adoptou uma postura inteiramente diferente da anterior: declarado combate à corrupção, abertura à sociedade civil e apelo à colaboração na resolução dos problemas nacionais, reabilitação de várias personalidades da nossa luta pela Independência que es-tavam, injustamente, proscritas, intenções de reformas do Estado e de transparência governativa e promessas de democratização do país.

Contudo, a herança é muito pesada: situação económica e financeira dificílima, sectores sociais, como Educação e Saúde, num estado calamitoso, enorme parte da população em situação de pobreza; generalizada corrupção; apropriação dos fundos públicos; falta de confiança internacional na governação angolana e so-ciedade civil amorfa, desanimada.

Várias medidas foram enunciadas pelo novo Presidente da República para resolver estes imensos problemas e, em ano e meio de governação, algumas estão em curso. Mas tardam a aparecer me-lhorias significativas porque não se consegue realizar em curto tempo o diagnóstico, a tomada de medidas, a im-plementação e a obtenção de resultados. Acresce ainda que o Presidente encontra resistência à mudança em certos sectores da elite atingidos e no seu próprio partido. Por outro lado, embora haja uma grande expectativa favorável à actual liderança do país, também existem muitas desconfianças porque o novo Presidente emergiu de um partido e de um sistema tido como causa dos problemas que Angola enfrenta.

Pela minha parte, considero que a postura do actual Presidente e a sua actuação criaram uma dinâmica inteiramente nova que pode levar às necessárias mudanças de que Angola tanto necessita. Saibam os diversos sectores da sociedade civil agir para que as mudanças se concretizem porque este é o momento para a mudança.

Acredita que há, em Angola, separação dos poderes Executivo, Legislativo e Judicial? O seu livro aborda essa questão? Com que olhar...?

Não acredito. A efectiva separação destes três poderes só poderá existir quando a Constituição for revista. Neste livro digo isso mesmo, a propósito de várias situações ocorridas ou na perspectiva da plena democratização do país.

Que sugestões propõe à imprensa pública e privada nesta época de João Lourenço?

Creio que a comunicação social angolana, em geral, está a desempenhar o papel informativo e escrutinador da acção governativa e ainda formativo, por meio de artigos de opinião de algumas personalidades do meio jornalístico e da sociedade civil. No passado recente, isto só existia em alguma imprensa privada, mas hoje a comunicação social estatal acompanha esse movimento geral, o que é uma mudança significativa.

O que espera da actual governação? O que sonha...?

Uma coisa é o que sonho ou sempre sonhei, outra é o que espero, pois se o sonho comanda a vida e nos faz agir, a verdade é que a realidade pode ser bem diferente do que se sonhou. Sou bastante realista. Para isso contribuíram a idade e a experiência política. Por isso, vejo sinais encorajadores para que a mudança se realize, embora sejam muitos os condicionamentos, como expliquei em resposta anterior. Da actual governação espero que avance mais rapidamente para medidas estruturais quanto à democratização do País, que inclui a revisão da Constituição, implantação do poder autárquico, diversificação da economia, reforma do Estado, saúde e ensino, criação de emprego, combate à pobreza. E que se avance prontamente para resolver as gritantes carências sociais que afectam o quotidiano dos cidadãos. As expectativas criadas são grandes e este é o momento crucial para agir.

Os últimos anos do exercício do poder de José Eduardo dos Santos mancham todo o seu percurso e o slogan “Arquitecto da paz” ou carece de uma profunda releitura sociopolítica?

Quero recordar que Angola começou a vida de Estado independente, através de uma ditadura implacável implantada pelo partido que está no poder, o MPLA. E lo-go aí apareceram os germes da corrupção através da apropriação de fundos estatais por indivíduos do aparelho do Estado ou do partido único. O regime tornou-se multipartidário em 1991, fruto da contestação armada conduzida pela UNITA e da pressão externa que obrigaram aos acordos de Bicesse. A partir daí e do recomeço da guerra civil, acelerou-se a concentração da riqueza num punhado de membros da elite dirigente, extorquindo o Estado.

