Segunda, 14 de Outubro de 2024
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Domingo, 04 Agosto 2024 21:46

Um caminho para a não criminalização do HIV/SIDA em Angola

À hora da revisão da Lei 08/04: A convivência com o VIH/SIDA dura há mais de 30 anos, a legislação e as instituições sobre a mesma, em Angola, registam a aprovação do Decreto 43/03 regulamento sobre o VIH/SIDA, Emprego e Formação Profissional, em 2003, e da Lei 8/04 sobre o VIH/SIDA, em 2004, num momento de algumas incertezas médicas e científicas sobre a epidemia  influenciou, em certa medida, a estrutura do quadro legal em curso.

Neste percurso, desenvolveu-se certo costume, associado principalmente ao estigma e a discriminação, mas também alguma jurisprudência, essencialmente, relacionado com a transmissão dolosa ou negligente e pouco ou nada sobre a discriminação. A lei 08/04 teve a sua eficácia ao longo deste período, pois, contribuiu significativamente para a constituição das instituições que tudo fizeram para estancar o progresso da epidemia em angola.

Porém, a aprovação de um novo Código Penal Angolano, a evolução do conhecimento médico e científico ao longo dos últimos anos sobre o VIH/SIDA e o desenvolvimento de normas adequadas aos padrões internacionais com relação aos direitos humanos e visando a não criminalização do VIH/SIDA por via de norma específica. Tais desdobramentos abrem portas a uma revisão do quadro legal existente com vista tanto a lidar melhor com o costume instalado bem como trazer maior eficácia da lei perante aos constrangimentos atinentes ao estigma, à discriminação e a criminalização.             

A relação entre a discriminação, estigma e criminalização espelha -se em certa medida ao desequilíbrio entre direitos e deveres das pessoas vivendo com VIH/SIDA e não vivendo em relação a sociedade, porquanto existe uma linha tênue e até certa medida invisivel que as separa. Dizer, porém, que o alto grau de discriminação e estigmatização se constituem numa barreira invisível que pesa significativamente para os avanços na prevenção, testagem, tratamento e redução da transmissão seja ela dolosa ou negligente.

A minimização do estigma e da discriminação permite que emerjam “rostos” preponderantes para o combate a epidemia e permeabiliza a descriminalização diante da conscientização da sociedade perante o flagelo e a convivência sadia entre todos. Consequentemente, a intersubjectividade subjacente permite a reboque conduzir a uma maior interacção dos nossos hábitos e acções perante o VIH/SIDA e consequente adequação social e jurídica às directrizes internacionais sobre direitos humanos bem como reforçar a necessidade de não criminalização do HIV/SIDA.

O estigma revela bem o medo da sociedade em lidar com a epidemia do VIH/SIDA e, essencialmente, por na maior parte dos casos estar diretamente ligada ao sexo e a sexualidade, invocando em muitos casos a questões espirituais e outras que ajudaram a forjar certo costume que funciona como entrave ao combate do HIV, à redução de sua transmissão e a eficácia da lei, porquanto poucos casos chegam a tribunal e consequentemente existe uma baixa jurisprudência sobre o assunto.

A questão do estigma e discriminação afectam significativamente a dignidade humana, dado o seu impacto relevante sobre a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas.  Ressalta-se que o alto nível de discriminação, mais associado ao dia a dia das pessoas e da “vida dos bairros” no qual a “fofoca” e os debates sobre a vida alheia parecem ter um forte espaço em nossa realidade e funciona como um bloqueio social a viabilidade de muitas iniciativas. 

Convém destacar que no caso de angola o estigma e a discriminação funcionam como espécie de “julgamento em praça pública” que representa um mecânismo implícito de criminalização, diferentemente do mecânismo legal cujo handicap, actualmente, se localiza primariamente na revisão da lei 08/04 que disciplina a intersubjectividade entre os objectos e os sujeitos sobre o HIV/SIDA. A descriminalização carece assim de um sistema de equilíbrio entre direitos e obrigações, seja ela pessoal social e concomitantemente política.

A fraca testagem voluntária do VIH parece decorrer de um comportamento que visa não só existir elevada consciência do problema, mas também da baixa aceitação das práticas de sexo seguro e, perante este contexto os riscos de transmissão prevalescem altos diante de uma conjuntura critica na qual discute-se a questão do dolo e da negligência, num contexto em que o preservativo está disponivel mas não acessivel. Este sentimento de “julgamento público” da sociedade acaba intrínsecamente por pesar muitas das vezes para a integridade física das Pessoas Vivendo com o VIH ao se isolarem, se afastarem da sociedade e, nalguns casos do tratamento ARV e não só. 

