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Terça, 26 Agosto 2025 04:27

“A partir dos 16 anos, os menores já respondem criminalmente no nosso país”

A inimputabilidade em Angola vai até aos 15 anos de idade e, assim sendo, a partir dos 16 anos os menores já respondem criminalmente, afirmou a subprocuradora-geral da República junto das Câmaras do Cível e Administrativo, Fiscal e Aduaneiro, Família e Justiça Juvenil do Tribunal da Relação de Luanda, Carla Patrícia Correia. Em entrevista ao Jornalde Angola, a magistrada do Ministério Público falou sobre o funcionamento do sistema de justiça juvenil.

Qual é a responsabilidade da Procuradoria -Geral da República (PGR) na protecção de menores?

A Lei da PGR e do Ministério Público, Lei 22/12, de 14 de Agosto, no seu artigo 36, alínea a), atribui uma competência especial que coloca no mesmo patamar o Estado e os menores, ou seja, o Ministério Público representa o Estado e no mesmo patamar representa os menores. É importante frisar que na mesma linha representa o Estado, mas também representa os menores. O legislador teve o cuidado de passar a mensagem da grande importância em termos de representação que a PGR/MP tem relativamente aos menores.

Embora existam muitos parceiros que trabalham para salvaguardar os direitos da criança, a PGR tem a responsabilidade de zelar pelos interesses dos menores, bem como de fiscalizar todo e qualquer processo relativamente à criança.

Qual é a importância que atribui à Lei 9/96, de 19 de Abril, do Julgado de Menores?

A Lei 9/96, de 19 de Abril, do Julgado de Menores, começou a ser aplicada em 2003, quando foi aprovado o Código do Processo do Julgado de Menores, apesar de a Lei já existir desde 1996.

Desde a sua implementação até ao momento, muita coisa foi feita, mas a tendência é melhorar sempre, porque se olharmos para a realidade angolana, em matéria de Justiça Juvenil, sentimos que ainda há muita coisa por se fazer. É uma área multissectorial e, por isso, ela não avança sem que os outros façam a sua parte.

Que avaliação faz da implementação da referida lei?

O grande “calcanhar de Aquiles” está no melhor funcionamento da Comissão Tutelar de Menores, na medida em que a execução das medidas que o tribunal aplica aos menores em conflito com a Lei é da responsabilidade desta comissão.

Por que a Comissão Tutelar de Menores é um entrave?

A Comissão Tutelar de Menores é um órgão permanente que está sob tutela dos Governos Provinciais e tem sido o grande problema em termos de execução das medidas. Ela faz a ponte entre a comunidade e os tribunais. Coopera, também, na execução das medidas aplicadas pelo tribunal e, em cada província, é integrada por cinco membros, um número bastante reduzido para atender à demanda. Por esse motivo, esta é uma norma que deve ser alterada quando for revista a Lei 9/96, de 19 de Abril.

O menor não pode ficar detido numa esquadra, isso viola um dos princípios da Convenção sobre os Direitos da Criança. Mas deve ser imediatamente conduzido à Sala de Justiça Juvenil e apresentado ao juiz

Como funcionam as Salas de Justiça Juvenil?

O Julgado de Menores, actual Sala de Justiça Juvenil, não é um tribunal especial mas, sim, um tribunal comum, cuja competência é especializada. Com a Lei 29/22, de 29 de Agosto, a Sala do Julgado de Menores passou a ter a denominação “Sala de Justiça Juvenil”, que funciona aplicando medidas aos menores em conflito com a lei e em situação de risco. Além disso, aplica sanções aos representantes legais do menor, bem como às instituições que violem o dever de protecção social ao menor, nos termos dos artigos 15.º, 17.º e 18.º da Lei do Julgado de Menores.

Em caso de detenção de um menor, qual deve ser o procedimento?

Quando um agente da Polícia Nacional detém um menor, este deve ser, imediatamente, dirigido à Sala de Justiça Juvenil. Em caso de dúvidas em relação à idade do menor, na ausência de um documento que ateste a idade ou de localização dos seus representantes legais, deve-se submeter o menor a um exame psicossomático que, atendendo às características do menor, teremos uma idade não real, mas aproximada.

