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Domingo, 28 Fevereiro 2016 21:01

Entrevista ao filho adoptivo de Lucio Lara - Jean-Michel Mabeko Tali

Estive a fazer umas investigações sobre a vida de Lucio Lara ex. Secretário Geral do MPLA que faleceu ontem em Luanda, grande companheiro e amigo de Agostinho Neto, sobretudo no período da guerra civil contra a UNITA e a FNLA, no período da conquista da independência.

Depois de ter descoberto que ele tem três filhos vivos, Paulo, Bruno e Wanda Lara, descobri também que adoptou uma criança congolesa. O menino em questão é um rapaz chamado Jean-Michel Mabeko Tali, que tornou-se amigo de Paulo Lara (filho de Lucio Lara) no período em que a família Lara residia no Congo, onde o MPLA mantinha o seu quartel general, no combate às forças coloniais portuguesas.

Jean-Michel Mabeko Tali hoje em dia é um grande intelectual, professor da Universidade de Howard nos Estados Unidos, onde lecciona sobre Historia Politica.

Navegando na internet encontrei uma sua entrevista, onde fala um pouco sobre tudo da historia angolana, no período da independência. Uma entrevista muito interessante, efectuada em 2003, carente de muitas outras informações recentes.

Eis abaixo a entrevista, que vale a pena ler, porque ele conseguiu manter-se equidistante das actuas forças políticas em Angola, mantendo sempre uma posição neutra.

«Nenhum dos movimentos de libertação (FNLA, MPLA, UNITA) estava disposto a partilhar o poder... Penso, no meu livro, ter dado elementos suficientes para demonstrar isto», afirma o historiador Jean-Michel Tali.

Jean-Michel Mabeko Tali, tem vários diplomas de Universidades Francesas, um Mestrado em Estudos Africanos do Instituto de História da Universidade Bordeaux III, uma pós-graduação e um doutoramento em História Política da Universidade de Paris VII.

Além de fazer análises sócio-políticas para várias revistas, Jean-Michel é também romancista. Apresentou em Paris, em Fevereiro de 2002, o livro L'Exil et L'Interdit (O Exílio e o Interdito), dedicado a uma geração na qual se inclui «de jovens revoltados e muito politizados que viveram intensamente a questão dos países africanos dominados por partidos únicos». O seu interesse pela História política terá começado nessa época..

O seu 2º romance publicado também pela Editora L'Harmattan intitula-se "Le Musée de la Honte" (O Museu da Vergonha), fala das crianças soldados, na guerra civil do Congo, é uma homenagem a uma irmã sua que foi recrutada e, será lançado em Paris, em meados deste ano.

A partir de Washington, onde se encontra como professor convidado na Howard University, Jean-Michel Tali teve a gentileza de nos conceder esta entrevista sobre os dois volumes da sua obra “O MPLA Perante si Próprio”, lançada em Angola em Outubro de 2001 e, em Lisboa, em Maio de 2002. Trata-se de uma investigação histórica sobre o percurso deste movimento transformado em partido único.

Foi no Congo que tomou contacto com militantes do MPLA. Nunca foi simpatizante do movimento?

O meu encontro com o MPLA teve lugar em Brazzaville, por intermédio de amigos Angolanos. Sou de uma geração (anos70) politicamente muito engajada, que se sentia solidária com todos os povos em luta e com todas as lutas de libertação do mundo, da África à Ásia e América Latina. Os povos de Angola viviam isso, através dos movimentos. O MPLA, sediado em Brazzaville, era para nós, representante desta luta. Fizémos o que pudémos para manifestar a nossa solidariedade ao povo angolano através do MPLA. Neste sentido, fui de uma geração solidária e, portanto, simpatizante da luta de libertação feita pelo MPLA. Não sendo Angolano, as minhas manifestações de simpatia limitavam-se a esse nível.

Como conheceu e se tornou íntimo da família Lara?

A relação com os Lara fez-se através de uma longa história de amizade entre eu e Paulo, amigo de colégio e, primogénito da Ruth e do Lúcio, em Brazzaville, nos fins dos anos 60. Tornámo-nos como que irmãos.

Como analisa o facto do MPLA ter tomado unilateralmente o poder e se ter mantido nele durante estes quase 30 anos apesar das crises que ocorrem no seu interior, desde a fundação?

Esta questão abarca considerações que vão além da simples política doméstica angolana. Na realidade, nenhum dos movimentos de libertação (FNLA, MPLA, UNITA) estava disposto a partilhar o poder com os dois outros. Não estou a fazer nenhuma revelação e, penso ter dado elementos suficientes no meu livro para demonstrar isto. Aconteceu que neste processo de 1974-75, o MPLA beneficiou de uma série de factores conjunturais, tanto objectivos como subjectivos, para “fintar” (passo a expressão) os seus dois concorrentes.

