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Sexta, 24 Junho 2016 11:20

Waldemar Bastos: “Em Angola querem calar a música da alma”

É uma das figuras maiores da música angolana, portuguesa, do mundo. E tem sido também nos últimos tempos uma voz incómoda para o governo angolano. Esta sexta-feira, Waldemar Bastos, apresenta-se na Gulbenkian, mais frontal do que nunca.

Nos últimos anos, Waldemar Bastos, uma das vozes mais respeitadas da música angolana das últimas décadas, vinha transformando a música de cariz tradicional em algo de luxuoso, gravando inclusive um álbum com a London Symphony Orchestra, mas agora parece mais interessado em regressar à simplicidade do violão. “De alguma forma é como retornar ao início”, diz-nos ele, revelando que está a gravar um novo disco acústico, ao mesmo tempo que irá lançar um álbum ao vivo resultante do espectáculo no Centro Cultural de Belém em 2013 com a Orquestra Gulbenkian, no seguimento da edição de Classics Of My Soul (2012).

Diz ter alcançado a maioridade a tocar violão – “os violões e as guitarras, em África, não só tocam como cantam”, ri-se ele – e esta sexta-feira, às 21h30, irá tentar mostrá-lo no Anfiteatro ao Ar Livre da Fundação Gulbenkian, num concerto inserido nas comemorações dos 60 anos da instituição. Será uma viagem musical onde revisitará todos os álbuns gravados desde o início dos anos 1980, com um som essencialmente acústico, executado por ele na companhia de mais cinco executantes, onde se mistura a música tradicional de Angola, os blues, o jazz e alguma sensibilidade pop.

O espectáculo que vai apresentar esta sexta-feira na Gulbenkian em Lisboa constituiu uma revisitação à maioria dos álbuns da sua carreira?

 Sim, até porque o convite surge no contexto dos 60 anos da Gulbenkian. E eu pensei que sendo um aniversário podia criar um roteiro da minha carreira até hoje. Algumas canções são quase inevitáveis, porque são do lote que as pessoas mais gostam, mas estou preparado para improvisar. Vou ser acompanhado pelos músicos que me têm acompanhado nos últimos anos com a inclusão de dois novos membros.

No passado recente teve uma experiência com a Orquestra Gulbenkian, mas desta feita trata-se de um concerto muito diferente.

Esse momento com a Orquestra foi muito importante, não tanto em termos de carreira, mas até por questões mais pessoais. A minha ligação com as orquestras vem da infância porque o meu pai era da música sacra. Mesmo quando gravei no Brasil, no início da carreira, fi-lo com elementos da Orquestra Municipal do Rio de Janeiro. Sempre gostei de violinos, por exemplo, portanto o convite que me foi endereçado nessa altura deixou-me satisfeito. Já tinha trabalhado com a sinfónica de Londres, mas uma coisa é o estúdio e outra ao vivo, onde é tudo mais profundo e delicado.

Como é a sua relação com o seu passado musical? Reconhece-se na sua obra inicial ou já não vislumbra pontos de contacto com o presente?

Há pouco tempo entrei num local público e puseram a tocar música antiga minha e tive a estranha sensação de estar a ouvir qualquer coisa recente. Quando gravo fico a ouvir e a desfrutar daquilo durante muito tempo no carro até me esgotar. Mas depois desse período dificilmente regresso a essas canções. Talvez por isso quando sou obrigado a voltar a elas é como se as estivesse a recriar pela primeira vez. É como voltar a abraçar um filho que estava ausente em viagem. É uma alegria renovada.

Nos últimos anos as novas gerações, não só em Angola, como em Portugal e noutros países, parecem olhar para o património musical do país com renovado interesse. Nomes como o seu, ou o de Bonga, são hoje reverenciados entre os mais novos. Como é que olha para isso?