O menor não pode ficar detido numa esquadra, isso viola um dos princípios da Convenção sobre os Direitos da Criança. Mas deve ser imediatamente conduzido à Sala de Justiça Juvenil e apresentado ao juiz, que depois de ser ouvido aplica medidas tutelares provisórias, enquanto decorre o processo para as fases seguintes.

Até aonde vai a responsabilidade dos menores?

No caso da Justiça Juvenil, o tribunal aplica medidas e não penas, por se tratar de seres inimputáveis. A inimputabilidade em Angola vai até aos 15 anos de idade. Os menores carecem de protecção do Estado, quer no nível da prevenção criminal, como da protecção social. Assim sendo, a partir dos 16 anos os menores já respondem criminalmente no nosso país. Portanto, a Sala de Justiça Juvenil aplica medidas tutelares de vigilância, assistência e educação, nos termos do artigo 2.º da Lei 9/96, de 19 de Abril.

Quais são as principais medidas previstas na lei?

O artigo 17.º da Lei 9/96, de 19 de Abril, cita várias medidas, desde as mais leves às mais pesadas, que o tribunal pode aplicar. Porém, só é possível aplicar aquelas medidas que na prática são exequíveis, porque as outras não funcionam na sua plenitude.

O juiz pode aplicar aos menores duas espécies de medidas, de prevenção criminal e de protecção social, dependendo da situação fact ual em que o menor se encontra. No âmbito da prevenção criminal, aplicamse medidas aos menores dos 12 aos 15 anos de idade, tendo o processo três fases. Na primeira, a fase da audiência preliminar, o menor é ouvido pelo juiz, ao contrário do que acontece nos t r i bunais comuns, em que o contacto do agente com o juiz acontece na segunda fase do processo. Segue-se, na Sala de Justiça Juvenil, a segunda fase, a fase da instrução, dirigida pelo Ministério Público. A última é a fase de julgamento, dirigida novamente pelo juiz, cuja finalidade será a aplicação das medidas definitivas.

E quanto às medidas de protecção social?

As medidas de protecção social recaem sobre os menores de 18 anos de idade. Se por exemplo um menor de 10 anos de idade cometer uma acção tipificada como crime de homicídio, ser-lhe-ão aplicadas medidas de protecção social e não de prevenção criminal, Ou seja, nestes casos, não se podem aplicar medidas de prevenção criminal, porque a Lei só permite que esta seja aplicada aos menores a partir dos 12 anos, nos termos da alíneab) do artigo 12.º da Lei do Julgado de Menores.

As medidas a aplicar serão sempre de acordo com os factos praticados pelo menor, mas, acima de tudo, o que é importante ter em conta é, segundo a Dra. Maria do Carmo Medina, a personalidade do menor.

Falou sobre algumas medidas que não funcionam. Pode descrevê-las?

O artigo 17.º da Lei do Julgado de Menores cita como primeira medida a repreensão, que deve ser feita de forma oral. Por outro lado, menciona, também, como medida mais gravosa, a privação do menor da sua liberdade, por meio do internamento num estabelecimento de assistência educativa, para a sua reeducação. E, como referi, os centros de reeducação ainda não estão a funcionar, apesar de já existirem.

Existem outras medidas aprovadas em 2008 para funcionarem como alternativas à privação da liberdade, nomeadamente a liberdade assistida e a prestação de serviços à comunidade, que devem ser melhoradas na sua execução.

Estas medidas alternativas funcionam?

Deveriam funcionar melhor se se apostasse no funcionamento integral destas duas medidas. Conseguiríamos, desta forma, atingir grandes objectivos.

Se os centros de reeducação existem, por que não funcionam?