Por factores objectivos, entendo as alianças políticas tanto internas, a nível da sociedade angolana, como internacionais. Cada um dos três movimentos armados beneficiou destes factores. Mas o que fez virar o barco a favor do MPLA, terá sido a maior capacidade, a nível interno, em capitalizar alianças locais, nomeadamante das forças sociais da capital, muito mais eficientes para a conjuntura de então. Contou muito, ter a capital na mão, no contexto africano da altura, era um trunfo essencial para o que viria. As alianças internacionais: aliar-se a Cuba era, de certo muito menos prejudicial do que aliar-se ao regime de Botha e trazer o exército da África do Sul dos tempos do apartheid, independentemente das razões invocadas: moralmente, isto dificilmente passava tanto em África como na maior parte do mundo. Isto jogou muito contra a FNLA e a UNITA. O resto foi um jogo diplomático dos mais fáceis para o MPLA e os seu apoiantes.

Recordo a imagem de soldados brancos, do exército sul-africano, capturados pelas FAPLA e seus aliados cubanos, isto levado a uma cimeira da OUA...

Pode imaginar o impacto diplomático que teve! Depois disto e, apesar de algumas oposições a nível da OUA, não foi difícil fazer admitir a República Popular proclamada por Agostinho Neto nas instâncias africanas e internacionais. Subjectivamente, vou apenas lembrar que: não foi difícil ao MPLA mobilizar o povo de Luanda (e não se trata apenas uma questão étnica) contra a FNLA: por razões históricas objectivas, muitos dos Angolanos do ELNA (exército da FNLA), não dominavam a língua portuguesa. Às vezes nem sequer a falavam. Muitos eram filhos de emigrados angolanos de longa data no antigo Congo-Belga. A propaganda do MPLA, inventiva e muito dinâmica na altura, apresentou toda esta gente como sendo estrangeiros, “zairenses”, etc.

Houve participação do exército zairense - e não há maneira de a FNLA negar isto, pois não só foram capturados alguns soldados do exército de Mobutu, mas fontes da própria CIA o reconhecem. Mas os Angolanos do ELNA (Exército de Libertação Nacional de Angola, braço armado da FNLA) acabaram por não entrar muito na contabilidade.

Era como se não existissem! Isto foi um formidável factor que jogou a favor do MPLA e, cujas consequências ainda se podem sentir hoje, como sabe... As invasões estrangeiras, sul-africanas nomeadamente, deram ao MPLA todos os trunfos de legitimação e, de perduração do seu poder. A guerra civil, alimentada por vários factores, deu um fôlego maior a este longo reinado do MPLA. De forma que a própria vida do partido - e do país - ficou suspensa ao fim deste longo conflito: adiou-se a resposta a muitas questões quer internas ao partido, quer sociais, quer políticas, com base na resolução prévia deste conflito.

Quais foram as alianças mais importantes que o MPLA fez antes e depois da independência e actualmente?

Nenhuma luta de libertação levada a cabo no chamado “terceiro mundo” e, mormente em África escapou a um facto objectivo: não podiam contar com o apoio dos países ocidentais em termos daquilo que era essencial: as armas.

Houve, por exemplo, nos casos das lutas nas colónias portuguesas, ajudas humanitárias de países nórdicos, ou pelo menos de organizações humanitárias e de solidariedade destes países. O MPLA beneficiou muito do apoio de organizações norueguesas, holandesas e dinamarquesas. Para as armas, só podiam contar com os países socialistas, do Leste Europeu, da América Latina (Cuba) - e de forma muita complexa e mitigada - da Ásia (China e, de certo modo, muito pouco, da Coreia do Norte).

Portanto, era normal que as maiores alianças internacionais do MPLA movimento de libertação fossem com estes países. Havia os países africanos, cujo papel era absolutamente fundamental, nem que fosse por meras questões geográficas: os Congos e a Zâmbia para os movimentos angolanos, o Senegal e a Guiné Conakry para o PAIGC, a Tanzânia e a Zâmbia e, em certa medida (não muito seguro) o Malawi para a FRELIMO (já que não podiam contar muito com a Rodésia do Sul (actual Zimbabwe), o pequeno reino da Swazilândia, dada a sua difícil situação geográfica. No caso do MPLA, o maior e mais seguro aliado em África foi sem dúvida alguma o Congo-Brazzaville. Depois da independência, essas alianças foram-se diluíndo em certos casos (africanos), nas considerações de questões e “razões de Estados”... As solidariedades já não foram – e nem podiam, como é obvio! – ser as mesmas.

Qual foi o papel da PIDE nos problemas do MPLA?