Processo que foi continuando até Angola chegar à insustentável situação económica e financeira nos últimos anos do exercício do poder de José Eduardo dos Santos. Acresce que a afirmação do seu poder pessoal deu origem à Constituição de 2010 que limita o exercício da democracia. A exacerbação do culto de personalidade, aliado à bajulação das gentes da nomenclatura e não só!, facilitaram o autismo do ex-Presidente face à situação real do país. Neste quadro de bajulação geral surgiram todos os epítetos grandiosos à sua figura, entre eles o de “arquitecto da paz”. No entanto, creio que um acto político muito positivo do antigo Presidente foi a maneira como conduziu o processo de integração da UNITA na vida nacional, após a morte de Savimbi, no sentido de uma reconciliação dos espíritos. A preocupação em reconstruir as infra-estruturas do país foi também muito positiva, mas o capital político, que ele granjeou em 2002, veio a desperdiçá-lo anos depois, agindo como referi.

Em 1959, foi preso pela PIDE, em 1969, foi apresentador do programa radiofónico Angola Combatente. Em 1979, foi expulso de Angola, em 2019, lança “Angola-A Hora da Mudança”. Acredita em numerologia, sendo o nú-mero 9 uma constante em episódios marcantes do seu percurso político?

Vejo que se informou bem sobre o meu percurso de luta pela liberdade!... Não acredito em numerologia, mas é interessante esta correlação. Creio que me revejo na tal simbologia do número 9, quanto ao meu carácter. Este livro, “Angola - A Hora da Mudança” é publicado agora, em 2019, porque me pa-receu o momento mais adequado para contribuir com as minhas opiniões nesta fase tão im-portante da vida nacional em que é absolutamente necessária a grande mudança na vida política, económica e social. Se ela se realizará ou não, isso depende de muitos factores. Mas há um facto indesmentível: tanto os cidadãos, como o poder político têm consciência de que é preciso mudar o rumo que o país vinha seguindo. Como o fazer? É a questão que todos temos de resolver.

Ensaio é lançado hoje na sede da UCCLA

“Angola - A Hora de Mudança” traz, também, reflexões sobre a sociedade civil (seu empoderamento, intervenção cívica...). Na sua opinião, que postura devem os angolanos adoptar para combinar com a “...Hora de Mudança”?

Em Angola, individualidades e organizações da sociedade civil estão habituadas a dependerem do poder político, a ele se subordinarem e serem mesmo suas correias de transmissão. Ora uma sociedade civil só é forte se cada um dos sectores que a compõem está bem organizado, conhece os seus problemas e sabe defender os seus interesses compaginados com o geral interesse nacional. Tem de saber reivindicar, escrutinar a acção governativa, propor soluções, ser parceira da governação nas iniciativas que beneficiem a comunidade. É deste modo que se faz o empoderamento da sociedade civil e os cidadãos se vão capacitando para a concreta e útil intervenção cívica.

Transparência da vida pública e elites dirigentes são questões abordadas, também, no livro. O que é que a obra desvenda sobre isso...?

Para responder totalmente a esta pergunta, eu teria de reproduzir aqui textos do livro ou explanar-me em duas ou três páginas, pelo menos.

A quem recomenda a leitura de “Angola - A Hora da Mudança”?

Não diria “leitura obrigatória”, mas, talvez, leitura útil. Ele será útil para qualquer cidadão que queira ter elementos de análise para factos políticos, económicos e sociais ocorridos; ou análises e conceitos relativos a cidadania, sociedade civil, intervenção cívica, democracia, direitos e liberdades; ou ainda ideias para superar os «problemas que estamos com eles»; e também informar-se sobre a História moderna de Angola (nacionalismo, luta pela independência, a Angola no pós-independência).

O livro também pode interessar o meio académico pelos temas que contém e pelos seus múltiplos questionamentos, podendo suscitar debates que tão necessários são em Angola.

Há ou não pretensões de apresentar o livro em Luanda?

É claro que seria muito gratificante para mim apresentar este livro em Luanda, onde nasci. Mas isso depende da conjugação de vários factores. Veremos se será possível. JA

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