O país tem dois centros de reeducação de menores em conflito com a lei. Em termos de estrutura existem e estão localizados um no Calumbo, inaugurado em 2014, e o outro no Waku Kungo, na província do Cuanza- Sul. Porém, aguardamos pelo funcionamento de ambos os centros. Estes centros não funcionam por diversas razões. Mas devo frisar que essa situação tem causado vários transtornos no bom e normal funcionamento das Salas de Justiça Juvenil. Mas também é importante referir que esta última medida, o internamento do menor, tem carácter excepcional à luz da Convenção sobre os Direitos da Criança. Só se priva o menor da sua liberdade quando as medidas anteriores não forem adequadas à situação daquele menor. Se for reincidente, por exemplo, provavelmente o menor terá que ser internado. Mas essa medida deve ser vista como excepção e não regra. A criança não deve ser privada da sua liberdade.

Como é que funciona a medida de liberdade assistida?

A liberdade assistida é uma medida exclusiva de prevenção criminal, em que ao menor são impostas regras de conduta e o cumprimento de um programa específico.

O menor pode passar por um processo de desintoxicação, se a situação for de dependência alcoólica ou de drogas, a frequência em grupos de aconselhamento, a recuperação no atraso escolar, formação profissional, participação em práticas desportivas, protecção do ambiente através do contacto com a natureza e a participação em programas de iniciativa de associações religiosas e organizações privadas, nos termos do Decreto Executivo conjunto n.º 17/08, de 12 de Fevereiro.

Na Liberdade Assistida, o menor é acompanhado por um agente controlador indicado pelo Ministério do Interior não uniformizado, para não intimidar o menor no processo de acompanhamento, fazendo visitas regulares ao domicílio dos pais do menor ou seu representante, na escola do menor, para saber do seu c o mportamento. E s t a medida tem sido aplicada e tem funcionado.

E a medida de prestação de serviços à comunidade?

A prestação de serviços à comunidade consiste, no fundo, em tornar o menor útil à sociedade. O artigo 7.º do Decreto Executivo Conjunto refere que a actividade a desenvolver deve ser de utilidade e de interesse social para a comunidade, de carácter cultural, educativo ou em benefício de pessoas em situação de precariedade. Nunca deve ter natureza exploratória, ter mais de quatro horas de serviço por dia ou 16 horas por semana e não pode exigir um grande esforço físico ao menor.

A prestação de serviço à comunidade é uma medida muito importante, que se na prática fosse aplicada e executada como deve ser, conseguiríamos reduzir os índices de criminalidade.

A nível das outras províncias em que estado se encontram as salas de Justiça Juvenil?

Temos províncias que se encontram num nível de avanço relativamente maior comparado à capital do país, como é o caso da Huíla.

A aplicação de todas essas medidas é da responsabilidade do Estado, certo?

Sim. A responsabilidade é de todos nós. Existe a chamada responsabilidade solidária. O artigo 35.º, n.º 6 da Constituição da República de Angola (CRA), fala da protecção dos direitos da criança e cita que a educação integral e harmoniosa, saúde, condições de vida e ensino constituem absoluta prioridade da família, do Estado e da sociedade.

Mas, atenção que quando se trata de reeducar, o Estado é chamado, uma vez que alguma coisa falhou na educação daquela criança, que o levou a delinquir. Então o Estado surge para reeducar.

De que forma o Estado e a sociedade devem combater o alto índice de envolvimento de menores em actos tipificados como crime?

Tudo está plasmado na Lei do Julgado de Menores. As funções, atribuições e competências dos Tribunais e do Estado. O Estado deve apostar em políticas sociais assertivas, no sentido de fazer com que todos que cometem delitos não voltem a praticar tais actos. Para os adultos, a finalidade é a ressocialização e para os menores em conflito com a lei a reeducação. O objectivo é trabalhar na prevenção especial que nos vai levar à prevenção geral, porque queremos combater, no fundo, os índices de criminalidade que tendem a subir nos dias de hoje.

No meio de tudo isso, qual deve ser a responsabilidade da família?

A família tem de aparecer sempre em primeiro lugar, porque ela é um núcleo fundamental para o desenvolvimento saudável e harmonioso da criança. É função da família educar a criança. Quando alguma coisa falha na família, o artigo 35.º n.º 6 cita o Estado, que nunca aparece antes da mesma.

O Estado surge para reeducar e não educar, porque esta última é a missão da família. O Estado vem reeducar através da Sala de Justiça Juvenil, que revela as medidas para cada caso concreto e no fim vem a sociedade, que somos todos nós, enquanto defensores da comunidade infanto-juvenil.