Na guerra entre os movimentos de libertação dos territórios colonizados, temos sempre dois ou três níveis. O primeiro – que se torna o fundamental, mesmo quando às vezes só intervem depois, o terreno militar, quando a potência ocupante se recusa a dar a independência, como foi o caso de Portugal. O segundo terreno, é o diplomático, também é fundamental, pois dele dependem, não só a sobrevivência do movimento armado (graças à aquisição de armamentos por diversas vias entre as quais ajudas de aliados e amigos), mas também porque é nele que tem que se lutar para fazer passar mensagens, fazer vencer a causa defendida e atrair ajudas político-diplomáticas, humanitárias e materiais. Portanto, o reconhecimento internacional é essencial e constitui para todo movimento armado um terreno de luta vital. Graças a ele, o movimento pode romper as barreiras de silêncio que em geral os media das super potências construíam à volta das lutas de libertação. O silêncio, para qualquer movimento de libertação, pode ser mortal. Veja-se Timor Lorosae e, dá para entender a importância da mediatização de uma luta de libertação, isto dito sem demérito do combate interno, do qual depende o essencial da vitória. Há no entanto um terceiro terreno: a subversão. Era de “boa guerra” diríamos, no sentido de que neste tipo de situações cada um procura destruir o outro de todas as maneiras possíveis. A potência combatida vai, não só procurar destruir militarmente o movimento armado, como procurará miná-lo no interior, provocar disfunções, etc. Quem executou os planos de assassinato de Amílcar Cabral urdidos pela PIDE, foram militantes dissidentes do PAIGC. A PIDE aproveitou problemas internos ao PAIGC para armar uma mão interna. Os movimentos de libertação não tinham, concerteza, meios de responder pela mesma moeda. Quanto muito procuravam obter a solidariedade de organizações políticas portuguesas.

Mas ao mesmo tempo, seria histórico e contraproducente em termos da compreensão deste processo atribuir à PIDE todos os dissabores internos dos movimentos de libertação. No caso do MPLA, procurei mostrar, no meu livro, que as raízes das crises que sacudiram o movimento de libertação na altura, tinham de ser procuradas em factores intrínsecos e, não imputá-las sempre a uma “mão externa”, à PIDE, etc.

A que se ficou a dever o 27 de Maio?

Vou resumir aqui o que explico no livro: o 27 de Maio de 1977 é o culminar de contradições cujas origens devem ser procuradas desde a luta de libertação nacional por um lado e, nos rescaldos das lutas e aspirações sociais herdadas da sociedade colonial angolana. Nito Alves foi um combatente de uma região que pagou caro a sua proximidade com a capital da colónia. O seu contacto com a direcção do MPLA passou-se praticamente no fim da guerra. Ele como outros da Primeira Região, tinham claramente feito entender a sua diferença quanto à visão que tinham não só da forma como a luta foi dirigida (e nisto peço para lerem a mensagem da Primeira Região ao Congresso de Lusaka de Setembro de 1974, anexado no meu livro, volume I), mas e muito rapidamente, de questões como a gestão da questão racial no seio da sociedade (ler as declarações de Nito, nomeadamente em 1976, sobre este assunto e, cujos extractos cito no meu livro) e as questões sociais.

Mormente, a questão da orientação ideológica do partido no poder acabou agudizando as já existentes divergências: Nito queria uma revolução pura e dura, de tipo Bolchevick, o seu discurso pro-soviético não deixa sombra de dúvidas. Mas eu não me quis limitar a isto. O que tento mostrar é que, para se entender as motivações de Nito e, dos seus companheiros, não seria produtivo do ponto de vista da análise contentar-nos em dizer que ele se tornou “de repente” pró-soviético”.

Havia outros que o eram e outros que eram maoístas, etc. O importante na minha opinião, é entender a dinâmica socio-politica que desemboca nesta tragédia. Parece-me importante colocar a questão em termos das lutas sociais que sustentam o discurso político de Nito, e a sua convicção, quase que messiânica (clara em alguns dos seus discursos ou escritos, nomeadamente as suas famosas “Treze teses”) de que a história tinha colocado nos seus ombros um papel fundamental neste processo revolucionário angolano.

Conforme declarações suas, foram os mesmos jovens que ajudaram o MPLA a vencer a guerra de Luanda, que no 27 de Maio foram eliminados, porquê?

O MPLA deve sim, a sua regeneração política de 1974-1975 à juventude urbana, mais particularmente em Luanda.