Fico muito feliz quando jovens na Grécia, na Holanda, ou em várias outras partes do mundo, cantam coisas minhas e adicionam outros elementos, como o rap, como já aconteceu aqui com o Boss Ac. É um sinal de continuidade, embora no caso específico do contexto angolano exista em simultâneo uma situação de lacuna. Os artistas que eram detentores da, chamemos-lhe assim, alma Angolana, e que transportavam todo esse legado foram mortos no 27 de Maio [em 1977]. Aí abriu-se uma grande lacuna e as gerações seguintes ficaram órfãs. Foi aí que se introduziu no país a música da Martinica – que acabará por originar bem mais tarde a kizomba – tornando-se quase hegemónica, numa acção que não parece ter sido inocente. A esse propósito, um dia, em conversa com um empregado de mesa, tive um diálogo revelador em que ele às tantas dizia a propósito da maior parte da música que se ouvia em Angola: a gente dança-a, mas não a sente. A diferença em relação à música de raiz criada pelos músicos que haviam desaparecido era essa: em parte era também música que se dançava, mas sentia-se com profundidade. Essa passagem de testemunho que se sente hoje acaba por ser natural. Quando se é jovem pode-se fazer a mais diversa música moderna – eu comecei em grupos de baile a fazer rock – mas de vez em quando é preciso ir beber água à fonte e é isso que eles estão a fazer, mostrando respeito e carinho por quem surgiu antes.  

Ao longo dos anos os seus discos e a sua música foram-se transformando. Gravou com Arto Lindsay ou Chico Buarque, fez espectáculos com orquestras ou apenas ao violão, gravou para a Luaka Bop de David Byrne e actuou um pouco por todo o mundo, mas certamente que existem elementos que ao longo dos anos são perenes apesar de todas as mudanças. O que é que se manteve sempre?

 A sinceridade. O que se tem mantido é isso. Não me meti na música com ânsia de fazer discos e aparecer na capa dos mesmos. Meti-me na música pelo encontro com o belo. Não consigo fazer nada em cima do joelho, gosto de burilar as coisas com tempo, por isso demorei sempre seis ou sete anos a lançar novos discos. O meu tempo de maturação é esse. Quero apresentar trabalhos de forma sincera, com preocupação pelos detalhes. Quando uma pessoa tem isso como verdade para si própria, os outros acabarão por sentir. Podem não ver, mas ao ouvir sentem-no.

Durante muitos anos havia do público Ocidental uma expectativa que a música feita em países africanos correspondesse a um modelo que parecia pré-definido. Esse desejo do exótico está hoje mais diluído, embora ainda esteja presente. Como é que alguém que vive a sua música com essa sinceridade lida com essas expectações?

Em mim convivem a cultura africana e a portuguesa. Isso é inquestionável. Por outro lado, pela educação musical que o meu pai me deu, nunca tive barreiras. Pelas viagens que fui fazendo fui percebendo que África era muitas coisas, muitas músicas, muitos sons, do chilrear dos pássaros à frugalidade dos rios com a água a bater nas rochas. E tudo isso era também transportado para a música tradicional. Talvez por essa minha preocupação pela beleza fui sempre atrás da música tradicional também, ouvindo, gostando e mergulhando. Mas ao mesmo tempo ouvia Amália, Zeca Afonso, rock & roll ou Jackson 5. O meu universo quando começo a fazer música a sério era esse. Portanto, quando estou a exibir a minha arte, tudo isso transparece. É uma mescla espontânea entre referências africanas e Ocidentais. Eu sou isso. Não forço nada. Sempre me senti à vontade no Brasil ou aqui. Sempre expressei a minha alma.

Recordo-me que quando estava a gravar para a Luaka Bop de termos ido para estúdio com o Arto Lindsay, que era o produtor, de ter havido ali um choque interessante. Tenho canções que são lentas, depois rápidas, depois outra vez lentas, mas de forma natural. Quando começamos a tocar o Arto vira-se para mim e diz: isso são duas músicas. Não quis entrar em choque, mas só lhe disse que a minha música era assim. E ele foi para casa a pensar. No dia seguinte quando voltou disse: retiro o que afirmei ontem, percebi que a tua música é quase como os andamentos de uma orquestra sinfónica. E as coisas acabaram por correr muito bem. Na minha música pode transparecer África, mas também o Ocidente, porque eu sou isso.

