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Quarta, 17 Dezembro 2025 19:40

Filantropia, patriotismo e silêncio cúmplice

Acompanho com particular atenção a polémica gerada em torno da iniciativa de cidadãos brasileiros que decidiram desenvolver acções de carácter filantrópico-humanitário na província do Bengo.

O que deveria ser encarado como um gesto de solidariedade internacional acabou por desencadear uma reacção inesperada e hostil, protagonizada por uma figura pública angolana que defende que “ajuda, sim, mas sem propaganda”, acrescentando que a pobreza não é um exclusivo de África e que também existem pobres no Brasil.

O argumento, embora aparentemente razoável, falha no essencial. A existência de pobreza noutros países não anula, nem atenua, a gravidade da pobreza em Angola. O sofrimento das crianças angolanas não se relativiza por comparação geográfica. A fome, a exclusão e a vulnerabilidade extrema não são menos urgentes por também existirem noutros continentes.

É consensual que figuras públicas devem usar a sua visibilidade com responsabilidade. Mas essa responsabilidade traduz-se, acima de tudo, em emprestar a voz aos que não a têm. O dever moral e cívico de quem tem palco, microfone e audiência é denunciar as injustiças, as irregularidades e as falhas estruturais da sociedade, sobretudo quando estas colocam em risco a vida e a dignidade de milhões de cidadãos.

No caso vertente, mais relevante do que escrutinar o modus operandi de uma ONG estrangeira teria sido denunciar, com a mesma veemência, o estado de total vulnerabilidade em que se encontram milhões de crianças em todas as províncias do nosso país. A indignação selectiva revela mais sobre quem a manifesta do que sobre o problema em si.

Em Angola existem instituições e responsáveis com o dever constitucional de velar pela vida e pelo bem-estar de todos os cidadãos. A questão não se resume à distribuição pontual de comida ou roupa, mas à organização do país de forma a permitir que cada cidadão encontre um espaço de integração produtiva, de acordo com as suas competências, realizando-se através de um trabalho socialmente útil e devidamente remunerado.

Os que vieram de longe, com os seus próprios meios, para ajudar crianças angolanas, funcionaram, goste-se ou não, como um alerta. Um espelho incómodo que expôs fragilidades estruturais e feriu susceptibilidades de alguns “patriotas” de ocasião. A reacção desproporcionada contra quem tentou acudir a um SOS humano diz mais sobre a defesa da honra do regime do que sobre a defesa da dignidade nacional.

Na nossa praça pública, muitas figuras públicas, sobretudo ligadas à música e ao entretenimento, optaram pelo silêncio estratégico, receosas de serem associadas à oposição e sofrerem represálias ou entraves às suas carreiras. Esse silêncio, ainda que compreensível no plano individual, torna-se colectivamente cúmplice da perpetuação do sofrimento.

Paradoxalmente, neste episódio foi precisamente um músico quem tomou a dianteira da campanha que culminou no cancelamento da missão da ONG brasileira, invocando um pseudo-patriotismo exacerbado. Um patriotismo que, em vez de proteger as crianças angolanas, pareceu servir sobretudo para proteger a imagem de um sistema que falha em garantir-lhes o básico.

O verdadeiro patriotismo não se mede pela rejeição da ajuda externa, mas pela coragem de reconhecer falhas internas e exigir soluções estruturais.

Defender Angola é, antes de tudo, defender os angolanos, especialmente os mais frágeis.

Todo o resto não passa de ruído para distrair os menos atentos.

Lukamba Gato

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