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Quinta, 30 Abril 2020 00:51

Igreja angolana se prepara para o pós-Covid-19

A Igreja angolana já pensa no pós-Covid-19. As organizações internacionais preveem um período difícil depois da Covid-19: o BIP mundial diminuirá na ordem dos 3%, 25 milhões de empregos poderão ver-se destruídos em todo mundo (OIT), mais de 250 milhões de pessoas poderão ser afetadas pela fome (ONU), cerca de 30 países, incluindo Angola, registarão escassez de alimentos.

 Estima-se que estaremos ante um quadro semelhante ou pior que o da “Grande Depressão” que afetou o mundo nos anos 30. Essas previsões suscitam preocupação, assim como prontidão e visão para as afrontar. A Igreja serve-se de três fontes - Escritura, Tradição e Magistério - para se implicar nesses temas ou assuntos de carácter social. Na realidade, as três fontes fazem com que a vocação social forme parte do ADN da Igreja. E mais, as mesmas levaram a que surgissem homens de Igreja e instituições eclesiais em momentos de crise e pós-crise.

No passado dia 20 de Março, o Papa Francisco criou a Comissão Pós-Coronavírus. Também denominada Working Group 1 Acting now for the Future, a comissão é coordenada pelo Monsenhor Segundo, do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral. O seu objetivo consiste em refletir sobre os futuros desafios económicos e sociais causados pela Covid-19. A comissão apresentará ao Santo Padre propostas para lidar com esses desafios e, em estreita colaboração com a Caritas Internationalis, apoiará os esforços das Igrejas locais nessa empreitada.

As reflexões da Igreja angolana enquadram-se nesse contexto. Através da Nota Diocesana nº 1 de 16 de Abril, o Bispo da Diocese de Viana, D. Emílio Sumbelelo, criou uma comissão a fim de o auxiliar a pensar no “dia de amanhã”. Coordenada pelo Pe. Manuel Domingos Pestana, a comissão integra doze membros, oito sacerdotes e quatro irmãs, e tem a responsabilidade de aglutinar ideias, informações, sugestões, que melhor ajudem a responder à situação das pessoas mais vulneráveis, depois da Covid-19. Os apoios que se pretende dar a essas pessoas são abrangentes, pois os integrantes da referida Comissão Ad Hoc atuam em diferentes âmbitos da vida eclesial, que vai desde o pastoral, passa pelo bíblico, e culmina no educativo e sanitário. Porém, a nota destaca dois domínios em que se prestará maior atenção: o sanitário e o humanitário.

Esse tipo de iniciativa não é isolado, une-se a um conjunto de ações que estão a ser levadas a cabo por outros organismos. Como afirma o Papa: “só podemos sair desta situação juntos, enquanto humanidade inteira” (27/4). E mais, as respostas pontuais em situações pontuais fazem parte do ADN da Igreja e nutrem as suas raízes na Escritura, na Tradição e no Magistério. Para se referir aos mais vulneráveis, o Antigo Testamento recorre à equação: estrangeiro, órfão e viúva (Dt 27,19). Por sua vez, o Novo Testamento define a assistência aos mais necessitados como critério de discernimento que conduz à Deus (Mt 25,35-45). A atenção aos mais carenciados estende-se igualmente à época patrística. São Basílio sublinha que “quem ama o seu próximo como a si mesmo, não possui mais riqueza que o seu próximo” (Homilia aos ricos).

O século XIX marca um antes e um depois na implicação da Igreja em temas sociais. Nesse período, o seu Magistério é mais estruturado, fecundo, e conta com a aparição de instituições eclesiais especializadas no tratamento de pessoas vulneráveis. Considerando os conteúdos dos documentos pontifícios, poderíamos distinguir três etapas. A primeira etapa vai de 1891 a 1958 e corresponde a questões sociais de âmbito laboral e sobre os direitos humanos. O primeiro a embarcar nessa tarefa é o Papa Leão XIII, “papa dos operários”. Conhecido como criador do Magistério político moderno, postula o direito ao trabalho e apresenta a verdade e a justiça como instrumentos para dirimir contendas laborais (Rerum novarum, 1). Em seguida, o Papa Pio X pede que todas as coisas sejam instauradas em Cristo. Segue-se o Papa Bento XV, “papa da Primeira Guerra Mundial”. O seu trabalho consistiu na atenção às vítimas e em pôr cobro às hostilidades. O Papa Pio XI funda a Rádio Vaticano, em 1931, e serve-se dela para denunciar os totalitarismos: o fascismo italiano, o nacionalismo alemão e o comunismo soviético. Com o apodo de “papa da Segunda Guerra Mundial”, Pio XII presta ajuda humanitária às vítimas e protagoniza-se na busca da paz. A defesa da pessoa humana, da família e da solidariedade são igualmente notas características do seu pontificado.