O movimento acabava de sofrer uma longa fase de sucessivas crises e, quando chega o 25 de Abril, é um movimento exausto, dividido, militarmente sem mais capacidade de iniciativa, enquanto que, entretanto, a FNLA estava a rearmar-se como nunca o tinha sido antes e, a UNITA, que se precipitou em assinar o cessar-fogo com as novas autoridades portuguesas, saía dos confins do Moxico para não só ser reconhecida finalmente pela OUA, mas sobretudo ganhar milhares de adeptos nos centros urbanos, sobretudo no planalto central e, no resto do sul do país (há reportagens fotográficas de comícios monstruosos da UNITA nestas regiões. A entusiástica adesão de milhares de jovens, que foram das cidades para os CIR (Centros de Instrução Revolucionária), cheios de ideias românticas e muita sinceridade para ser formados como soldados, de repente deu a Agostinho Neto o fôlego que permitiu que ele e o que restava do movimento pudessem reconstituir o potencial militar deste. Não fosse isto e, face a uma provável coligação FNLA/UNITA, o MPLA teria vivido uma real descida aos infernos. A história teria sido outra.

O problema é que esta juventude entusiasta, voluntarista, estava dividida em várias tendências ideológicas, que reflectiam em grande parte as divisões ideológicas que marcavam o movimento comunista internacional, mas reflectiam igualmente as divisões ideológicas na esquerda portuguesa do pós-25 de Abril.

Estas divisões são um dos mais marcantes aspectos das lutas políticas urbanas daquela época. Para ser breve: houve um choque entre estes jovens, suas visões do mundo, suas ideologias, etc., com as da liderança do MPLA, mormente de Neto. Alguns entraram em choque com Nito Alves; outros viram nele o verdadeiro e único revolucionário, face a uma direcção do MPLA que eles e outros (os CAC por exemplo, seus adversários) qualificavam de “burguesa”. O resto você sabe... Não vou aqui entrar no macabro debate estatístico sobre quantos terão sido mortos a 27 de Maio de 1977... O drama do que aconteceu não se limita a isso....

Acredita que ficou isento na sua pesquisa?

Sou um profissional das Ciências Históricas. Nesta qualidade sei, e, aprendi desde o primeiro ano na Faculdade, que a neutralidade, em Ciências Sociais e, mormente em História, é um exercício difícil de se realizar, porque quem escreve é um ser social, com uma trajectória, com vivências, uma educação, opiniões políticas próprias, etc. Isto quer dizer que estes aspectos todos podem interferir de uma forma ou de outra na obra e, dar uma certa orientação ao conteúdo desta. Em todas as Faculdades por onde passei, os mestres sempre chamaram a nossa atenção para isso. O valor do bom historiador reside então na sua capacidade em poder colocar-se acima da subjectividade, sobretudo quando se trata de questões polémicas.

A minha especialidade é a História Política, com tudo o que isto acarreta em termos de riscos de subjectividade e de parcialidade na análise dos factos.

Tentei fazer o melhor possível para escapar a estas armadilhas que espreitam qualquer historiador e, mais ainda, o politista neste tipo de empreendimentos – descrever e analisar um processo político-histórico. As reacções positivas e de encorajamento que tenho recebido por todo o lado, inclusive de personalidades que me consideravam como demasiado ligado a algumas das velhas figuras do MPLA, seus opositores nas lutas internas no seio do ex-movimento de libertação, deixam entender que atingi o objectivo desejado: manter-me isento, equidistante e, analisar com a maior frieza possível, sem tabus e sem temores, o processo da luta de libertação, bem como os dramas que marcaram a trajectória do MPLA. Mas, deixo aos leitores, a latitude de apreciar. Dito isso, quero ser realista: o historiador que escrever o livro perfeito, sem falhas (quer objectivas, por falta de mais dados, quer subjectivas por alinhar mais numa posição do que noutra), ainda está para nascer. Como Historiadores, escrevemos o que as nossas fontes nos disponibilizam e, as nossas análises não podem ser tidas como alguma palavra de Deus. As análises resultam dos limites dos nossos conhecimentos, da experiência como académicos, das fronteiras que conseguimos atingir em termos de saber científico, de estudo, mas também – e muito! – da experiência humana acumulada. Se tivesse escrito este livro mais tarde, talvez fosse ainda mais completo, mais profundo, etc. Porque teria, entretanto, ganho mais alguma coisa em termos de experiência, tanto humana como académica. Tive como bandeira a honestidade intelectual e a luta contra todo tipo de tabus nesta matéria.

A publicação do livro “O MPLA Perante si Próprio”, não representa o fim do seu interesse pelas questões políticas de Angola. Fará outros estudos nessa área?

O processo angolano é como que um laboratório vivo. Um terreno de pesquisa que tem ainda muitíssimo para dar. Portanto, penso que tenho muito que aprender e pesquisar neste fértil terreno.

Jean-Michel Mabeko Tali, Howard University, Visiting Professor Washington, DC.

 

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