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Segunda, 02 Mai 2016 15:44

A vida de medo de três portugueses em Luanda

Saíram de Portugal em busca de um recomeço durante a crise. Encontraram-no em Angola, mas não por muito tempo: hoje sentem-se em perigo. Há uma semana, um casal foi assassinado.

 “Agradeço o anonimato. Aqui é melhor prevenir do que remediar”. Esta foi a resposta de todos os portugueses residentes em Angola com quem o Observador conversou sobre a vida de emigrante num país com uma taxa de homicídio intencional a rondar os 19%.

A falta de segurança é uma das maiores preocupações dos portugueses em Angola, principalmente na capital, onde a criminalidade subiu: “A quantidade de bandidos e assaltantes aumentou exponencialmente e o que assusta mais são os assaltos à mão armada, que cresceram também”, relata Filipe*, diretor de uma empresa portuguesa em Angola há cinco anos. São vários os motivos que levam à violência nesta antiga colónia portuguesa. Desde logo, a saúde: morrem centenas de pessoas por dia com doenças como a febre-amarela, a malária ou o dengue. “As instituições de saúde públicas são uma desgraça e caso alguém precise de médico, se não tiver seguro de saúde que lhe permita ir a uma clínica privada, fica mesmo em risco de vida”, conta, corroborando assim denúncias feitas pelo jornalista Rafael Marques.

Depois, a realidade económica em Angola, onde a taxa de inflação ascende aos 20% e onde a desvalorização cambial já superou os 50%. “Angola não é autossustentável em quase nada. Quase todos os produtos são importados”. E começam a escassear, conta Filipe. O resultado? Um país mergulhado em dificuldades económicas. E isto também é válido para os portugueses, mesmo para aqueles cujos contratos de trabalho foram assinados de acordo com as regras portuguesas: “Conheço vários casos de pessoas com responsabilidades em Portugal que neste momento estão a pedir ajuda a amigos ou familiares para poder pagar despesas dado que o dinheiro fica cá todo”. E esse dinheiro vale cada vez menos: quem recebe em kwanzas vê o ordenado cada vez ser menor na conta bancária, por conta da desvalorização cambial.

Os últimos dados do Observatório da Emigração contabilizam 126 mil portugueses em Angola que, só em 2013, enviaram para Portugal cerca de 304 milhões de euros. Mas muitos dos portugueses que deixaram as filas de desemprego quando a crise se instalou em Portugal para entrar em aviões a caminho de uma economia em expansão estão agora a regressar: nos últimos três meses de 2015 voltaram 10 mil portugueses.

E voltaram com ordenados por receber, porque a situação empresarial em Angola (estima-se que existam 13 mil companhias portuguesas neste país africano) também é crítica: “Há empresas portuguesas em Angola com quedas de 80% nas exportações para Angola, no setor agroalimentar. Mesmo na área da saúde, há constrangimentos enormes e já há medicamentos em falta no mercado”, confidencia Filipe. Muitas pessoas foram despedidas com a reestruturação dos quadros de pessoal, os preços em hotelaria podem rondar os 400 euros por noite (embora os estabelecimentos estejam a meio gás em termos de ocupação), os mesmos restaurantes que tinham de ser reservados com duas semanas de antecedência estão agora às moscas. Fazer negócios em Angola já não é o mesmo. E “as autoridades podiam fazer tanto, mas tanto…”.

Falta água, luz e Internet

A falta de apoio por parte das entidades portuguesas, a começar pelo consulado geral, são alarmantes para os portugueses residentes em Angola. “A embaixada não é mais do que um mero escritório que trata das burocracias ou da diplomacia. Mas a presença que sentimos localmente deste que devia ser o principal apoio dos portugueses é pouco superior a zero”, queixa-se Filipe. “A falta de apoio que sentimos pelo desconhecimento das pessoas em Portugal ou mesmo do poder político, choca-nos um pouco. No tempo das vacas gordas passavam cá o tempo. Agora que Angola tem dificuldades ninguém aparece ou se preocupa com os ainda cerca de 100 mil portugueses que por cá andam”.

É também disto que se queixa David*, um português de 41 anos que vive em Talatona. “A embaixada é tão ineficaz que se um português morrer e a família não tiver condições de transladar o corpo não é a embaixada nem o consulado que ajudam essa família: são portugueses anónimos que conseguem o valor necessário através das redes sociais”.

Luís* é outro português em Angola com quem o Observador conversou. Também ele afirma que o consulado geral “pura e simplesmente não faz nada em relação aos residentes no país”. E relata até a situação de um português que se dirigiu à embaixada em busca de ajuda para regressar a Portugal e saiu de lá com um “quem te trouxe que te leve” como resposta. Isto não é regra em todas as embaixadas: o consulado de França, por exemplo, é muito presente na vida dos franceses em Angola, sublinha Luís. Ao Observador, Pedro Severo de Almeida, cônsul geral adjunto, escusou-se a prestar declarações sobre o assunto.

Mesmo perante os portugueses, David nota alguns preconceitos, principalmente quando vem a Portugal: “Quem está aí não entende a falta de água, de luz ou de Internet, as chamadas escandalosamente caras para Portugal, o cansaço e a falta de alguns bens”. É comum, conta David, que os portugueses não entendam que os emigrantes em Angola cheguem a Portugal e corram para as lojas para comprar roupa ou comida de qualidade. “A vida em Angola é uma vida exigente, dura e tensa. Não são as lagostas ou as praias ou as festas de discotecas”.

