Os sobas do Lussusso e bairros do Quiangalo, Cassendula e Cabanda, associam o ataque de jacarés ao incumprimento das normas de segurança e desrespeito pelas tradições locais.
De Setembro a Outubro deste ano, três membros da mesma família foram atacados por jacarés quando tentavam atravessar ou pescar no rio. Duas das vítimas conseguiram livrar-se, mas a última morreu. Victor Pinto, de 24 anos, foi atacado quando, na manhã do último dia de Outubro, mergulhou no rio para verificar a rede de pesca que colocara no dia anterior, a uma profundidade de mais de dois metros, numa zona considerada lugar de caça dos jacarés.
José Manuel, 27 anos, parente e colega de trabalho do falecido na fazenda Hernâni, que presenciou o acidente, explicou ao Jornal de Angola que Victor pretendia alcançar a rede de pesca quando foi atacado.
“Estávamos os dois e, como se aproximava a hora do almoço, aproveitámos o intervalo para nos banharmos e tirar água no rio. Fiquei na margem a vê-lo afastar-se cerca de 15 metros. Foi tudo muito rápido. Assim que se baixou para levantar a rede, um vulto surgiu e ouvi o meu amigo a gritar por socorro”, disse. José não teve tempo para ajudar a vítima. “Foi um ataque mortífero do jacaré que durou apenas cinco segundos”.
Sem saber o que fazer, gritou por socorro: “Mesmo confuso, tirei a roupa e atirei-me em direcção ao lugar do sinistro mas, já era tarde, o jacaré agarrou o meu amigo pelo ombro e levou-o para debaixo da água com as pernas para cima, a grande velocidade. Não pude fazer nada”.
José conta que, na tentativa de se ver livre do animal, Victor ainda conseguiu segurar com a mão esquerda num ramo da árvore, mas a força das mandíbulas do réptil levou tudo para fundo do rio. “Vai ser difícil esquecer isto”, disse o jovem pescador à nossa equipa de reportagem.
Corpo foi resgatado
Várias tentativas foram feitas no mesmo dia para recuperar o corpo, mas nada foi encontrado. Na manhã seguinte de manhã um grupo de jovens da sanzala deslocou-se ao lugar do incidente. Numa operação de risco, que começou às seis da manhã, os jovens usaram bóias improvisadas e paus. Das plataformas improvisadas, mergulhavam no rio para localizar o cadáver que estava a mais de dois metros de profundidade.
Depois de muita procura, o corpo da vítima foi encontrado por volta das 10h00, já sem um braço e uma perna, a 30 metros do local em que foi atacado.
A população local entrou em alvoroço ao ver o defunto ser trazido pelos jovens numa tipóia improvisada com esteiras. Os jovens estavam tristes mas ao mesmo tempo orgulhosos porque venceram o medo e entraram naquela zona do rio infestada de jacarés, para recuperar o corpo do parente e amigo de infância.
A sanzala, que dista 12 quilómetros do sector Lussusso-Munenga, não tem unidade policial nem bombeiros. Devido ao estado em que se apresentava o corpo, o enterro teve de ser feito no mesmo dia.
A luta com o jacaré
Alberto Ngola, de 18 anos, primo da primeira vítima, foi o segundo da família a sofrer um ataque de jacaré no mesmo rio, após outro parente próximo ser mordido na perna, mas sem provocar ferimentos muito graves.
Alberto conta que foi atacado às 16h00 por um jacaré, quando o grupo de quatro rapazes de que fazia parte atravessava o rio a nado, quando vinha de uma caçada. O jovem de corpo franzino era o último da fila, durante a travessia. Explicou que o jacaré aproveitou para atacá-lo por se encontrar distante dos outros.
“Por sabermos da existência de jacarés no rio, a travessia é feita o mais rápido possível, mas naquele dia esqueci-me de descalçar as botas e, quando tentei tirá-las, o jacaré já estava a dois metros de mim. Era enorme, tentei correr, mas as botas cheias de água pesavam muito. Gritei por socorro, mas os outros já estavam na outra margem”.
Sob o olhar dos companheiros, o jacaré agarrou Alberto pela coxa esquerda e começou puxá-lo para a zona mais funda do rio com o intuito de afogá-lo.
“Fui atacado quase à beira da margem e o nível da água dava-me pela cintura. Para não ser arrastado, agarrei-me a uma pedra, mas o jacaré arrastou-me para dentro do rio”, conta.
O jovem diz que o jacaré manteve-o imerso durante um minuto. “Enquanto ele me apertava no lodo do rio, fingi estar morto e assim que subiu comigo ao topo da água, puxei coragem e reagi, atacando-o com uma flecha que tinha na mão e, sem querer, golpeei-o num dos olhos. Largou-me e afastou-se”.
Com a coxa ensanguentada, Alberto foi ajudado pelos companheiros a sair da água. Diz que escapou por milagre e por não engolido água mesmo quando o jacaré o levou para o fundo. Para ele, a concentração e coragem foram determinantes para a sua sobrevivência. Alberto Ngola foi levado ao posto médico do bairro Cabanda e em seguida transferido para o Hospital Municipal de Calulo, onde esteve internado durante 30 dias até as feridas sararem. O hoje na aldeia chamam-lhe o “Homem-Jacaré”. Está livre dos ferimentos, mas carrega as cicatrizes das feridas provocadas pelos dentes do réptil na coxa esquerda e no rosto.
Soba fala em tradição
O desrespeito pelas tradições e o incumprimento das normas de segurança são apontados pelo soba Francisco Armando “Kia” como causas dos ataques de jacarés naquela localidade.
O soba da sanzala de Cabanda disse que a população tem sido advertida várias vezes em reuniões sobre os cuidados básicos de segurança a ter na travessia dos rios e lagoas devido à existência de muitos animais ferozes na área. Disse ainda que os jacarés estão a aproximar-se de zonas frequentadas por pessoas devido à subida do caudal do rio Longa, resultante das chuvas intensas que têm caído na região. O soba “Kia” garante que é o primeiro caso do género ocorrido na zona nos últimos 60 anos e considera muito estranho que os ataques tenham ocorrido com membros da mesma família, facto que “os mais velhos vão ter de analisar”.
O soba salientou que tem advertido o povo sobre a falta de observância das tradições e valores culturais da zona, como o ritual anual do “Malombe”, feito junto às sepulturas dos sobas falecidos, durante o qual se pede sorte e protecção para os que estão em vida. Para o soba, o desprezo da juventude por tais valores podem estar relacionados com os acontecimentos. Mas os especialistas são mais pragmáticos e atribuem os ataques de animais selvagens aos seres humanos, devido à invasão do Homem ao habitat dessas espécies, o que gera situações de conflito. Casos do género têm ocorrido em várias regiões do país.
Jornal de Angola