As medidas aplicadas no âmbito da protecção social e da prevenção criminal nunca irão funcionar sem a intervenção da família. No caso de menores internados e que não têm contacto com a família, a recuperação é quase impossível. O pai e a mãe têm, cada um, a sua função na vida de uma criança. Os papéis não são iguais e o Estado nunca irá substituir a família nessa função. Por isso, é importante a presença dos pais e, se não colaboram, são sancionados nos termos da Lei 9/96, de 19 de Abril.

Qual é a sua apreciação sobre a Lei 9/96, de 19 de Abril?

Temos que rever a Lei do Julgado de Menores com urgência. Outros problemas também existem ao nível do próprio sistema de administração da justiça juvenil, que devem ser vistos e resolvidos do topo à base, e não apenas ao nível da primeira instância.

Em Dezembro de 1990, Angola ratificou a Convenção sobre os Direitos da Criança, celebrado a 20 de Novembro de 1989. O nosso país ratificou, também, as Regras de Beijing para a Administração da Justiça de Menores, ratificou as Directrizes de Riade para a Prevenção da Delinquência Juvenil, as Regras das Nações Unidas para a Protecção de Menores Privados de Liberdade e as Regras de Havana, que ditam o modo e termos para o funcionamento de um centro de internamento, especificamente como devem ser tratados os menores num centro de reeducação, demonstrando assim que o nosso país é um Estado de Direito Democrático, preocupado, também, com a violação dos direitos das nossas crianças.

Assumiu-se um compromisso sério, daí ter sido aprovada a Lei 9/96, de 19 de Abril, que tem estado a funcionar até hoje. Porém, a lei carece de uma reestruturação profunda, tendo em conta a realidade actual do país, nomeadamente, para além de outras resultantes da nova Divisão Político-administrativa.

Aquando das discussões para a aprovação do novo Código Penal tentou-se baixar a idade da responsabilidade penal dos 16 para os 14 anos. Qual é a sua posição a respeito?

A solução não é baixar a idade da responsabilidade criminal dos 16 para os 14 anos sem antes identificar as causas que levam os menores a delinquir. O certo é sempre identificar as causas e, ao mesmo tempo, tornar as medidas elencadas na lei exequíveis. Porque existem, na Lei do Julgado de Menores, medidas que também privam os menores da sua liberdade, cuja finalidade é completamente diferente do agente imputável, como já anteriormente referi. Reeducar e ressocializar são finalidades completamente diferentes. E o tratamento deve ser diferenciado. Afinal, estamos a falar de seres em formação da sua personalidade cuja intervenção dos tribunais terá, de certa forma, uma grande e profunda influência naqueles que a sociedade almeja que sejam o futuro da nação.

Quais as idades dos menores que mais cometem acções tipificadas como crimes?

As idades variam entre os 13 e os 15 anos. Entretanto, hoje os menores começam a delinquir mais cedo, aos 12 anos ou até menos. E, ao invés de baixar a idade da responsabilidade criminal, sou de opinião que devemos reforçar os mecanismos de actuação para o funcionamento pleno do Sistema de Administração da Just i ça Juvenil, cujo órgão coordenador é o Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos. Devem ser criadas as condições necessárias para que cada órgão integrado no sistema cumpra com a sua parte no que toca às atribuições e competências legais, uma vez que a jurisdição é complementada com a intervenção de mais órgãos.

Portanto, a finalidade do Julgado de Menores, referenciado no artigo 2.º, permite q u e o J ul g a d o d e Menores vá interpelar as instâncias do Poder Executivo no sentido de serem compelidas a satisfazer os direitos do menor que lhes sejam garantidos por lei. Portanto, a justiça juvenil é multissectorial.

Quais os crimes mais comuns praticados por menores?

São sempre os crimes contra a propriedade, como os roubos, furtos e violações, infelizmente. Os crimes de homicídio, embora não haja, felizmente, muitos casos de acções tipificadas como homicídio também são praticados por menores.

Jornal de Angola

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