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Quarta, 19 Novembro 2025 14:52

A escolarização da desigualdade social em Angola

Como o sistema educativo reproduz privilégios e limita a oportunidade para as classes periféricas: Existe, ainda que sutil, uma reprodução de classes sociais em Angola por conta não só da condição económica e da organização do currículo educacional, que é elaborado segundo as necessidades da classe dominante, mas também das estruturas escolares pouco eficientes para os periféricos e muito consistentes para os das elites.

O currículo educacional é, como defendeu Pierre Bordieu, articulado mediante o capital simbólico e cultural da classe dominante, seus hábitos, valores e formas de pensamento foram sistematizadas em agendas globais e nacionais da educação, para que na sua implementação, houvesse uma internalização dos seus próprios valores a fim de serem reproduzidos por todos.

No entanto, alguns conhecimentos científicos e filosóficos não podem simplesmente serem compreendidos por aqueles marginalizados porque, na sua classe social, não há um arcabouço ou conjunto de elementos simbólicos que pudessem facilitar a compreensão de valores epistemológicos universais escolarizados.

 Ora, uma pessoa que, antes de ir à escola, tem à sua disposição uma alimentação saudável e equilibrada, tem todos materiais escolares "em dia", tem direito a transporte ou possui um motorista, sua escola é detentora de uma infra-estrutura totalmente de qualidade (com salas climatizadas, bibliotecas, refeitório, salas multifuncionais, disciplinas extra-curriculares), seus colegas têm um nível de linguagem bastante apropriado e com uma cultura ética esperada em ambiente escolar, com direito a mesada, seu ambiente social possui um conjunto de "bens materiais e simbólicos" que lhe permite estabelecer uma relação de significação com o mundo circundante, enriquendo a sua cosmovisão, é claro que alguém da periferia não teria qualquer chance com ele. Mas governo e sectores privilegiados, frequentemente alheios a essa realidade, implementaram a política de avaliação e exames nacionais esperando resultados gerais como se o nível de aprendizagem fosse homogéneo.

 A classe dominada, com realce às da sanzalas, musseques ou periféricas não encontram seus valores e necessidades nos mesmos programas e práticas educativas. Sua classe, marginalizada, produziu — como se pensa comummente — uma subcultura totalmente informal, com hábitos pseudo-éticos e anti-morais que devem ser evitados. Mas toda esta situação foi condicionada na e pela ausência de capital económico.

 A classe social dominada, parece viver um ciclo que, no geral, é já bem comum: nascer pobre, estudar em uma escola precária, fazer um curso médio ou superior que no final te põe novamente na classe proletariada, isto é, trabalhar por conta de outro e, por isso mesmo, receber um salário que mal cobre as despesas mínimas. Já os filhos das classes dominantes têm sempre um futuro garantido ou nas grandes empresas ou se tornam eles os donos das empresas e dos meios de produção. O que estou dizendo é que eles, por possuirem condições económicas favoráveis e por assumirem cargos altos no país, podem sempre garantir um bom futuro para os seus filhos. É mais fácil um pobre morrer pobre, do que um rico ou endinheirado morrer pobre. Então, os pobres periféricos não têm qualquer tipo de privilégio cultural ou económico, senão, e como vemos muitas vezes, intelectual, mas quem detém o poder económico terá o privilégio de ter o acesso aos bens de necessidades básicas rápidamente atendida. Em sociedade capitalista, como a nossa, o sucesso de um indivíduo depende muito de quanto de capital económico ou social (do ponto de vista de influência em monopólios hegemónicos ou auto-suficientes) a pessoa tem do que do próprio conhecimento. Assim, uma pessoa pode ser muito inteligente e ao mesmo tempo ser pobre, no entanto, quem tem a sua disposição condições económicas enraizadas em meios e bens de produção permanentes que possam garantir o domínio duradouro do seu capital económico poderá reproduzir a sua posição social.

