A presença do TPI estabeleceu normativas penais internacionais sem precedentes na resolução dos processos internacionais, o que permitiu preencher as lacunas constitucionais dos Estados e as lacunas processuais dos Tribunais internacionais ordinários e Tribunais ad hoc que o precederam (Tribunal Militar Internacional de Nuremberg 1945-1946; Tribunal Militar Internacional do Extremo Oriente, também conhecido por Tribunal de Tóquio 1946-1948; Tribunal Penal Internacional para a Ex Jugoslavia 1993-2017; Tribunal ad hoc para o Rwanda 1994-2015).
Todos esses Tribunais foram instituídos por motivações políticas para julgar crimes de relevância internacional, tendo como objectivo condenar os culpados, tal como ocorreu, mas esses órgãos judiciais não foram insentas de irregularidades e injustiça processual: muitas das provas materiais não eram devidamente analisadas, o princípio da presunção da inocência não era tida como relevante, foi assim em Nuremberg, em Tóquio e e no julgamento dos Tutsi, muitos réus foram condenados por supostamente terem tido contactos com nazistas ou por terem supostamente participado dos genocídios, muitas das testemunhas contra os acusados não eram credíveis, o mesmo refere-se à certas provas forjadas, pois, eram julgamentos onde as sentenças foram praticamente pre-determinadas, os processos eram mais políticos que jurídicos.
A Nuremberg, após o fim da II Guerra Mundial, o historiador Tzvetan Todorov (2001, p. 31), ao referir-se da punição dos crimes cometidos pelos oficiais militares e altos dirigentes de Hitler, formulou a sua opinião da seguinte forma: “A questão nunca foi devem os líderes nazistas serem punidos ou devem ser libertados? A pergunta era devem ser executados sem julgamento ou devem ser julgados? Josef Stalin se inclinava para a primeira solução, e oferecia seus ofícios para eliminar 50 ou 100 mil alemãos, já que gozava de ampla experiência nisso. O Secretário do Tesouro Americano, Henry Morgenthau Jr., cruelmente propôs deportar vários milhões de alemãos para outra parte do globo; os turcos, por exemplo, se davam bem com populações estrangeiras (como os armênios), lembrou. Churchill e Roosevelt chegaram a cogitar da possibilidade de castrar a população masculina da Alemanha. Apenas o legalismo de Henry Stimson, Secretário da Guerra dos Estados Unidos, permitiu que a decisão final acabasse sendo o Tribunal de Nuremberg, onde os acusados podiam contar com um Advogado, era necessário que testemunhas depusessem, e um réu poderia até mesmo ser absolvido de seus crimes ou participação ao genocídio contra os judeus”.
A diferença entre os referidos Tribunais e o TPI, é que o TPI possui status de Tribunal permanente e imparcial, funciona observando as directrizes do Direito Internacional dos Direitos Humanos, e possui procedimentos jurídico-legais sólidos, eficientes e democráticos, centrados na justiça penal internacional.
O alcance de actuação do TPI é universal, a sua jurisdição limita-se particularmente aos Estados-parte, tal como estabelece o Princípio da Complementariedade. Este princípio representa o principal elemento de elo jurisdicional na dinâmica das relações entre o TPI e os tribunais nacionais. A complementariedade “atribui aos Estados a responsabilidade primária de processar os presumíveis responsáveis pelos crimes internacionais mais graves e deixa ao TPI a responsabilidade final de agir nos casos de inactividade por parte das autoridades estatais ou na eventualidade em que os processos instaurados demonstrem incapacidade ou falta de vontade por parte do Estado-Membro em levar adiante a persecução penal”.
Portanto, em caso de um crime internacional cometido por um dirigente ou cidadão que goza de privilégios e imunidades diplomáticas como o TPI deve prosseguir? Esses dirigentes devem ou não ser julgados? Quais os procedimentos legais a serem empregados e observados? Convém realçar, que as imunidades diplomáticas em si, não são todas iguais, por exemplo as imunidades de um agente diplomático ou consular, não são iguais às imunidades de um Magistrado, pois, a imunidade do agente diplomático e consular é válido apenas no exterior do País, do Magistrado é válido tanto à nível interno quanto à nível externo, tal igual as imunidades de um Parlamentar.
