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Sábado, 08 Outubro 2022 10:39

Tio Celito, o silêncio é eterno?

O silêncio sempre foi a única resposta que vida me deu, em carta lacrada a que se anexou o afastamento, o isolamento e o virar de costas a todos os meus direitos de cidadã nascida e documentada como nacional de Angola.

Por Ulika da Paixão Franco

Sua Excelência o
Presidente da República de Portugal
Professor Doutor Marcelo Rebelo de Sousa

Esta sobrinha que lhe escreve chama-se Ulika e, como defendeu o luso-santomense Almada Negreiros em “Nome de Guerra”, o significado dos nomes é de suma importância. Se todas as mulheres são Maria, pois eu peço à Santa que as baptizou que nenhuma mulher seja Ulika uma vida inteira. Em Umbundo, a língua bantú mais falada de Angola, Ulika significa “sozinha” e se os nomes são premonitórios, o meu seguiu a par e passo com a linha da vida.

Poderia ter sido Gisela, como queria a minha mãe, mas a vontade do meu pai, um marxista-leninista que aos 17 anos foi preso pela PIDE e deportado para Moçâmedes, actual Namibe, privado de liberdade na Cadeia de São Nicolau, para aos 22 anos ter sido detido pela DISA, polícia política de Angola durante a Chefia de Estado de Agostinho Neto, e fuzilado em finais de junho de 1977 em Luanda, marcou mais a minha vida do que o romantismo francesista de se chamar Gisela. Cada um tem a consideração que merece.

Tio Celito, escrevo estas linhas não por o querer incomodar, mas por estar exausta desta luta pela verdade e pela dignidade do direito ao bom nome, um direito meu e o do meu pai, pois que quando o meu pai foi fuzilado e acusado de fraccionismo não foi só ele quem desapareceu do álbum de fotografias, eu também. Os filhos dos fraccionistas são fraccionistas. Está escrito na pedra: desde o dia em que o meu pai foi preso, tinha eu 13 meses, vi agudizado um problema de saúde crónica, sendo a minha mãe obrigada a colocar-me em trânsito de Luanda para Lisboa sem data de regresso; desde esse dia que eu, a Ulika e a sozinha nos diluímos numa só pessoa com o enorme fardo de só ouvir o silêncio, nunca o porquê.

Neste ano de 2022, numa 2.ª feira, a 11 de Abril, pelas 14h30, dirigiu-se esta sua sobrinha à Sede da Delegação Sul do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses com o objetivo de proceder à recolha de elementos biológicos para a realização de teste de ADN que permitissem encontrar correspondências nas ossadas, restos mortais do meu pai, uma das vítimas da que ficou conhecida por “intentona” do 27 de maio de 1977 em Angola. A recolha de elementos biológicos foi feita pela Mestre Heloísa Afonso Costa num processo coordenado com o Professor Doutor António Amorim Santos que, inclusive, resultou na deslocação de Técnicos do INML a Angola (Luanda) para, em conjunto com a equipa do ex-Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos da República de Angola e uma equipa da Polícia Judiciária da República de Portugal, procedessem à confirmação das ossadas encontradas em diferentes valas comuns existentes na área urbana de Luanda.

O processo foi observado ficando claro que o ex-Chefe de Estado da então República Popular de Angola, o falecido médico e poeta Agostinho Neto, autorizou a criação de valas comuns para depósito dos corpos de seres humanos, cidadãos maioritariamente nacionais de Angola, mas também cidadãos nacionais de Portugal, vítimas de assassinato por tortura e/ou fuzilamento. Sendo que este acto foi praticado sem que haja, até aos dias de hoje, registo de julgamento em sede de Justiça, nem direito à constituição de defesa por parte de um número calculado na casa dos milhares de cidadãos aprisionados à margem da lei pelo então Chefe de Estado da República Popular de Angola Agostinho Neto. Assim, do observado decorre a prova de que ali foram praticados crimes contra a humanidade e também crimes de genocídio tendo em conta a coincidente proveniência étnica de grande parte dos homens e mulheres barbaramente torturados e assassinados entre 1977 e 1979.

Tio Celito, creia que esta sua sobrinha já dirigiu outras linhas acerca do mesmo assunto a um número obsceno de pessoas, incluindo o actual Comandante em Chefe das Forças Armadas de Angola o General João Lourenço a quem interpelei directamente numa visita oficial a Portugal tida em Novembro de 2018. O silêncio sempre foi a única resposta que vida me deu, em carta lacrada a que se anexou o afastamento, o isolamento e o virar de costas a todos os meus direitos de cidadã nascida e documentada como nacional de Angola.

Em 2018 eu tinha todas as razões e mais algumas em acreditar que o General João Lourenço me iria tratar com a consideração que merece uma sua cidadã compatriota. Hoje sei o quanto me iludi na consideração que, como pessoa, pensei que merecia. Esperei pela voz dele e nunca recorri ao Tio Celito para que não houvesse a mais pequena dúvida de quem era a voz que queria ouvir. Mas o silêncio sempre foi a face mais visível na linha marcada: “sozinha”.

No dia 25 do mês de Setembro, já depois de decorridas as eleições gerais em Angola, da investidura do reconduzido Chefe de Estado General João Lourenço e do empossado governo no qual não consta o antigo Ministro da Justiça e dos Direitos Humanos da República de Angola, Francisco Queiroz, enchi-me de coragem e enderecei um email à Mestre Heloísa Afonso Costa e ao Professor António Amorim Santos, ambos do INML, pedindo-lhes que me devolvessem as perguntas que coloquei com indicações acerca do processo de recolha de ADN e análise das ossadas. Silêncio, Rei de pleno trono do silêncio imperou a não resposta.

Estimado Tio Celito, confesso-lhe que o silêncio isola, magoa, empobrece-nos por dentro, arranca-nos a pele por fora. São 45 anos a andar comigo, com a Ulika e com a “sozinha” ao mesmo tempo e eu estou exausta com o peso de tantas camadas de sofrimento.

O Tio Celito afirmou no último 5 de Outubro que “nada é eterno”. Correndo o risco de que também não me responda, ainda assim pergunto: e a desresponsabilização moral, ética, humana, jurídica e civil de um crime que ceifou arbitrária e aleatoriamente vidas humanas ficará encerrado no silêncio uma eternidade? Até quando eu serei a filha de um fraccionista cujo crime e a culpa nunca me foram dados a conhecer? Estaremos nós: eu, a Ulika e a “sozinha” amarradas numa só linha da vida pela eternidade deste silêncio providencial? Estou exausta, Tio Celito. Saberá que caminho devo percorrer para ouvir resposta ou até quando? 

PÚBLICO

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