Diz que a cultura portuguesa faz parte da sua identidade. E parece-lhe que os portugueses assumem a sua música como sendo deles também? Pergunto isso porque parecemos viver num contexto onde a cultura africanizada, expressa na música, na comida ou na informalidade das relações, já parece ter sido assimilada. Ou, pelo menos, a sua presença sente-se como talvez nunca tenha acontecido no passado recente.

Sem dúvida. O mundo mudou muito. Hoje há muitos festivais, a tecnologia permite acesso às mais diversas músicas com facilidade. Há mais abertura. E por outro lado a integração dos africanos na sociedade portuguesa é diferente. As novas gerações já cresceram com os colegas de escola. Somos os da linha da frente. Mostrámos que era possível.

No Ocidente, por vezes sente-se que a música popular se foi dissociando da experiência da vida das pessoas. Tornou-se num mero produto. Mas há contextos onde a música continua a interferir na vida das populações, afectando a sua experiência. A música também é política nesse sentido. Angola é um desses contextos, não lhe parece?

Completamente de acordo. A música tem de ser sentida. Ela reflecte o estado de espírito das pessoas e a sua alma. Em África a música ainda não é descartável ou simples comércio. É qualquer coisa que ainda é sentida. Por exemplo quando existe venda de discos na Praça da Independência em Luanda as pessoas ficam ali na fila, desde a manhã até à noite. Quando vendi o Classics Of My Soul (2013), que é um disco feito com orquestra, sentei-me às nove da manhã a falar com as pessoas e saí dali às 23h da noite. Isto para dizer o quê? A música em Angola tem o mesmo valor que o pão. Há uma ligação íntima com os artistas, um envolvimento muito grande. Primeiro têm de comprar o disco e depois têm de o ver assinado.

 Fez uma afirmação pública recentemente na sua página do Facebook onde refere que você e a sua família têm sido alvo de vigilância e de perseguição política ao longo dos anos. Porquê agora essa declaração?

 Por saturação. Por estar farto de ver o meu trabalho ser constantemente bloqueado. Por perceber que em Angola querem calar a música da alma. O saco vai-se enchendo e um dia rebenta. Fui percebendo que existia interesse em mandar a música da alma para bem longe, enquanto se promovia os cantores do partido – não cito nomes, mas eles são conhecidos de todos. O propósito é simples: quer-se impor a música que se dança e não se sente e extinguir a música da alma. Porquê? Porque a música da alma leva as pessoas à reflexão, à sua evolução espiritual. Há muitos anos que sou barrado, porque não interessa que essa música da alma seja difundida junto das pessoas. Mas não creio que vão conseguir parar esse processo. Ele é imparável. Existe cada vez mais sede e cada vez mais gente a ir beber água à fonte. Beber água bem fresca. Os empresários não me deixam tocar em Angola. Dizem-me: “Waldemar gosto muito de ti, mas sabes como estas coisas são.” Eu sei. Estão todos agarrados por anzóis. É complicado. Nunca vi nada assim. Uma coisa bem oleada. Só que agora o dinheiro acabou. Vamos ver o que acontece.

Agora que a economia abrandou e o caso dos activistas presos criou mais uma dificuldade ao governo, como vê o futuro imediato do país?

Vou responder à minha maneira. Sou filho de enfermeiros. Toda a minha trajectória de vida foi sendo desenhada à volta da humildade. Isso para mim é fundamental. Às vezes, na vida, é importante cair na realidade. É fundamental deixar de viver uma vida virtual assente na vaidade. Cair no real é importante para se perceber em profundidade as coisas. Sou uma pessoa de fé. Sou cristão, crente e praticante, acredito que essas lições são importantes para se crescer. Como muitos outros também fui colonizado e preso pela Pide, mas isso não é justificação para um indivíduo ser arrogante. Viver no mundo da arrogância não leva a lado nenhum. O que aconteceu? Por causa do dinheiro começamos a ter comportamentos exacerbados. Não sei se fui claro? Angola é um país que tem tudo, mas é preciso trabalhar e ser-se humilde. É preciso criar as condições para que uma sociedade possa caminhar com liberdade. Com liberdade de expressão e também artística, criativa e de pensamento.

© Jornal Publico

 

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