Diferente de todas estas imunidades, é a imunidade de um Chefe de Estado ou de Governo, aqui o mecanismo processual muda completamente, seja perante um crime internacional ou crime de responsabilidade de Estado. No entanto, o TPI prevê nos seus estatutos, particularmente, no artigo 27.º, o «Princípio da Irrelevância da Qualidade Oficial». Este princípio determina “que a lei é igual para todos, e que independentemente do status ou funções públicas que alguém ocupa na sociedade, é permitido que sejam responsabilizados, sejam eles Chefes de Estado ou de Governo, Ministros, Governadores, Parlamentares, Magistrados, Diplomatas, entre outras autoridades do Estado, sem qualquer privilégio ou imunidade, casos esses tenham cometido crimes graves da competência do Tribunal”. Este Princípio foi inserido no Estatuto de Roma porque “os crimes de competência do Tribunal são, em grande maioria, cometidos e empreendidos por agentes políticos que aproveitando-se da sua posição, utilizam a máquina estatal para o alcance de seus propósitos e acabam furtando de suas responsabilidades por privilégios concedidos pelo ordenamento jurídico pátrio, portanto, é nesse ponto que a inclusão desse dispositivo legal se mostra importante, uma vez que decide pôr fim à impunidade de autores desses delitos”.
A execução do Princípio da Irrelevância da Qualidade Oficial, é mais simbólico que factual, o seu procedimento é complexo, pois, as imunidades são sinônimos de “barreiras sólidas”, mesmo em presença de um crime grave internacional, tais figuras estatais não podem ser automaticamente presas, seria uma violação das imunidades diplomáticas, portanto, em caso de flagrante delito, aquele que goza de imunidade poderá ser detido, não preso (este último é fruto de uma sentença). Depois da detenção, o TPI deverá solicitar ao Governo do infrator/acusado o retiro de suas imunidades, caso contrário, o Tribunal não poderá dar seguimento ao processo, tal como previsto pelo artigo 98.º do Estatuto de Roma, neste quesito, o acusado deve ser solto imediatamente.
Vale lembrar mais uma vez, que o TPI só tem jurisdição nos Estados que ratificaram o Estatuto de Roma, se um crime internacional for cometido por um cidadão de um Estado não-Membro do TPI, mesmo se o crime for provado, o TPI por si só não poderá agir contra tal cidadão, por isso os mandados de captura contra o Presidente Vladimir Putin e contra o Primeiro-Ministro de Israel Benjamin Netanyahu, são completamente ilegais e infundados, não têm nenhum respaldo legal, porque tanto a Rússia quanto Israel não são Membros do TPI. Tais mandados foram baseadas em questões políticas (pressão política) por causa dos conflitos em curso, mas do ponto de vista jurídico tais mandados de prisão não são susceptíveis de análise e cumprimento.
Só existe uma única forma do TPI abrir um processo-crime contra um cidadão de um Estado não-Membro, tal forma só é possível “quando o Consellho de Segurança das Nações Unidas, por meio da Adopção de uma Resolução, decide referir a situação ao TPI, o que permite que o Tribunal exerça a sua jurisdição sobre os crimes cometidos no Estado não-Membro, mesmo que este não seja parte do Estatuto de Roma”, tal como previsto pelo artigo 15bis e artigo 15, do Estatuto de Roma. Para estes casos específicos o TPI precisa obrigatoriamente de uma autorização do CSNU, caso contrário, será um mandado ilegal, ou apenas simbólico para suscitar debates midiáticos e políticos.
Um dos exemplos concretos de mandado de captura contra um cidadão de um Estado não-Membro, é a Resolução n.º 1593 (2005), adoptada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, em 31 de Março de 2005, que autotiza o TPI à investigação relativa aos crimes de genocídio e crimes contra humanidade, cometidos à mando do Ex Presidente do Sudão, Omar Hassan Ahmad Al-Bashir, durante o conflito na Região de Darfur em 2003. O mandado de captura (prisão) contra Al-Bashir, foi oficialmente emitido pelo TPI no dia 4 de Março de 2009. O mandado nunca foi respeitado pelos tribunais sudaneses, pois, este Estado não reconhece a Jurisdição do TPI, mas por tratar-se de uma Resolução do CSNU, legalmente, o mandado devia ser executado, mas o Sudão é um País instável, vive à anos em Guerra Civil, não existe por lá um Governo efectivo, isso dificulta a execução do mandado do TPI.