A segunda etapa atende a questões acerca da justa distribuição da riqueza e do bem-estar da pessoa humana. Este período começa com o Papa João XXIII, “papa do Concílio Vaticano II e da paz”. A Europa registava um crescente desenvolvimento económico. Mas as populações de África, Ásia e América Latina eram enfrentados com a expansão do comunismo, fome e guerras de libertação. Nesse sentido, o Papa fala da atenção aos pobres como uma exigência ética, e sugere a criação de uma autoridade mundial supranacional que fomente o bem comum universal (Pacem in terris, 45). O Papa Paulo VI desenvolve as intuições do Concílio e fica na história como o papa que tinha visitado todos os continentes. Isso permite-lhe ser testemunha ocular das zonas mais deprimentes do Planeta. Por isso, ante o universalismo tradicional, prima pelo protagonismo das dioceses; e ante a situação precária das nações do Sul Global, ressalta que o “desenvolvimento é o novo nome da paz” (Populorum Progressio). O Concílio culmina com esse período e oferece novas aspirações. Entre estas, o reconhecimento da autonomia da realidade (GS 36). Isto supõe reconhecer o homem como um ser histórico chamado a realizar-se de maneira plena desde a perspetiva teológica e social.  

O Papa João Paulo II inaugura a terceira etapa, que coloca o seu acento na globalização e na interdependência. O Papa sublinha que o subdesenvolvimento põe em perigo a paz mundial; por isso, “os bens da criação devem ser destinados a todos” (Sollicitudo Rei Socialis, 39). O Papa Bento XVI retoma a questão do desenvolvimento que, para além de integral e solidário, deve estar centrado na transcendência, no amor e na verdade (Caritas in veritate, 3). Finalmente, o Papa Francisco é o ‘cadete’ dessa etapa, e propõe um magistério social de saída para as “fronteiras”. Isso permite-nos encontrar os “descartados” e oferecer-lhes um ‘mundo melhor’. Para construir o referido mundo, o Papa identifica três autores: a Igreja, que tem a missão de analisar as causas que levam as pessoas à situação de vulnerabilidade; o Estado, que deve adotar políticas que promovem e protegem a pessoa humana; e a comunicação social, que deve fomentar a ‘cultura de encontro’.

Por último, o surgimento de homens de Igreja e organismos eclesiais em momentos pontuais é algo recorrente na história da Igreja. Entre 1880 e 1914, a Itália vivia uma devastadora crise económica e social. Cerca de 4 milhões de italianos abandonaram o país em busca de melhores oportunidades nos EUA. Esta crise levou o Papa Leão XIII a criar em 1888 “paróquias nacionais”. A sua maior preocupação era atender, pastoral e sacramentalmente, esses indivíduos. A Segunda Guerra Mundial golpeou a Europa em todos os níveis, e o pós-guerra foi marcado pela instalação do sistema republicano e democrático. O Papa Pio XII esteve na linha da frente na preparação da humanidade para o pós-guerra. As guerras de libertação em África, Ásia e América Latina deixaram milhares de pessoas em situação precária. A crise desses povos propiciou que o Papa Paulo VI criasse, em 1967, a Comissão Pontifícia Justiça e Paz. Seu objetivo era promover a paz, o progresso e a justiça social entre as nações. Os acontecimentos das duas guerras mundiais estimularam a fundação e reestruturação da Caritas Internationalis. Hoje, esta instituição perfila-se como a voz oficial da Igreja católica em matéria de ação sócio-caritativa. A guerra no Vietname provocou cerca de 2 milhões de refugiados que abandonavam o país em pequenas embarcações. O pico dos também conhecidos por boat people ocorre entre 1978 e 1979. Isso levou o então Geral da Companhia de Jesus (Jesuítas), o Padre Pedro Arrupe, a fundar, em 1980, o Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS, no acrónimo inglês). Hoje, a organização atua em 57 países, incluindo Angola, e atende mais de 670.000 pessoas. Que nos está reservado depois da Covid-19? Líderes visionários, organizações civis e confessionais, cujos nomes ficarão na história.

Avelino Chico

Docente e investigador

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