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Segunda, 20 Novembro 2017 16:54

Tudo mude para que tudo fique igual?

João Lourenço será reformador ou outro príncipe de Lampedusa, empenhado em que tudo mude para que tudo fique igual? Essa parece ser a grande pergunta do milhão para os angolanos

Por António Rodrigues

(O tempo das pacaças)

O novo presidente de Angola prometeu mudanças, mostrou vontade de combater males arreigados, lançou palavras que deixaram alguma esperança sobre esta nova era, depois de 38 anos de poder de José Eduardo dos Santos. Em menos de dois meses à frente dos destinos do país, João Lourenço parece disposto a cumprir o prometido, dando sinais de que as coisas nunca mais serão iguais. Mesmo assim, os céticos angolanos, habituados a nada esperar de um Estado dominado por uma elite que dele extraiu tudo o que pôde extrair em seu proveito, duvidam, não embandeiram em arco, temem que seja apenas cosmética e que a fat lady não esteja ainda para grandes cantorias finais.

Recebem com espanto a exoneração de Isabel dos Santos (a “grande empresária de Angola”) da Sonangol, o afastamento de Tchizé dos Santos e Coréon Dú (José Paulino dos Santos) da gestão da televisão pública (TPA2 e TPA Internacional), o fim do monopólio de Isabel dos Santos/Sindika Dokolo na compra de diamantes, o acabar do oligopólio nas telecomunicações (em que a Unitel de Isabel dos Santos domina o mercado), o ponto final no exclusivo que a Bromangol (de Zenú dos Santos) tinha na análise da qualidade alimentar.

Veem as mudanças na comunicação social, com a saída do veterano José Ribeiro da direção do diário público “Jornal de Angola”, conhecido pelos seus ataques virulentos contra Portugal quando o regime precisava de transmitir a mensagem a Lisboa de que estava descontente com alguma ação ou inação do governo português – isto já depois de ter nomeado para ministro da Comunicação Social um homem inteligente, o escritor e poeta João Melo, que muitas crónicas escreveu a recomendar melhorias na comunicação aos anteriores executivos.

Os angolanos não estão habituados a esperar que aos discursos dos governantes correspondam ações concretas para ir das palavras aos atos. Que a semântica seja mais do que um acumular de palavras e signifique verdadeiramente algo.

Daí que muitos comentem que se trate apenas de trovas do vento que passa e aguardam de pé atrás em vez de desatar euforias. Há um provérbio em quimbundo que diz que nas escadas do mundo, uns sobem, outros descem, dando a ideia de que a transitoriedade pode não ir mais fundo que a substituição de uns pelos outros. Lá está, como a célebre citação do Príncipe em “O Leopardo”, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, de que é preciso que tudo mude para que tudo fique igual.

Teme-se em Angola que João Lourenço não seja um reformador, mas apenas outro Príncipe de Lampedusa; um aplicador de cosmética num regime que revela as fissuras de 42 anos de poder, no meio de uma crise económica que derrubou a esperança renascida pelos anos de paz e prosperidade após os acordos de 2002. Que o MPLA esteja a aplicar uma autocirurgia estética capaz de lhe prolongar a existência no poder, removendo o tecido velho por outro novo ou menos desgastado. Temem, pois, que João Lourenço possa ser apenas o Pitanguy da política angolana – só um milagreiro estético.

Aos 42 anos de independência e apesar de ser um país cheio de jovens, a Angola cética, a quem impregnaram doses cavalares de cinismo, duvida de tudo, principalmente de que um governante possa realmente estar a agir para o bem comum.

O neurologista Oliver Sacks fala em “O Homem Que Confundiu a Mulher com Um Chapéu” de um paciente que percebia tudo o que estava subjacente a um discurso sem entender realmente as palavras ditas. E que se ria ao ouvir um político porque percebia o vazio e a mentira para lá da cobertura retórica. Muitos angolanos estão assim, de tão presos no subjacente já nem ligam ao assente.

Não sei porquê (ou talvez seja porque ainda não me tornei suficientemente cínico para me abandonar ao permanente ceticismo), os acontecimentos desta última semana fizeram-me recordar um poema de Arlindo Barbeitos que fala de outros tempos, de tempos nostálgicos, de um tempo qualquer na memória em que a esperança ainda existia e os homens ainda acreditavam na possibilidade da mudança. “No tempo/ em que as pacaças entravam pelos povoados/ o voo alvoroçado das perdizes/ carregava sonhos/ que/ a mãozinha inerme de criança/ feliz/ agarrava ao lusco-fusco dos muxitos/ no tempo/ em que as pacaças entravam pelos povoados”. E se a pacaça está hoje em vias de extinção em Angola, não é menos certo que, com guerra e tudo, ainda não desapareceu. (Jornal I)

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