E mesmo diante disso tudo, as classes sociais em Angola parecem aceitar o curso natural de suas situações. Os dominantes não sentem tantas responsabilidades ou culpas pela sua situação, reconhecendo que sua condição é na verdade uma fase ou estilo de vida social pela qual todos aspiram, logo, manter o status quo não é só uma questão de honra e prestígio, mas também de naturalização humana, enquanto que não muito diferente, os periféricos, na sua maioria, simplesmente lutam internamente, reclamando consigo mesmo sobre a sua condição de impotência social e econômica, acreditando que a culpa por não terem qualquer tipo de sucesso é deles mesmo, e segundo pensam, por não se esforçarem o suficiente. Eles admitem a existência permanente classes socias, mas estão cegos ante a dominação deles como uma síndrome de Estocolmo, pois, não há em Angola uma insurgência para mudar a estrutura económica das classes sociais se não para melhor distribuição das riquezas nacionais ou, pelo menos, por um outro governo que o fizesse, nem tão pouco há uma luta contra a exploração proletária e mudança nas agendas e programas educacionais mediante as necessidades dos oprimidos; com isto, trabalhar para o Estado ou para alguém que paga bem, ou então empreender, mesmo que sem um fundo identificado, para sair da miséria, é um sonho angolano periférico. E a escola é o meio principal pela qual essa práxi é veiculada. Em palavras simples, o sistema capitalista — o principal causador da produção e reprodução das desigualdades socias entre dominados e dominantes —  é visto como um sistema que permite a todos terem o acesso aos bens económicos, só que o governo é que se endinheira com o tesouro público por meio de seus hábitos corruptos e nepóticos dificultando a distribuição das riquezas de forma igualitária.

Há um outro grupo a margem dos dois que não acho que fazem parte nem da classe dominante nem tão pouco da dominada, são apenas beneficiados que tiveram a sorte de deter algum capital e por isso mesmo têm uma renda média que lhes permite fugir sutilmente da crise económica que o país atravessa. Esses são os funcionários públicos, médios empresários, médicos, advogados, e outros de renda média que em grande parte não vieram de famílias poderosas, mas aspiram, todos os dias, assim como a classe baixa, fazer parte da grande elite endinheirada do país. Essa relação de polarização social é vista nas práticas de acesso à educação: os da periferia só podem estudar em escolas públicas ou privadas em que a propina ou se assemelha ao saco de arroz ou deve ser inferior à ele, os grupos intermediários aderem em massa as escolas privadas com estruturas normais ou sofisticadas, mas nunca precárias, já os da elite ou estudam nos grandes colégios do país ou estudam fora. Essa assimetria nas classes sociais permite que a educação em Angola não seja, do ponto de vista micro e macro, homogénea. A escola onde o indivíduo estuda pode, também, em certa medida, determinar o sucesso da pessoa. Podemos assim dizer, tal como defendeu Bordieu, a educação contribui para a reprodução das classes sociais.

Assim, o governo angolano, pressionado pelo povo — aqueles que despertaram e pretendem mudar o quadro social — devem reprogramar, primeiro, o sistema de educação para que o processo de escolarização ganhe, em termos estruturais, as mesmas infra-estruturas escolares a nível nacional, compondo sectores avançados e modernos de uma escola normal; implementar, na grelha curricular, disciplinas ligadas ao desenvolvimento técnico segundo as necessidades locais ou outras que possam potencializar a sua independência em relação ao capital económico, à literatura e à forma de reprodução simbólica da cultura dominante existente em Angola. O sistema económico não pode ser uma cópia fiel das políticas económicas globais, deve antes de mais nada partir do património cultural nacional, e preservar uma ética ontológica que permite eliminar qualquer comportamento corrupto e nepótico entre os angolanos, eliminando, embora que minimamente, as assimetrias sociais.

Autor do Texto: Mateus Kuta (Professor, Estudante Universitário no Instituto Superior Dom Bosco — Unidade Orgânica da Universidade Católica de Angola, no curso de Licenciatura em Ensino Primário).

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