O Conselho de Segurança da ONU é o único órgão global que possui poderes políticos, diplomáticos, econômicos, jurídicos e militares, tal como estabelecido no Capítulo VII da Carta da ONU: o “Conselho pode fazer quaisquer recomendações e determinar quais passos e procedimentos a serem seguidos, pelos Estados, Governos ou Organizações Regionais e Internacionais”. É excatamente aqui, onde são decididas e elaboradas as autorizações de mandados que o TPI precisa para dar seguimento em Estados não-Membros, ou qualquer outra situação de carácter internacional. Por este e outros motivos, debate-se muito, se de facto o TPI possui independência efectiva.
No entanto, independentemente das complexidades processuais internacionais, os mandados de captura do TPI são “nulas” contra as imunidades diplomáticas de um Chefe de Estado em função. Tais mandados só teriam poder de execução processual, assim que cessassem as funções do Chefe de Estado, ou mandados contra um Ministro ou Governador, mas não contra um Presidente, caso contrário, estaríamos perante à um “dilema” do próprio direito internacional (sobre isto aconselho-vos a lerem meus artigos anteriores sobre as Convenções de Viena de 1961 e 1963 referentes às imunidades).
Insistir em tais processos criminais enquanto um Chefe de Estado está em funções, exigiria juridicamente, fazer uma ampla análise e debate sobre possíveis reformas e revisões das imunidades diplomáticas, o que de facto, seria uma espécie de contradição jurídico-internacional, pois, nenhuma Convenção ou Protocolo Internacional, até o presente momento, prevê esplicitamente, sem margens de interpretação jurídica, o cancelamento tácito das imunidades de um Presidente ou Chefe de Governo em funções, por intermédio de um mandado de captura internacional, tais procedimentos acontecem mais à nível interno através do Impeachment, que é um processo/julgamento político (não jurídico), onde o Chefe de Estado pode perder o seu mandato se for considerado culpado por seus crimes ou de Alta-traição à Pátria, responsabilidade de Estado, violação dos direitos humanos, etc.
Os mandados de captura do TPI contra Presidente Vladimir Putin e contra o Primeiro-Ministro de Israel Benjamin Netanyahu, foram baseadas em procedimentos políticos. Não é essa a função do TPI, sua função é baseada em procedimentos jurídicos: observar os Estatutos e Regulamentos, tendo em conta também, as Convenções, os Tratados e os Protocolos Internacionais. Tais instrumentos já existem basta ter domínio e saber aplicar correctamente, pois, o conhecimento é universal, não é porque é Juiz do TPI que deve afirmar e decidir algo contrário às regras e todos devem concordar.
O TPI tem a sua sede em Haia (Holanda/Países Baixos), justamente em Haia, um outro Tribunal, denominado de Tribunal Especial sobre o Crime de Agressão contra a Ucrânia (que entrará oficialmente em funcionamento em breve), veio à público dizer que “não vai julgar Presidente Vladimir Putin enquanto este continuar a ser Presidente da Federação Russa”. Essa declaração do Tribunal Especial, além de reforçar tudo quanto já argumentado por mim (com base nas regras e conhecimento internacional autêntico sobre as imunidades dos Chefes de Estado e de Governo), deixa cair por terra os mandados de captura do TPI, pois, como disse: são mandados sem fundamentos jurídico-legais.
O.B.S: Se aproxima o Convênio Internacional sobre «Direito Internacional», os temas principais serão sobre a ONU, TPI, UE, UA. À Leonardo Quarenta, foi sugerido falar sobre o “Tribunal Africano de Justiça e dos Direitos Humanos”… O Governo Angolano devia devolver os passaportes diplomáticos aos magistrados ordinários, pois, além de ser um acto inconstitucional, é uma clara violação do Direito Internacional.
Direito Diplomático
Direito Internacional
Justiça Penal Internacional
Protocolos Internacionais
Por: Leonardo Quarenta, Ph.D.
Doutorado em Direito Constitucional e Internacional.