Neste contexto, associado a não presença de uma norma específica sobre a criminalização do VIH/SIDA no novo Código Penal Angolano, trás a tona a necessidade de revisão da Lei 8/04 do VIH/SIDA pela incorporação de várias disposições para fortalecer a igualdade e a protecção anti-discriminação para PVVIH (Pessoas Vivendo com Virus de Imunodeficiência Humana), populações chaves e vulneráveis com o fim de remover as disposições punitivas e para garantir que a lei esteja actualizada com evidências médicas e ciêntíficas actuais e, posteriormente, garantir um encadeamento ao Código Penal.  

Segundo o Relatório de Avaliação do Ambiente Jurídico para o VIH e o Direito a Saúde Sexual e Reprodutiva do PNUD, “o Artigo 15 da Lei do VIH 8/04 atribui às pessoas que vivem com VIH a responsabilidade de revelar a sua condição de VIH aos seus parceiros sexuais. Afirma ainda que a “transmissão dolosa” do VIH é crime e punida nos termos do artigo 353.º do (antigo) Código Penal. As disposições do novo Código Penal também contêm directrizes excessivamente amplas que criminalizam a transmissão, exposição e não divulgação do virus de uma forma que é inconsistente com as directivas internacionais e regionais mais actualizadas. Igualmente, não levam em consideração os avanços ciêntíficos em relação ao VIH (por exemplo, risco zero de transmissão para quem tem com supressão viral)”.

Salienta-se que a Lei 8/08, define o objecto e disciplina a relação entre os sujeitos perante a epidemia do VIH/SIDA. Contudo, destaca-se que todos os sujeitos estão de alguma forma envolta ao risco de infecção e de transmissão do vírus, reflectindo aqui a pertinência e alto nível de intersubjectividade entre todos visando a “transmissão e discriminação zero” e as garantias de tratamento. Nesta perspectiva, a revisão da referida lei justifica-se diante dos avanços médicos e ciêntíficos alcançados ao longo de mais de 20 anos.

Destaca-se que a presente lei foi elaborada num contexto de plena imersão perante o vírus e de muito desconhecimento ciêntífico e médico sobre o mesmo. Esta dificuldade aparece subjectivamente implícita na lei em vigor. Uma possível revisão da lei permitirá melhorar o objecto da Lei e as definições a ela inerentes perante o actual contexto de grandes progressos e avanços médicos, ciêntíficos, legislativos e judiciais de acordo com os padrões internacionais.  

A revisão da lei 8/04 e a consequente incorporação de várias disposições para fortalecer a igualdade e a protecção anti-discriminação para PVVIH, populações chaves e vulneráveis, permitiria uma maior abordagem interpretativa e processual para muitos dos casos que afligem a nossa sociedade, perante a abrangência da mesma e relação com a restante legislação conexa. Por outro lado, deverá eliminar normas punitivas tal como se refere o artigo 15º sobre a transmissão que remete para o artigo 353º do antigo   Código Penal.   

O actual Código Penal Angolano encontra-se relativamente em linha com as normas de protecção dos direitos humanos a não criminalização por via de norma específica o VIH/SIDA, contudo a revisão da Lei 8/04, perante os avanços, poderá abrir um enorme espaço de possibilidades de interpretação para os magistrados e a integração de um mosaico de leis, nomeadamente:  A lei sobre a violência doméstica.

Porém, tal revisão precisa colocar no seu centro a presença da sociedade civil, dado a conjuntura social eminente e a necessidade intersubjectiva das famílias, organizações não governamentais, igrejas e bem como, conforme adianta o Avaliação do Ambiente Jurídico para o VIH e o Direito à Saúde Sexual e Reprodutiva do PNUD: “aumentar a conscientização (educação e informação) em todos os níveis dentro do Executivo, Legislativo e Judiciário, bem como na comunidade mais ampla sobre os direitos das pessoas que vivem com VIH e Tuberculose, das populações-chaves e das populações vulneráveis.”

O contexto social vigente reflecte a existência de um dilema entre o costume e a lei vigente que se repercute na jurisprudência. As melhorias na lei podem ajudar a garantir que haja internalização social da mesma para garantir a sua eficácia jurídica e a segurança jurídica de todos os sujeitos potêncialmente envolvidos. Existe, porém, um caminho para a não criminalização do HIV/SIDA em Angola e para uma abertura a adopção de políticas e estractégias de combate ao estigma e discriminação e elencar os programas visando às metas 90 (90% Testados), 90 ( 90%  Em tratamento) e 90 (90% Com supressão viral) ou mesmo 95 (95% Testados), 95 ( 95%  Em tratamento) e 95 (95% Com supressão viral) e consequente transmissão zero pela supressão da carga viral.

      *Texto produzido pela ONG ANGOLANA ACÇÃO HUMANA

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