Mas porque é que escolheram ir para Angola e permanecer num país onde a fertilidade dos solos deu lugar a zonas de crime? Porque, em termos financeiros, Angola prometia mais do que Portugal quando a onda de emigração se iniciou. Pagava salários mais altos e os impostos são menores: o IRS não ultrapassa a taxa de 17% e os pagamentos à Segurança Social são de 3%. A juntar a isto estava o facto de os portugueses que não tinham lugar no mercado de trabalho nacional serem necessários em Angola: o crescimento económico pedia quadros mais qualificados, que lá não existiam, principalmente na área da construção civil, estagnada em Portugal e em franca expansão em Angola.

Depois, havia a questão histórica. Muitos dos portugueses que se fixaram em Angola são filhos dos angolanos que, em meados dos anos setenta, saíram daquela antiga colónia para fugir à guerra civil. Era como procurar as raízes em busca de novas respostas: “Algumas pessoas com problemas em Portugal tentavam refazer a sua vida em Angola. Quer porque tinham dívidas para pagar, quer problemas pessoais — nomeadamente divórcios — e Angola surgiu como um país que pagava bem, valorizava os profissionais e onde apesar de tudo se tinha uma vida tranquila”, explica Filipe.

Se fosse hoje não ia para Angola

A vida tranquila é agora mais relativa. A prová-lo está a história do casal de luso-angolanos assassinado há uma semana em Viana, na periferia de Luanda, dentro do carro em que viajavam na via Expresso. Os motivos ainda não são claros, embora se julgue que possa ter sido um ato de vingança pelo facto de Fernando Santos e Elvira Mil-Homens terem dispensado pessoal na loja de decoração que geriam há 16 anos. Mas a cor da pele também determina quem pode ser um bom alvo para os criminosos: “A onda de criminalidade é mais vincada em quem tem dinheiro. E se eu sou branco à partida tenho dinheiro. É um fantástico bilhete de identidade”, explica Filipe. É um preconceito que dispara em todas as direções: “Isto não quer dizer que sejam os brancos as pessoas mais abastadas. Mas, para um criminoso, é mais fácil olhar para um branco e achar que tem dinheiro do que olhar para um negro e imaginar que é multimilionário”.

Só em Luanda moram sete milhões de pessoas. Em termos populacionais, Lisboa cabia treze vezes na capital angolana. David acredita que é impossível estar seguro numa cidade com estas dimensões: “A falta de trabalho é uma realidade, a falta de educação escolar é outra. Neste momento, as classes média-baixa e baixa não têm as condições mínimas para sobreviver”. E assim Angola torna-se num país mais perigoso. “Hoje não aconselharia ninguém a emigrar”, diz David. Luís, por outro lado, acredita que tudo depende das condições de trabalho: “Só é viável se o salário for pago em Portugal e se vier com casa, seguro de saúde e carro tudo pago e com coragem para enfrentar tudo isto”. Mas confessa que hoje não voltaria, nem mesmo com todas essas condições.

As relações entre Angola e Portugal são antigas. Começaram em meado do século XVI, quando Paulo Dias de Novais, primeiro governador português, começou a explorar os recursos naturais do país africano. A História dos dois países cruza-se efetivamente desde essa altura até novembro de 1975, quando Angola conquistou a independência. Durante esse tempo, os dois povos misturaram-se. Os angolanos “consomem o nosso futebol, a televisão portuguesa, a comida e até gostam de apreender algum do conhecimento qualificado que adquirimos nas universidades em Portugal”.

“É salutar ver tantos angolanos a aprender connosco. Há muita gente boa em Angola e têm acima de tudo vontade de aprender. E nisso os portugueses são muito bons: somos ótimos professores”, diz Filipe. David confirma. As diferenças em termos de formação são tão vincadas entre os dois países que um português com um emprego menos qualificado em Portugal consegue ocupar altos postos em Angola: “Há muitos portugueses que são trolhas em Portugal e quando passam o Equador viram engenheiros”.

Então, porque é que os portugueses também são um alvo de violência? “Os angolanos têm uma relação de amor-ódio com os portugueses”, diz Filipe. Alguns angolanos não gostam de portugueses porque “lhes tiram o posto de trabalho” e levam para fora do país o dinheiro que ganham.

Por enquanto, Filipe, David e Luís tencionam ficar em Angola. Mas Filipe diz que no dia em que se sentir inseguro parte de novo com a mulher e os dois filhos pequenos. Os próximos oito meses serão decisivos: “Nesta altura da minha vida já não era capaz de emigrar para cá. Já tenho filhos, por isso o mais certo é regressar daqui a uns anos a Portugal”, explica. Por agora, fica: “Nasci em Angola há 42 anos, havia uma costela em mim que queria que eu regressasse para ver a terra onde nasci e onde os meus pais foram tão felizes”.

“O que marca realmente neste país é o à-vontade com que se vive”, à beira-mar com temperaturas sempre altas, praias quentes e beleza natural, diz David. “Angola foi o país que me marcou mais, principalmente a nível pessoal. Aqui, as prioridades mudam muito relativamente à Europa. Angola deixa-nos com aquele brilhozinho nos olhos”.

*Nomes fictícios. As fontes preferiram manter o anonimato invocando razões de segurança.

Lusa

 

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