Domingo, 28 de Abril de 2024
Follow Us

Quinta, 14 Mai 2020 21:04

A Covid-19 rompe os tendões das políticas migratórias

O impacto da pandemia do novo coranavírus já é global. Esse impacto é extensivo aos países que ainda não têm registo oficial de contágio da Covid-19 (no caso de áfrica, a República Saharaui).

Há restrições nas viagens nacionais e internacionais. As idas e voltas às ‘segundas residências’ fazem-se com dificuldade. O comércio transfronteiriço, muito estendido nas nossas fronteiras, que serve de sustento para muitas famílias, está encerrado. O contacto fisico entre família, amigos, concidadãos e nacionais de países vizinhos é desencorajado. Tudo isso tem proporção global. Porém, esse contexto está a propiciar mudanças inesperadas nas políticas de imigração de alguns países. Foi necessário esperar pelo novo coronavírus para que isso acontecesse.

1 - Portugal: regularização extraordinária. Continua a ser um país de imigração: acolhe 480.300 estrangeiros (SEF, 2018). A comunidade angolana continua a aumentar, registou uma subida de 9,1% contando com 18.382 novos residentes. No âmbito da proteção internacional, Portugal atribuiu o estatuto de refugiado a 286 indivíduos e proteção subsidiária a 405 pessoas. Com um total de 224 novas solicitações, Angola aparece no topo de requerentes de asilo, à frente de países mais instáveis política e socialmente, como a Ucrânia, RDC e Paquistão. Apesar do ‘acosso migratório’, Portugal não hesitou em tomar medidas inéditas. No dia 27 de Março anunciou que regularizaria a situação de todos os imigrantes que tivessem processos pendentes no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Pretende-se que todos tenham acesso ao Sistema Nacional de Saúde. E mais, desafiado pelas organizações não-governamentais, no dia 9 de Maio, através da eurodeputada Isabel Santos, reiterou que acolheria nas próximas semanas entre 50 e 60 crianças refugiadas não acompanhadas, que se encontram nos campos de refugiados na Grécia.

2 - EUA: médicos devem contactar as embaixadas ou consulados, e trabalhadores rurais imigrantes tornam-se ‘essenciais’. Logo que se tornou o novo ‘inquilino’ da Casa Branca, o presidente Donald Trump apresentou-se como um ‘presidente anti-imigrante’. Na realidade, isso já era notório durante a campanha eleitoral, centrada nos discursos nativistas. Prometeu construir um muro ao longo dos 3.200 km de fronteira com o México. Isto serviu-lhe para chegar à presidência. Visitou a fronteira e afiançou a sua cruzada contra a imigração. A intensificação das deportações dos imigrantes em situação irregular, incluindo refugiados e solicitantes de asilo, perfila-se como parte dessa cruzada. A estes últimos, a mensagem era clara: Quédate en México (Fica no México). Entretanto, o avanço da Covid-19 no país - EUA é a nação mais afetada do mundo - levaram o presidente norte-americano a romper os ‘cânones’ da sua política de imigração. Trump e a sua administração tomaram medidas inimagináveis.

Primeiro, no dia 18 de Março, a polícia de imigração (ICE, no acrónimo inglês) anunciou que paralisava as detenções de imigrantes em situação irregular, sobretudo os que se acercariam nos hospitais. Nesse sentido, as pessoas não terão medo de acudir aos serviços hospitalares. Segundo, no dia 24 de Março, o Departamento de Estado publicou um comunicado que atestava: “incentivamos os profissionais médicos que procuram trabalho nos Estados Unidos, especialmente aqueles que trabalham com questões da Covid-19, a entrar em contato com as embaixadas ou consulados e obter uma audiência”. Finalmente, ante a asfixia da economia americana, no dia 1 de Abril, foi o próprio presidente Trump que disse que os imigrantes que trabalham nos campos agrícolas eram bem-vindos: “não estamos a fechar a fronteira para que todas essas pessoas não possam entrar”. Ora, a imensa maioria desses trabalhadores rurais agrícolas são imigrantes latinos ‘indocumentados’. O país possui entre 2 e três milhões de trabalhadores agrícolas. Mais de metade desses funcionários, isto é, 53%, são imigrantes em situação irregular. No período de confinamento, estes imigrantes continuam a recolher frutas e alimentos frescos e, desse modo, a garantir o abastecimento alimentar dos supermercados. Por isso, a actividade que exercem figura entre as ‘essenciais’.

3 -Espanha: centros de detenção de estrangeiros vazios. Nem sempre foi um país de emigração. Para além da Argentina e México, os espanhóis migravam para Alemanha, França e Reino Unido. Contudo, com a sua entrada na União Europeia, o país registou um desenvolvimento avassalador. Isso propiciou a sua conversão para um país de imigração. Em 1985, com a aprovação da Lei Orgânica 7/1985 de 1 de Julho, a imigração passou a constar na agenda política do Estado. Além de imigrantes comunitários (cidadãos da União Europeia), chegam a Espanha imigrantes latinos, africanos e da Europa de Leste. Atualmente, acolhe 5.023.279 de imigrantes (INE, 2019). E mais, existem cerca de 800.000 ‘indocumentados’. No entanto, já foram realizados seis processos de regularização extraordinária: 1985, 1990, 1991, 1996, 2001 e 2005. Por último, existem sete centros de internamento de estrangeiros (CIE) em situação irregular.

Contudo, pela primeira vez, desde a sua criação jurídica em 1985, os Centros de Internamento de Estrangeiros (CIE) encontram-se vazios. Os últimos quatro ‘inquilinos’ destes centros foram postos em liberdade no dia 7 de Maio. No entanto, o processo de esvaziamento dos CIE começou logo que foi decretado o Estado de Emergência no dia 14 de Março. Os imigrantes que não tinham nenhum lugar para viver, foram acolhidos nos centros de acolhimentos geridos pelas ONGs. Tudo isso se deve aos efeitos do novo coronavírus. Não obstante, é importante sublinhar que apenas foram libertados, mas não regularizados. A lei impõe 60 dias no máximo de internamento para levar a cabo a deportação dos internados. Passado este período, devem ser postos em liberdade. Nesse mesmo contexto situa-se a decisão tomada anteriormente, isto é, no dia 1 de Abril: o governo fez saber que facilitaria a concessão de visto de trabalho e o reconhecimento dos estudos dos imigrantes médicos e enfermeiros. Espanha foi um dos países europeus mais afetado pela Covid-19. Tem o registo de 229.540 casos positivos, 27.321 falecidos e 143.374 recuperados (na data de 14/5). Com essa medida, pretende-se contar com os préstimos e valias desses profissionais no cambate dessa pandemia.

4 - Angola: não moveu nenhum dedo. Angola é um país emissor e ao mesmo tempo recetor de migrantes. As cifras de imigrantes que chegam ao país tinham subido entre 2004 e 2014. Cerca de 30.380 estrangeiros chegava diariamente a Angola através das vias oficiais de entrada (aérea e terrestre) e outros 1000 pelos canais clandestinos. Para os imigrantes em situação irregular, foram construídos os centros de detenção da Lunda Norte, Huambo, Moxico (em fase de construção), Cabinda e Luanda para executar a sua expulsão. Os dois últimos possuem maior capacidade: enquanto o centro de Cabinda tem a capacidade para acolher 300 pessoas, o de Luanda, situado ao Km 32, 800 pessoas. No entanto, com o estalar da crise económica e financeira, as chegadas persistem, mas o seu volume baixou significativamente. Entre os imigrantes que se encontram em Angola constam os cerca de 600.000 em situação regular e outro meio milhão ‘sem papéis’. Também figuram 95.000 refugiados e solicitantes de asilo. Muitos desses refugiados e solicitantes de asilo continuam à espera da renovação e resolução das suas demandas pendentes no Serviço de Migração e Estrangeiros (SME).

Para além do vídeo produzido pelo MININT, que mostra as instalações do centro do Km 32, bem como os serviços proporcionados aos internos, nenhuma medida excepcional foi tomada. Pelo contrário, enquanto 2.877 cidadãos nacionais reclusos, entre eles indivíduos altamente perigosos, foram soltos, pessoas cujo ‘crime’ consiste na procura de bem-estar, oportunidade de trabalho, proteção e segurança, continuam detidos de maneira indeterminada. A lei prevê 8 dias para a execução da expulsão dos estrangeiros residentes, e 15 dos não residentes (Lei 13/19 de 23 de Maio, art. 38.3). Contudo, como se referem os próprios imigrantes num vídeo produzido a partir do centro do Km 23, alguns já se encontram aí há entre um e dois anos. Na realidade, o vídeo do MININT surge como resposta às queixas que os imigrantes apresentam no seu vídeo amador.

Medidas excepcionais são necessárias nesse tempo de excepcionalidade. Primeiro, pôr em liberdade esses indivíduos, pois não são criminosos; se o fossem, estariam na cadeia, que é o lugar reservado para os criminosos. Por isso não se lhes dá nenhum uniforme, movem-se com roupa própria. Segundo, favorecer a regularização desses e outros imigrantes. Alguns exercem actividade económica lucrativa e benéfica para o país. Outros mostram um grau de inserção e enraizamento acentuado. Por exemplo, o migrante ruandês que aparece no vídeo do MININT expressa-se bem em português e afirma que trabalhava numa padaria. Além de oportunidade de trabalho, a regularização dos imigrantes contribuirá para as arcas públicas. Economizaremos o dinheiro destinado para as expulsões (7 mil dólares por cada migrante). Arrecadaremos receitas oriundas dos processos de regularização extraordinária. Por último, ajudá-los-emos a passar de invisíveis a visíveis. Entre os imigrantes em situação irregular, existem médicos, enfermeiros e camponeses. Não podemos prescindir dessas pessoas, e a pandemia da Covid-19 dá-nos a oportunidade de contar com estes profissionais. O tão falado caso 31 da Covid-19 (cidadão da Guiné Conacri testado positivo) indica que a imigração é parte integrante da realidade angolana.

Por Avelino Chico, SJ

Docente e investigador

Rate this item
(2 votes)